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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Com a publicação de "Saint Genet", o filósofo estabeleceu uma relação única na história da literatura, atribuindo forma e sentido à retórica transgressora do escritor francês

O jogo de espelhos de Sartre e Jean Genet

Juan José Saer

Feita em grande parte de intensas singularidades (Proust, Céline, Artaud, Bataille, Ponge etc.), a literatura francesa da primeira metade do século 20 parece descender diretamente da grande revolução poética do 19, encarnada por Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Lautréamont, embora, à primeira vista, fortes diferenças as separem.
A mais notória semelhança, porém, reside no programa ininterrupto de ruptura e transgressão que se pode reconhecer retrospectivamente em todos esses autores. Entre 1940 e 1952, os nomes de Sartre e de Jean Genet se inscrevem de maneira eminente nessa lista, nela introduzindo uma acentuada atipicidade.
Jean Genet, nascido em Paris em 1910, de pai desconhecido, abandonado pela mãe, adotado por uma modesta família em um vilarejo de Morvan, uma região muito pobre vizinha da Borgonha, ladrão e vagabundo, homossexual passivo que exerceu esporadicamente a prostituição e, entre 1926 e 1944, sofreu 13 condenações por roubo, deserção etc., sendo preso muitas vezes, publicou em 1943, graças à mediação de Jean Cocteau, seu primeiro livro, "Nossa Senhora das Flores", um relato em grande parte autobiográfico em que ele evoca suas temporadas na prisão bem como o mundo dos travestis e proxenetas do Pigalle. Embora não esteja isento de defeitos (sensacionalismo, certo deleite com suas próprias obsessões, verbosidade, traços costumbristas), o livro, por sua originalidade, sua força transgressora e sua liberdade, causou sensação no meio literário francês, e os problemas do autor com a Justiça, assim como os do livro com a censura, por causa de sua crueldade quase programática, deram a Genet uma rápida celebridade. Seus livros foram se sucedendo em um lapso relativamente curto, tanto que, seis ou sete anos mais tarde, a editora Gallimard, graças à intervenção de Jean-Paul Sartre, resolveu publicar suas obras completas.


Como um cafetão que enriquece com o trabalho de sua protegida, a obra de Genet e a exegese de Sartre se exploram mutuamente


Figura mítica
Filho único e adorado pela mãe, uma viúva jovem e bonita, educado no seio de uma família burguesa, Sartre, que fora um estudante brilhante e desde os anos 30 começara a publicar narrativas e textos filosóficos, vindo a representar no pós-guerra a figura mítica, mundialmente conhecida, do intelectual existencialista comprometido com seu tempo, não parecia, a princípio, a pessoa mais adequada e destinada a coincidir tão intimamente com seu oposto simétrico, o artista autodidata, ladrão, ex-presidiário, desertor, apologista do crime e da traição Jean Genet. E no entanto, enquanto a literatura francesa existir, seus nomes continuarão ligados. Sartre logo julgou perceber na obra de Genet alguns temas centrais da filosofia existencialista, duplamente legitimados por causa de sua origem autobiográfica: o indivíduo como produto de uma situação singular na sociedade, a essência do mal, a escolha de um projeto para superar toda espécie de determinismos, sociais, psicológicos e até biológicos e metafísicos, o exercício da liberdade que emancipa e permite passar do mero "ser à existência". Na torrencial obra de Sartre, ao mesmo tempo literária, política e filosófica, talvez uma das partes mais atraentes seja aquela que, ao longo da vida, ele dedicou a certos artistas, especialmente escritores e pintores, para analisá-los enquanto "indivíduos em situação": Baudelaire, Tintoretto, Mallarmé e até Flaubert, em seu livro-rio "O Idiota da Família". Retratos fulgurantes, em que a intensa e exata prosa de Sartre atinge seus pontos máximos, esses textos foram aos poucos conquistando um lugar de destaque em sua obra, apesar das virulentas críticas de que foram objeto em certos casos.

Prisão iminente
Como o livro sobre Baudelaire, por exemplo, atacado pelos surrealistas, que consideraram insultuoso e cruel um texto que apenas procurava aprofundar os indícios que o próprio Baudelaire deixara em seus poemas e em seus escritos autobiográficos. Como nos retratos de Picasso ou de Bacon, se os personagens parecem deformados, é porque o artista que os representou foi capaz de ver neles o que estava além das aparências. Mas todos esses personagens estavam mortos fazia muito tempo, diferentemente de Jean Genet, que não apenas estava vivo, mas era mais jovem que seu exegeta e se encontrava em plena atividade literária. Além disso, poderia até se dizer que era seu amigo; pelo menos, em 1949, ele dedicou a Sartre e a Simone de Beauvoir (o Castor) aquele que muitos consideram seu melhor livro: "Diário de um Ladrão". Em 16 de julho de 1948, diante da iminência de uma nova prisão de Genet, Sartre e Cocteau publicaram na revista "Combat" uma carta aberta pedindo a graça presidencial. O texto consta entre os documentos judiciais referentes a Genet e parece ter contribuído para acelerar o fim de seus problemas com a Justiça, pois pouco tempo depois as autoridades decidiram ir além, fazendo desaparecer das fichas policiais todos os seus antecedentes criminais. O vagabundo "sem profissão" e "sem endereço fixo", Genet Jean, emerge de sua longa noite de miséria, de escárnio e de solidão transformado em Jean Genet, escritor original e célebre, sobretudo por suas peças de teatro, que serão representadas no mundo inteiro. Sartre e Cocteau foram os principais artífices dessa transformação. Foi Sartre quem o apresentou a Gallimard e quem sugeriu a publicação de suas obras completas. Como era de esperar, Gallimard pediu a Sartre que escrevesse um prefácio, que abriria o primeiro volume. Sartre então escreveu um texto famoso, "Saint Genet - Ator e Mártir" [publicado recentemente no Brasil pela ed. Vozes], que, com suas 700 páginas de tipografia cerrada, não se contentou em ser o prefácio ao primeiro volume, mas se transformou pura e simplesmente em um livro autônomo. Assim, as obras completas de Genet passaram a incluir um primeiro volume contendo a monumental exegese de Jean-Paul Sartre. Uma estranha dialética se instaurou entre esse primeiro volume e o resto das obras completas. É óbvio que a desmesurada análise de Sartre se nutre dos textos de Genet e inversamente, no minucioso exame a que os submete, superando suas zonas escuras, suas argúcias retóricas e suas ingenuidades, desenvolvendo até seus sentidos mais secretos, os ilumina, dotando-os de fulgores inesperados. Mas não é menos certo que a brusca irrupção de Genet no mundo literário, a violenta singularidade de sua vida e de seus textos foram para Sartre um notável estímulo intelectual. Como um cafetão que enriquece com o trabalho de sua protegida, a obra de Genet e a exegese de Sartre se exploram mutuamente, mas cada uma encarnando os dois papéis ao mesmo tempo. Postos frente a frente, o texto e seu monstruoso comentário refletem um o outro, reproduzindo até o infinito seus brilhos e suas sombras. Os críticos de Sartre afirmam que seu livro produziu tamanho impacto em Genet que, durante muitos anos, este não conseguiu voltar a escrever uma única linha.

Observações cruéis
O que não parece incomodar muito Sartre, pois em muitas passagens de seu livro fala de Genet como se estivesse morto. Outros reprovam a ambivalência sartriana em relação a Genet: entre rasgados elogios, pululam as observações mais cruéis, e, por momentos, a análise biográfica e psicológica beira a brutalidade. Mas Sartre não faz mais do que jogar o mesmo jogo que Genet: é seu espelho, não seu hagiógrafo; não é nem um terapeuta nem um assistente social; é um escritor e um filósofo. Sua tarefa consiste em revelar forma e sentido do mesmo modo que Jean Genet, cuja retórica transgressora o leva a exaltar a força bruta, a escatologia, o crime, a traição, sem se preocupar em nada -e com razão- com a sensibilidade ou as convicções de seus leitores. Na zona em que o dispositivo Genet-Sartre funciona, não há lugar para meias-tintas nem boas maneiras.

A terra de ninguém
Esse dispositivo é único na literatura francesa e talvez na mundial. Sua persistente vivacidade, os problemas que mostra, as revelações que suscita, as emoções que provoca são de índole especificamente literária e dão sua razão de ser a textos cuja originalidade poderia resultar do fato de os autores provirem de mundos estranhos à literatura: Genet, da noite escura de um mundo sem palavras ou quando muito pontuado por tenebrosas gírias marginais; e, Sartre, da filosofia, em que somente os conceitos têm curso legal.
A partir desses universos opostos, o autor e sua sombra ou, se se preferir, o exegeta e seu duplo convergem para a terra de ninguém da literatura. Porque "Saint Genet" é antes de tudo um grande texto literário, que se alimenta de seu objeto assim como seu objeto se alimenta de sua própria experiência. Ao escrevê-lo, Sartre deixou de ser filósofo para se tornar, como Genet Jean, alguém "sem profissão", ou seja, um escritor. Do mesmo modo, pode-se dizer que a arte que os dois praticam, a literatura, por suas imprevisíveis irrupções quanto à forma, à pessoa e ao lugar, é, tão evidente quanto inesperada, "sem endereço fixo".

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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