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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Ponto de fuga

Kaleidoscope eyes

Jorge Coli
especial para a Folha

"A Bigger Splash" vibra de intensidades luminosas em suas superfícies geométricas, contrariadas pelo esborrifar de um mergulho na piscina. O resultado é um pouco assim como se Mondrian e a abstração gestual se reunissem num clichê da Califórnia, investido por elegância refinada. Seu autor, David Hockney, o mais californiano dos ingleses, é um dos raros artistas a cultivarem a beleza dentro das artes contemporâneas. O retrato de "Mr. and Mrs. Clark and Percy" é um esplendor: retoma lições flamengas e florentinas para encontrar a harmonia de uma elegância plenamente 1970. Nenhuma reprodução é capaz nem sequer de sugerir a luz misteriosa e mágica que emana dessa obra, criação de um pintor apaixonado por Vermeer de Delft.
"A Bigger Splash" serviu como título principal para a mostra "Arte Britânica da Tate, 1960 - 2003", ora no parque Ibirapuera, em São Paulo. A arte na Inglaterra dos últimos 40 anos foi prodigiosa. Certas obras, que chegam ao Brasil pela primeira vez, são cruciais. Mas o conjunto, ali na Oca, não as faz interagir, não oferece sugestão alguma de efervescência criadora. O percurso não inquieta, não interroga, não responde: contenta-se em enumerar, como num manual esforçado. Em compasso neutro, as obras se seguem com uma certa indiferença. Alguns artistas, como Lucian Freud, Damien Hirst ou Anish Kapoor, estão representados de modo muito insuficiente. Nesses casos, é difícil chegar a uma idéia razoável do universo que inventaram.

Faro - Cheiros, ruídos, tudo é indício. O homem que rastreia sabe decifrar marcas deixadas pelos animais na floresta. Ele se transforma um pouco em animal também e pode chegar à violência da besta. A linha de fronteira entre herói e criminoso é fina; da mesma forma a que separa homens e animais.
"The Hunted" ("Caçado"), de William Friedkin, é um filme sem efeitos espetaculares. Concentra-se no caçador e no caçado, um duelo entre criador e criatura. A trama é simplificada, e isso vem favorecer o que poderia se chamar de uma redução ao primitivo. A faca é preferida às armas de fogo, e a definitiva é talhada num pedaço de sílex. A perseguição obsessiva incorpora, de maneira orgânica, os ambientes, naturais ou urbanos, por onde passa. É um filme de homens, em que os personagens femininos não possuem espessura. É um filme do destino como ajuste de contas. Ecoa nele uma obscura parábola, semelhante ao sacrifício bíblico de Isaac, mas sem que a intervenção divina venha impedir o golpe final. Deus parece ter sido suplantado pelos poderes de uma sociedade destrambelhada, de um militarismo enlouquecido. "Caçado" economiza, elimina o supérfluo, afunila-se. Talvez possa ser sentido, por alguns, como obra "menor". É, antes, concebido com poderoso rigor. É, sobretudo, um filme de mestre.

Influxos - Hockney pertence à família dos artistas vinculados à tradição da velha e boa pintura de imagens sobre tela. Existem outros, na exposição inglesa do Ibirapuera, entre eles Francis Bacon, a quem é consagrado um conjunto notável. De Peter Doig veio "Echo Lake", grande tela herdeira dos mistérios inventados pelos simbolistas há mais de um século. Mas, está claro, a arte, na Inglaterra de hoje, não se limita a isso. Fotografia, vídeo, vínculos com a pop art, com a tradição abstrata, tudo se junta no percurso da Tate em São Paulo. Há obras relevantes, impressionantes, poéticas: assim, os objetos de metal que flutuam, em "Thirty Pieces of Silver", de Cornelia Parker. Mas estão ausentes dois dos maiores escultores ingleses de todos os tempos, Henry Moore e Barbara Hepworth. Veteranos nos anos de 1960 e 70 (Moore morreu em 1986, Hepworth, em 1975), porém não muito mais velhos do que Bacon, marcaram de modo decisivo a cultura visual na Inglaterra do pós-guerra.

Cereja - Montar "Tio Vânia", de Tchekhov, inda mais no Brasil, é sempre um esforço meritório. A peça está em cartaz no teatro da Faap, em São Paulo. No que há de bom, sobressai a encarnação, natural e precisa, do professor Serebriàcov, por Rogério Fróes.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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