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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Km4

por Paulo Franchetti

Estava deitada sobre o braço esquerdo. Os dedos das mãos, quase se tocando, pareciam mais longos. Especialmente os da mão direita, que se soltavam desde o alto, o indicador um pouco mais avançado para a frente. Os cabelos eram quase vermelhos, mas deixavam ver a cor mais clara sob a tinta, especialmente nas zonas de luz um pouco mais intensa. Como no crepúsculo, quando se desvia um pouco os olhos do cenário central, aquelas dobras expostas lembravam as copas das árvores iluminadas pelos raios que vazavam entre as nuvens do horizonte.
Imaginava agora a leve penugem na base dos seios. Contra o poente, pareceria uma rápida emanação de calor, esbarrando contra a massa mais fresca que se condensava em torno das aréolas. Mas ali, ela estava vestida. Os dois olhos muito azuis, chegando quase ao cinza dos metais subitamente resfriados, dominavam a paisagem. Eram agora dois buracos abertos, por trás dos quais o céu, tal como era pouco antes, ficava preservado.
Os ombros, muito retos, naquela posição inclinavam-se no ângulo perfeito. Aquele que permite o maior alcance, a parábola modelar, que começa e prossegue no ritmo constante e se demora o máximo no ápice, antes de iniciar o retorno até a terra, onde ele voltaria a ser apenas um recorte de conveniências e deveres, mergulhado no vazio.
Depois a subtração das formas pela roupa larga, que se erguia, dobrada, sobre a linha da cintura. E por fim a alta voluta dos quadris e sua progressão rápida para baixo, em direção aos pés.
Tinha-os de modo que o direito ficasse obscurecido, oculto pela linha do joelho. Somente a ponta, na sandália, aparecia ao fundo. Já o esquerdo, pousado com abandono, acomodava-se nas tiras de couro como num berço.
Encostado na moto, naquele canto de estrada, desfrutava a alucinação repentina daquele lusco-fusco. Aquela figura, que ali estava e que já quase não podia ver, contra o céu sanguinolento pouco a pouco ia desaparecendo.
Enquanto escurecia, com os olhos quase fechados, afirmou melhor a vista, tentou reter cada pedaço e cada inflexão daquele rosto e daquele corpo. Depois, vestindo o capacete, ligou a moto e tomou o caminho de volta para casa.


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