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O cidadão incomum
Na época
de maior
liberdade
de expressão,
de crítica
e de voto de toda a história, sociedade
é vítima
impotente da
irracionalidade da economia, defende filósofo
Mark Lennihan-29.abr-2008/Associated Press
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Consumidores trocam dinheiro para efetuar compras em Canal Street, em Nova York
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Que implicações
morais terá, para o
cidadão incomum
-o que pertence à
classe média ou à
rica-, a atual crise financeira?
Essa parte está chocada, porque se vê diante do que muitos
chamam de a pior crise dos últimos 79 anos, ou seja, desde o
crack da Bolsa de Nova York,
em 1929. Aquela crise comandou a ascensão do nazismo na
Alemanha e outros fenômenos
que culminariam na Segunda
Guerra Mundial. Por isso, o
quadro assusta.
Nesse desenho geral, pode
ser questão secundária tratar
da expectativa dos mais endinheirados ante o seu dinheiro
talvez virando pó. Mas esse tema ronda a consciência de
muita gente.
Quando foi instituída a nova
moeda brasileira, em 1994,
muitos correntistas começaram a sentir perdas nos seus investimentos em fundos.
Isso não foi freqüente, mas
aconteceu. Antes, com a inflação, sempre havia um rendimento nominalmente positivo
-mesmo que fosse inferior à
depreciação da moeda e, na
verdade, implicasse uma perda
de dinheiro.
Impressão da perda
Mas uma coisa é, psicologicamente, você ver sua aplicação
subir de 100 cruzeiros para 101,
quando a inflação foi de 2% e,
portanto, você perdeu um cruzeiro; outra é a sua aplicação
passar de R$ 100 para R$ 99,50,
caso em que fica evidente a perda de valor. O que choca, então,
não é a realidade de ganhar ou
perder: é a impressão de ganhar
ou perder.
Isso é curioso. Uma das qualidades dos mercados, nos dizem seus defensores, é o elemento de racionalidade que introduzem na vida econômica.
Não há dúvida de que eles
funcionam bem, por exemplo,
para evitar absurdos soviéticos,
como o de produzir cigarros
que não podiam ser segurados
na posição vertical -porque o
fumo caía no chão. Permitem
uma articulação entre vendedor e comprador -ou entre fornecedor e usuário- mais espontânea e melhor do que faria
uma burocracia fechada sobre
si própria.
Mas, ao mesmo tempo, os
próprios defensores da racionalidade dos mercados usam
termos como "eles estão nervosos", "é preciso acalmá-los" e
outros, de forte sentido antropomórfico -como se os mercados fossem gente dotada de psique, como eu e você. Pior ainda,
como se fosse gente particularmente nervosa, que somente se
acalma com injeções enormemente caras -uma delas foi de
US$ 700 bilhões.
Ora, como esperar que gente
nervosíssima tome decisões racionais? Parece um desatino.
Daríamos o controle das armas
nucleares a gente que precisa
drogar-se para ficar calma?
Prefiro que não.
"Sempre mais"
Será que a atual crise nos ajudará a questionar a ilusão de
mercados que enriquecem
quem neles aplica e que, ademais, introduzem um elemento
de racionalidade na vida social?
Será um enorme ganho se assim for. Afinal, ilusões nunca
trazem muita felicidade. Mas
não acredito nesse desenlace
otimista, iluminista.
Na verdade, está em jogo o
modelo do "sempre mais". Ele
perpassa toda a nossa vida. Os
computadores, os celulares, os
aparelhos digitais aumentam
sempre em recursos. Nós os
usamos? Muito poucos. E muito pouco.
Mas eles continuam se intensificando, à medida que equipamentos que ainda nos servem
se tornam obsoletos e não podem mais ser consertados.
O único exercício da
"hybris", da desmedida, que encontrou um limite em nosso
tempo foi o do jato supersônico. Deu errado, parou, voamos
subsonicamente, ponto final.
Mas corremos atrás de megapixels e de memória RAM, para
não falar de carros e cigarros.
Seria bom aproveitar esta
crise para questionar a idéia, vitoriosa na política e na mídia,
de que só a resolveremos mediante medidas que a médio
prazo -creio eu- a agravam.
Estamos num mundo com
mais liberdade de expressão, de
crítica, de organização e eleição
do que em qualquer época do
passado. Mas não decidimos
nada sobre a economia. Ela é
governada pelo próprio capital.
Fomos "nós, o povo", que geramos a crise? Claro que não.
Mas quem pagará a conta?
Nós, o povo. Surpreende, nesse
contexto, que haja quem acuse
a esquerda -mesmo a esquerda que passou pela construção
do Muro de Berlim e por sua
queda sem esquecer ou aprender nada, a esquerda que se nutre de vento ideológico- de irresponsável. Se há quem não
teve culpa alguma nessa crise
toda, foi a esquerda.
O capital e seus representantes se mostraram irresponsáveis numa escala talvez sem par
nos últimos quase 80 anos.
Liberdade pouco fecunda
Dizem-nos que o único jeito
de não piorar a crise é dar mais
pão-de-ló ao dragão faminto, é
nutrir a serpente que causou
essa crise para que ela continue
nos envenenando.
É a mesma coisa que aceitamos quando nossas cidades são
destruídas pelo uso do carro individual: em vez de limitá-lo,
em vez de adesivar os veículos
(como fazemos com os cigarros) com os dizeres "O ministério adverte: carros matam, aleijam e poluem", multiplicamos
o seu uso.
Com sorte, adiamos o Juízo
Final. Mas também o tornamos
mais inevitável e implacável.
Isso teria de mudar. Temos
de sair do nervosismo dos mercados e procurar algo mais racional, sensato, sustentável.
Mas conseguiremos? Com toda
a inegável liberdade de nosso
tempo, e inclusive a minha de
dizer isso, essa liberdade se
mostra pouco fecunda. O que
temos de democrático encontra aí seu buraco negro, a caverna que o engole.
Podemos continuar votando,
sim, e eu o farei com o orgulho
de quem só votou para presidente, pela primeira vez, aos 40
anos. Mas gostaria muito que
nossas liberdades políticas gerassem resultados de verdade.
RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética
e filosofia política na USP e autor de, entre outros livros, "Ao Leitor sem Medo" (ed. UFMG).
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