São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

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O cidadão incomum

Na época de maior liberdade de expressão, de crítica e de voto de toda a história, sociedade é vítima impotente da irracionalidade da economia, defende filósofo

Mark Lennihan-29.abr-2008/Associated Press
Consumidores trocam dinheiro para efetuar compras em Canal Street, em Nova York

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que implicações morais terá, para o cidadão incomum -o que pertence à classe média ou à rica-, a atual crise financeira?
Essa parte está chocada, porque se vê diante do que muitos chamam de a pior crise dos últimos 79 anos, ou seja, desde o crack da Bolsa de Nova York, em 1929. Aquela crise comandou a ascensão do nazismo na Alemanha e outros fenômenos que culminariam na Segunda Guerra Mundial. Por isso, o quadro assusta.
Nesse desenho geral, pode ser questão secundária tratar da expectativa dos mais endinheirados ante o seu dinheiro talvez virando pó. Mas esse tema ronda a consciência de muita gente.
Quando foi instituída a nova moeda brasileira, em 1994, muitos correntistas começaram a sentir perdas nos seus investimentos em fundos. Isso não foi freqüente, mas aconteceu. Antes, com a inflação, sempre havia um rendimento nominalmente positivo -mesmo que fosse inferior à depreciação da moeda e, na verdade, implicasse uma perda de dinheiro.

Impressão da perda
Mas uma coisa é, psicologicamente, você ver sua aplicação subir de 100 cruzeiros para 101, quando a inflação foi de 2% e, portanto, você perdeu um cruzeiro; outra é a sua aplicação passar de R$ 100 para R$ 99,50, caso em que fica evidente a perda de valor. O que choca, então, não é a realidade de ganhar ou perder: é a impressão de ganhar ou perder.
Isso é curioso. Uma das qualidades dos mercados, nos dizem seus defensores, é o elemento de racionalidade que introduzem na vida econômica. Não há dúvida de que eles funcionam bem, por exemplo, para evitar absurdos soviéticos, como o de produzir cigarros que não podiam ser segurados na posição vertical -porque o fumo caía no chão. Permitem uma articulação entre vendedor e comprador -ou entre fornecedor e usuário- mais espontânea e melhor do que faria uma burocracia fechada sobre si própria.
Mas, ao mesmo tempo, os próprios defensores da racionalidade dos mercados usam termos como "eles estão nervosos", "é preciso acalmá-los" e outros, de forte sentido antropomórfico -como se os mercados fossem gente dotada de psique, como eu e você. Pior ainda, como se fosse gente particularmente nervosa, que somente se acalma com injeções enormemente caras -uma delas foi de US$ 700 bilhões.
Ora, como esperar que gente nervosíssima tome decisões racionais? Parece um desatino. Daríamos o controle das armas nucleares a gente que precisa drogar-se para ficar calma? Prefiro que não.

"Sempre mais"
Será que a atual crise nos ajudará a questionar a ilusão de mercados que enriquecem quem neles aplica e que, ademais, introduzem um elemento de racionalidade na vida social? Será um enorme ganho se assim for. Afinal, ilusões nunca trazem muita felicidade. Mas não acredito nesse desenlace otimista, iluminista.
Na verdade, está em jogo o modelo do "sempre mais". Ele perpassa toda a nossa vida. Os computadores, os celulares, os aparelhos digitais aumentam sempre em recursos. Nós os usamos? Muito poucos. E muito pouco. Mas eles continuam se intensificando, à medida que equipamentos que ainda nos servem se tornam obsoletos e não podem mais ser consertados. O único exercício da "hybris", da desmedida, que encontrou um limite em nosso tempo foi o do jato supersônico. Deu errado, parou, voamos subsonicamente, ponto final.
Mas corremos atrás de megapixels e de memória RAM, para não falar de carros e cigarros. Seria bom aproveitar esta crise para questionar a idéia, vitoriosa na política e na mídia, de que só a resolveremos mediante medidas que a médio prazo -creio eu- a agravam.
Estamos num mundo com mais liberdade de expressão, de crítica, de organização e eleição do que em qualquer época do passado. Mas não decidimos nada sobre a economia. Ela é governada pelo próprio capital.
Fomos "nós, o povo", que geramos a crise? Claro que não. Mas quem pagará a conta? Nós, o povo. Surpreende, nesse contexto, que haja quem acuse a esquerda -mesmo a esquerda que passou pela construção do Muro de Berlim e por sua queda sem esquecer ou aprender nada, a esquerda que se nutre de vento ideológico- de irresponsável. Se há quem não teve culpa alguma nessa crise toda, foi a esquerda.
O capital e seus representantes se mostraram irresponsáveis numa escala talvez sem par nos últimos quase 80 anos.

Liberdade pouco fecunda
Dizem-nos que o único jeito de não piorar a crise é dar mais pão-de-ló ao dragão faminto, é nutrir a serpente que causou essa crise para que ela continue nos envenenando.
É a mesma coisa que aceitamos quando nossas cidades são destruídas pelo uso do carro individual: em vez de limitá-lo, em vez de adesivar os veículos (como fazemos com os cigarros) com os dizeres "O ministério adverte: carros matam, aleijam e poluem", multiplicamos o seu uso.
Com sorte, adiamos o Juízo Final. Mas também o tornamos mais inevitável e implacável. Isso teria de mudar. Temos de sair do nervosismo dos mercados e procurar algo mais racional, sensato, sustentável. Mas conseguiremos? Com toda a inegável liberdade de nosso tempo, e inclusive a minha de dizer isso, essa liberdade se mostra pouco fecunda. O que temos de democrático encontra aí seu buraco negro, a caverna que o engole. Podemos continuar votando, sim, e eu o farei com o orgulho de quem só votou para presidente, pela primeira vez, aos 40 anos. Mas gostaria muito que nossas liberdades políticas gerassem resultados de verdade.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética e filosofia política na USP e autor de, entre outros livros, "Ao Leitor sem Medo" (ed. UFMG).


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