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Círculo virtuoso
Historiador inglês
mostra como elementos culturais
de um país são exportados
e retornam atualizados
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Apesar do interesse
recente manifestado por estudantes
de arte, música, literatura e idéias pela história da chamada "recepção" de itens culturais diferentes em lugares e tempos distintos e entre diferentes grupos
sociais, curiosamente pouca
atenção vem sendo dada ao que
se poderia chamar de "circularidade cultural".
A metáfora do círculo diz
respeito a adaptações de objetos culturais estrangeiros que
são tão completas que o resultado às vezes é reexportado
com sucesso ao lugar de origem
do objeto.
Exemplo disso é a circularidade entre os domínios do sagrado e do profano.
Nos tempos do cristianismo
primitivo, a igreja se apropriou
do discurso e da iconografia
oficiais do Império Romano,
representando Deus ou Cristo
de maneiras antes reservadas
ao imperador. Nos primórdios
da Europa moderna, o Estado
às vezes se apropriava novamente desses temas.
Como no cinema
Alguns dos contemporâneos
de Luís 14 consideravam que o
rei cometera blasfêmia ao autorizar que fossem acesas luzes
diante de sua estátua em Paris,
como se ele fosse um santo.
Mas o rei estava simplesmente
voltando a uma prática da Antigüidade romana.
Outro tipo de circularidade é
o que se dá entre a cultura "alta" (ou erudita) e "baixa" (ou
popular). Escritores famosos
da Renascença, como Ariosto,
Rabelais, Shakespeare e Cervantes, buscaram inspiração na
cultura popular de seus tempos, mas suas próprias obras
retornaram ao povo, às vezes
sob formas simplificadas.
Voltando do passado ao presente, um estudo da máfia siciliana feito por um sociólogo italiano comenta o que o autor do
estudo chama de "identidades
circulares". Membros da máfia
gostam de assistir a filmes sobre a máfia e modificar sua aparência (roupas, óculos escuros
e assim por diante) segundo o
exemplo dado por Robert de
Niro e outros atores.
Sociólogos e antropólogos já
reconhecem o papel que eles
próprios exercem na construção ou invenção das tradições
que estudam.
Os adeptos do candomblé recorrem a livros dos acadêmicos
Roger Bastide e Pierre Verger,
enquanto a tradição dos gaúchos, como bem observou Ruben Oliven, deve algo aos antropólogos norte-americanos
Ralph Linton [1893-1953] e Donald Pierson [1900-95].
Alguns percursos circulares
envolvem viagens entre continentes. Quando retornei ao
Reino Unido depois de cumprir
serviço militar na Ásia meridional, em 1957, comprei um tapete de orações muçulmano como suvenir.
Na volta, com tempo para
examinar o tapete mais de perto, descobri uma etiqueta dizendo "Made in Birmingham".
Fabricado para o mercado religioso de exportação, o tapete
foi repatriado como artigo turístico.
A música oferece muitos
exemplos de circularidades intercontinentais. Tome-se, por
exemplo, o muito conhecido
desenvolvimento da música
afro-americana no Brasil, em
Cuba e nos EUA no século 20.
Alguns músicos no Congo
têm se inspirado no trabalho de
seus colegas em Cuba, e alguns
músicos de Lagos [na Nigéria],
no de seus colegas brasileiros.
Em outras palavras, a África
imita a África por intermédio
da América, descrevendo uma
trajetória circular, mas que não
termina no lugar onde começou, já que cada imitação é também uma adaptação.
Ciclo da cana
Na literatura, Gabriel García
Márquez descobriu as possibilidades literárias de sua região
nativa no norte da Colômbia
com a leitura de William Faulkner [1897-1962], cujo Condado
de Yoknapatawpha é sob alguns aspectos o modelo que
inspirou Macondo.
Mas hoje o mundo imaginário de García Márquez já conquistou a América do Norte,
além de muitos outros lugares.
De modo semelhante, os romances de José Lins do Rego,
escritos uma geração antes e
tratando das fazendas do Nordeste brasileiro, foram inspirados nos romances de Thomas
Hardy [1840-1928], ambientados no oeste da Inglaterra.
A história das relações culturais entre o Japão e o Ocidente
ao longo dos séculos 19 e 20, em
especial, oferece vários exemplos fascinantes desse tipo de
circularidade.
Um escritor britânico que fez
sucesso no Japão do século 19
foi o escocês Samuel Smiles,
autor de "Self-Help" [Auto-Ajuda, 1859], coletânea de histórias de sucesso de indivíduos
que saíram da pobreza e enriqueceram graças a seus próprios esforços e inteligência.
O grande êxito desse livro pode sugerir que os japoneses tivessem se convertido aos valores vitorianos. Contudo, no século 17, o escritor popular Iharu Saikaku já tinha publicado
uma coletânea de contos sobre
pessoas empreendedoras cujo
trabalho árduo foi recompensado com a conquista de riquezas.
Um outro exemplo: o poeta
irlandês William Butler Yeats
escreveu uma peça, chamada
"At the Hawk's Well" [O Poço
do Falcão, 1917], no estilo dos
dramas tradicionais do teatro
nô japonês. Um escritor japonês, por sua vez, adaptou "O
Poço do Falcão" como peça do
teatro nô, encenada em Tóquio
em 1949.
Samurais do Ocidente
Retornando à música, Puccini inspirou-se na música japonesa para compor sua ópera
"Madame Butterfly" (1907),
mas os japoneses, por sua vez,
adaptaram Puccini.
Mais recentemente, compositores japoneses, como Toru
Takemitsu, foram influenciados por ocidentais como Pierre
Boulez e John Cage, compositores que já tinham sentido a
atração da música do Japão.
Nas artes plásticas, a interação entre a descoberta ocidental do Japão e a descoberta japonesa do Ocidente também é
claramente visível.
Ernest Fenollosa, que chegou ao Japão em 1878 para lecionar na Universidade Imperial, tornou-se entusiasta da arte japonesa tradicional. Por estranho que pareça, ao fazê-lo
ele exerceu influência sobre artistas japoneses.
A descoberta japonesa dos
impressionistas se deu após a
descoberta um pouco anterior
da arte do Japão, especialmente das xilogravuras coloridas
dos séculos 18 e 19, por
Edouard Manet, Henri Toulouse-Lautrec, Vincent van Gogh e
outros. Artistas japoneses do final do século 19 foram, por sua
vez, inspirados pela obra de
Toulouse-Lautrec e seus contemporâneos.
No caso do cinema, estaríamos justificados em suspeitar
que a ascensão dos filmes sobre
samurais de Akira Kurosawa e
outros diretores japoneses deve algo à tradição do western
americano. Se for esse o caso, o
elogio teve sua recíproca quando John Sturges criou "Sete
Homens e Um Destino" (1960),
uma "tradução" cultural do famoso "Os Sete Samurais"
(1954), de Kurosawa.
Os australianos criaram a vívida frase cultural auto-irônica
"servilismo cultural" para descrever sua relação com a Europa, de modo geral, e a Inglaterra, em particular -uma subserviência cultural à potência colonizadora, apesar de se odiarem por isso.
Um sinal de servilismo cultural certamente é tomar algo do
exterior que já existia em seu
próprio país. O Japão dos séculos 19 e 20 exemplifica esse processo com clareza particular,
mas está muito longe de ser o
único a fazê-lo.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Escreve
na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Clara Allain .
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