São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

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Círculo virtuoso

Historiador inglês mostra como elementos culturais de um país são exportados e retornam atualizados

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Apesar do interesse recente manifestado por estudantes de arte, música, literatura e idéias pela história da chamada "recepção" de itens culturais diferentes em lugares e tempos distintos e entre diferentes grupos sociais, curiosamente pouca atenção vem sendo dada ao que se poderia chamar de "circularidade cultural".
A metáfora do círculo diz respeito a adaptações de objetos culturais estrangeiros que são tão completas que o resultado às vezes é reexportado com sucesso ao lugar de origem do objeto.
Exemplo disso é a circularidade entre os domínios do sagrado e do profano. Nos tempos do cristianismo primitivo, a igreja se apropriou do discurso e da iconografia oficiais do Império Romano, representando Deus ou Cristo de maneiras antes reservadas ao imperador. Nos primórdios da Europa moderna, o Estado às vezes se apropriava novamente desses temas.

Como no cinema
Alguns dos contemporâneos de Luís 14 consideravam que o rei cometera blasfêmia ao autorizar que fossem acesas luzes diante de sua estátua em Paris, como se ele fosse um santo.
Mas o rei estava simplesmente voltando a uma prática da Antigüidade romana. Outro tipo de circularidade é o que se dá entre a cultura "alta" (ou erudita) e "baixa" (ou popular). Escritores famosos da Renascença, como Ariosto, Rabelais, Shakespeare e Cervantes, buscaram inspiração na cultura popular de seus tempos, mas suas próprias obras retornaram ao povo, às vezes sob formas simplificadas.
Voltando do passado ao presente, um estudo da máfia siciliana feito por um sociólogo italiano comenta o que o autor do estudo chama de "identidades circulares". Membros da máfia gostam de assistir a filmes sobre a máfia e modificar sua aparência (roupas, óculos escuros e assim por diante) segundo o exemplo dado por Robert de Niro e outros atores.
Sociólogos e antropólogos já reconhecem o papel que eles próprios exercem na construção ou invenção das tradições que estudam. Os adeptos do candomblé recorrem a livros dos acadêmicos Roger Bastide e Pierre Verger, enquanto a tradição dos gaúchos, como bem observou Ruben Oliven, deve algo aos antropólogos norte-americanos Ralph Linton [1893-1953] e Donald Pierson [1900-95]. Alguns percursos circulares envolvem viagens entre continentes. Quando retornei ao Reino Unido depois de cumprir serviço militar na Ásia meridional, em 1957, comprei um tapete de orações muçulmano como suvenir. Na volta, com tempo para examinar o tapete mais de perto, descobri uma etiqueta dizendo "Made in Birmingham". Fabricado para o mercado religioso de exportação, o tapete foi repatriado como artigo turístico.
A música oferece muitos exemplos de circularidades intercontinentais. Tome-se, por exemplo, o muito conhecido desenvolvimento da música afro-americana no Brasil, em Cuba e nos EUA no século 20.
Alguns músicos no Congo têm se inspirado no trabalho de seus colegas em Cuba, e alguns músicos de Lagos [na Nigéria], no de seus colegas brasileiros. Em outras palavras, a África imita a África por intermédio da América, descrevendo uma trajetória circular, mas que não termina no lugar onde começou, já que cada imitação é também uma adaptação.

Ciclo da cana
Na literatura, Gabriel García Márquez descobriu as possibilidades literárias de sua região nativa no norte da Colômbia com a leitura de William Faulkner [1897-1962], cujo Condado de Yoknapatawpha é sob alguns aspectos o modelo que inspirou Macondo.
Mas hoje o mundo imaginário de García Márquez já conquistou a América do Norte, além de muitos outros lugares. De modo semelhante, os romances de José Lins do Rego, escritos uma geração antes e tratando das fazendas do Nordeste brasileiro, foram inspirados nos romances de Thomas Hardy [1840-1928], ambientados no oeste da Inglaterra. A história das relações culturais entre o Japão e o Ocidente ao longo dos séculos 19 e 20, em especial, oferece vários exemplos fascinantes desse tipo de circularidade.
Um escritor britânico que fez sucesso no Japão do século 19 foi o escocês Samuel Smiles, autor de "Self-Help" [Auto-Ajuda, 1859], coletânea de histórias de sucesso de indivíduos que saíram da pobreza e enriqueceram graças a seus próprios esforços e inteligência. O grande êxito desse livro pode sugerir que os japoneses tivessem se convertido aos valores vitorianos. Contudo, no século 17, o escritor popular Iharu Saikaku já tinha publicado uma coletânea de contos sobre pessoas empreendedoras cujo trabalho árduo foi recompensado com a conquista de riquezas.
Um outro exemplo: o poeta irlandês William Butler Yeats escreveu uma peça, chamada "At the Hawk's Well" [O Poço do Falcão, 1917], no estilo dos dramas tradicionais do teatro nô japonês. Um escritor japonês, por sua vez, adaptou "O Poço do Falcão" como peça do teatro nô, encenada em Tóquio em 1949.

Samurais do Ocidente
Retornando à música, Puccini inspirou-se na música japonesa para compor sua ópera "Madame Butterfly" (1907), mas os japoneses, por sua vez, adaptaram Puccini.
Mais recentemente, compositores japoneses, como Toru Takemitsu, foram influenciados por ocidentais como Pierre Boulez e John Cage, compositores que já tinham sentido a atração da música do Japão. Nas artes plásticas, a interação entre a descoberta ocidental do Japão e a descoberta japonesa do Ocidente também é claramente visível.
Ernest Fenollosa, que chegou ao Japão em 1878 para lecionar na Universidade Imperial, tornou-se entusiasta da arte japonesa tradicional. Por estranho que pareça, ao fazê-lo ele exerceu influência sobre artistas japoneses. A descoberta japonesa dos impressionistas se deu após a descoberta um pouco anterior da arte do Japão, especialmente das xilogravuras coloridas dos séculos 18 e 19, por Edouard Manet, Henri Toulouse-Lautrec, Vincent van Gogh e outros. Artistas japoneses do final do século 19 foram, por sua vez, inspirados pela obra de Toulouse-Lautrec e seus contemporâneos.
No caso do cinema, estaríamos justificados em suspeitar que a ascensão dos filmes sobre samurais de Akira Kurosawa e outros diretores japoneses deve algo à tradição do western americano. Se for esse o caso, o elogio teve sua recíproca quando John Sturges criou "Sete Homens e Um Destino" (1960), uma "tradução" cultural do famoso "Os Sete Samurais" (1954), de Kurosawa.
Os australianos criaram a vívida frase cultural auto-irônica "servilismo cultural" para descrever sua relação com a Europa, de modo geral, e a Inglaterra, em particular -uma subserviência cultural à potência colonizadora, apesar de se odiarem por isso. Um sinal de servilismo cultural certamente é tomar algo do exterior que já existia em seu próprio país. O Japão dos séculos 19 e 20 exemplifica esse processo com clareza particular, mas está muito longe de ser o único a fazê-lo.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Clara Allain .


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