São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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A ensaísta Kathrin Rosenfield responde a resenha publicada no caderno sobre o seu novo estudo
A lógica catastrófica do incesto

Kathrin Rosenfield
especial para a Folha

R esenhas negativas sempre têm vantagens: atiçam a vontade de responder e de aprimorar, aguçam o olhar e a discriminação. Devem, porém, conter algum argumento. Decididamente não se faz resenha criticando a "construção defeituosa" de uma frase isolada do seu contexto: "Creonte acusa recepção e habilmente dá novo prumo à conversa". Esse tipo de crítica sempre diz mais do resenhista do que do livro resenhado.
Minha análise da tradução hölderliniana de "Antígona" desenvolve, em detalhe, como o poeta alemão reconstitui os sinais diretos e indiretos da desordem provocada pelo incesto. Como ninguém, Hölderlin parece ter captado o problema do parentesco incestuoso que atinge as próprias noções da ordenação simbólica: os nomes e os títulos, as posições e as honras no interior da pólis e do lar. Ele mostra como a sucessão regrada das gerações e das distinções entre os membros da comunidade terminam por desarticular os modos de representação do tempo e do espaço. Meu argumento desdobra-se detalhadamente em vários níveis jurídico (o epiclerado), religioso (o miasma), privado (a família), público (o Estado), espacial (as relações entre casas) e temporal (a sobreposição de gerações sucessivas, ascendentes e descendentes).
O epiclerado -instituição que assegura a perenidade de uma linhagem por intermédio de um filho gerado pela filha do chefe morto- é um aspecto pouco comentado na literatura que elucida essa tragédia. Persegui as perspectivas que se abrem a partir da análise dessa instituição, discutindo os grandes comentários de Jebb, Knox e Segal a Hegel, Reinhardt e Schadewaldt, passando por Vidal-Naquet, Vernant e Loraux, entre outros.
Ressalte-se ainda que todos os episódios e hinos da tragédia foram minuciosamente analisados, conferindo traduções e interpretações em diferentes idiomas com os comentários dos principais intérpretes da versão de Hölderlin. Curioso que nada disso tenha sido sequer mencionado no que se apresenta como uma resenha ("Variações do trágico em Antígona", publicada no Mais! de 5/11/ 2000).
Uma vez que o resenhador isola e altera um dos meus argumentos, passando sob silêncio os múltiplos níveis de análise que se completam mutuamente, recapitulemos o que fora exposto da lógica catastrófica do incesto.
Antígona é filha e irmã de seu pai e filha e neta de sua mãe. Édipo, por seu casamento, anulou a sucessão regrada das gerações no tempo: ele deixou de ser filho de sua mãe e primo de Hemon, "recuando" para a posição de tio deste. O incesto faz com que os termos normais (filho, primo de primeiro ou segundo graus, tio, sobrinho etc.) se tornem insuficientes e sem pertinência. Tomemos, por exemplo, a posição de Antígona em relação a seu noivo. Uma vez que a filha de Édipo (primo de Hemon) foi gerada com a mãe (tia de Hemon), ela oscila entre prima de primeiro e de segundo grau, se aproximando do lugar da sobrinha.
Vejamos o porquê: o nome de parentesco para a neta (Antígona é neta e filha) de uma tia é: "prima de segundo grau". No entanto essa noção vale para uma prima engendrada por um pai que veio de "fora" (numa união exogâmica), porém não é mais pertinente quando esse pai é primo do sobrinho da mãe.
A dificuldade de nomear esses graus de parentesco deformados pelo incesto repercute em inúmeras insinuações do texto grego e do alemão. É bem verdade que as intrincadas torções da genealogia tebana -e da poesia de Sófocles e de Hölderlin- requerem alguma concentração, mas isso não justifica o tratamento superficial dos problemas simbólicos e poéticos, quando o resenhador critica os "absurdos (genea)lógicos" que eu teria introduzido. Esses "absurdos" constituem a própria trama da tragédia de Sófocles. Ter poeticamente salientado esse aspecto central constitui uma das contribuições maiores do poeta alemão. Meu comentário segue minuciosamente o enredo dessa trama.
A transcriação poética do texto de Sófocles por Hölderlin vem acompanhada de torções lexicais e sintáticas que devem ser vertidas para o português. Elas tornam visíveis sentidos ocultos que, por sua vez, exigem novos esforços interpretativos. Já em sua época Hölderlin foi objeto de críticas que o tempo foi capaz de anular. Versões classicistas, como a francesa de Paul Mazon, terminam por aplainar essa diversidade de sentidos. O cotejamento de traduções teve, necessariamente, de levar em conta essa multiplicidade de significações com o intuito de mostrar a íntima conexão entre a criação e o sentido. Lástima que o resenhador tenha confundido os problemas da transcriação poética e seu sentido filosófico com um "insuficiente" conhecimento de idiomas.


Kathrin Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e acaba de lançar "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (Editora L&PM).



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