São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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A voz do carrasco

Em entrevista, Jonathan Littell rebate a acusação de revisionismo atribuída ao romance "As Benevolentes", que, em três meses, vendeu mais de 300 mil exemplares

SAMUEL BLUMENFELD

Há apenas três meses, Jonathan Littell não existia. Pelo menos aos olhos do público. O sucesso fulgurante "Les Bienveillantes" [As Benevolentes, ed. Gallimard, 912 págs., 25, R$ 69] -que teve como ponto culminante o Prêmio Goncourt, conferido no último dia 6, e os 300 mil exemplares vendidos até a semana passada-, transformou esse desconhecido em personagem público.
A esse Jonathan Littell, objeto da curiosidade da mídia, atribuíram-se diversas vidas e diversas identidades. Circularam os rumores mais infundados. Richard Millet, seu editor na Gallimard, teria escrito "As Benevolentes", a menos que tivesse sido fosse o romancista Robert Littell, pai do autor... Em Barcelona, onde mora, Jonathan Littell falou sobre seu romance.
 

PERGUNTA - Desde seu lançamento, "As Benevolentes" foi coberto de superlativos e comparações elogiosas. O senhor ficou lisonjeado ou entrou em pânico?
JONATHAN LITTELL
- Nada disso. Vejamos a comparação de meu romance com "Guerra e Paz": as pessoas que afirmam isso me leram errado e leram errado Tolstói. Não é absolutamente o mesmo tipo de literatura. Em "Guerra e Paz" já existe a paz. Em meu romance há apenas a guerra. Existe outro nível de complexidade no romance de Tolstói. Um vaivém infinitamente superior entre vida normal e guerra. O tema de "As Benevolentes" é muito mais estreito. É o genocídio durante quatro anos, com algumas escapadas à direita e à esquerda. A ambição não é a mesma.

PERGUNTA - Como o senhor avalia o resultado final? "As Benevolentes" lhe agrada?
LITTELL
- Não se deve colocar assim a pergunta. É melhor indagar-se sobre o conceito inicial para avançar. Posso responder com uma citação de Georges Bataille: "Os carrascos não têm palavra ou, então, quando falam, é com a palavra do Estado". Os carrascos falam, existem até alguns que escrevem muito e mal. Eles chegam a contar coisas exatas em termos factuais. A maneira como o campo de Treblinka era organizado, por exemplo. Eichmann, por exemplo, não mente em seu processo. Ele diz a verdade.
Quando falo de palavra verdadeira, penso em uma palavra que pode revelar seus próprios abismos, como Claude Lanzmann conseguiu com as vítimas no filme "Shoah". Descobri a frase de Bataille depois de ter terminado meu livro. Ela veio me esclarecer em retrospectiva. No início, eu pensava que encontraria nos textos dos carrascos coisas às quais pudesse me agarrar.
Entre isso e todos os carrascos que freqüentei em minha carreira -na Bósnia, quando trabalhei no lado sérvio, na Tchetchênia, com os militares russos, no Afeganistão, com os talebans, na África, com os ruandeses ou congoleses-, pensava ter material para trabalhar. Mas, quanto mais avançava na leitura dos textos de carrascos, mais percebia que não havia nada ali.
Eu jamais poderia avançar se ficasse no registro da recreação ficcional clássica com o autor onisciente, a la Tolstói, que arbitra entre o bem e o mal. A única maneira era me colocar na pele do carrasco. Ora, eu tinha a experiência do carrasco. Eu os havia freqüentado. Parti do que eu conhecia, isto é, eu, com minha maneira de pensar e de ver o mundo, dizendo-me que ia entrar na pele de um nazista.

PERGUNTA - Mas se trata de um nazista pouco realista e não realmente verossímil.
LITTELL
- Concordo. Mas um nazista sociologicamente verossímil jamais poderia se exprimir como meu narrador. Aquele último jamais teria condições de dar esse esclarecimento sobre os homens que o rodeiam. Os que existiram, como Eichmann ou Himmler, e os que eu inventei. Mas Aue é um raio X que vasculha, um "scanner". Ele não é efetivamente um personagem verossímil.
Eu não buscava a verossimilhança, mas a verdade. Não há romance possível se nos fixarmos somente no registro da verossimilhança. A verdade romanceada é de uma ordem diferente da verdade histórica ou sociológica. A questão do carrasco é a grande questão levantada pelos historiadores do Holocausto há 15 anos. A única questão que resta é a motivação dos carrascos. Parece-me, depois de ter lido os trabalhos dos grandes pesquisadores, que eles chegam a um muro. Isso é muito visível em Christopher Browning. Ele chega a uma lista de potenciais motivações sem poder arbitrar entre elas. Alguns dão ênfase sobretudo ao anti-semitismo, outros à ideologia. Mas, no fundo, não sabemos. O motivo é simples. O historiador trabalha com documentos e, portanto, com as palavras de carrascos que são uma aporia. A partir daí, como construir um discurso?

PERGUNTA - Quais são as críticas de historiadores que mais o marcaram e o estimularam?
LITTELL
- Alguns levantaram questões interessantes sobre erros de interpretação. Um historiador comentou que eu havia interpretado mal a relação entre os SD (o serviço de segurança da SS) e a Gestapo, apresentando os homens do SD como mais idealistas que os brutos policiais da Gestapo. Pode ser que aí, como em outros momentos, eu me tenha enganado. É um romance.
Quando Vassili Grossman apresenta Eichmann em uma passagem de "Vida e Destino", sua descrição é completamente falsa. No entanto isso não diminui em nada o livro. Grossman via Eichmann como um super-homem desmesurado, que paira acima de tudo. Essa visão resulta dos materiais a que ele teve acesso na época. É impreciso, e daí? Quando Claude Lanzmann avalia que meu carrasco não é verossímil, que é insano, ele tem razão. Mas jamais teria havido o livro se eu tivesse escolhido um Eichmann como narrador. O temor de Lanzmann é que as pessoas só conheçam o Holocausto por meio de meu livro.
O contrário é evidente. As vendas das obras de Raul Hilberg e de Claude Lanzmann, aliás, aumentaram desde o lançamento do meu livro. Lanzmann e eu chegamos, a partir de uma mesma pergunta, a duas conclusões que são irredutíveis uma à outra. Ambas são verdadeiras. Nossa discussão não terminou.

PERGUNTA - A questão da língua também provocou debate sobre seu romance, que foi criticado por alguns anglicismos.
LITTELL
- Há anglicismos em meu romance, sim! E como! Eu sou um falante das duas línguas, e obrigatoriamente as línguas se contaminam entre si. Existe um trabalho magnífico do [crítico] Albert Thibaudet que mostra, em Flaubert, a influência dos provincianismos normandos sobre a língua literária do autor de "Madame Bovary". No início, isso foi considerado um defeito, mas a partir daí Flaubert produziu belezas.
Cada um tem suas particularidades lingüísticas. É interessante observar que, neste ano, vários prêmios literários foram concedidos a não-francófonos.
Nancy Huston é anglófona. No Reino Unido, há anos os principais escritores são indianos, paquistaneses, japoneses. E graças a eles a língua inglesa se enriquece.


A íntegra desta entrevista saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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