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A voz do carrasco
Em entrevista, Jonathan Littell rebate a acusação de revisionismo atribuída ao romance "As Benevolentes",
que, em três meses, vendeu mais de 300 mil exemplares
SAMUEL BLUMENFELD
Há apenas três meses, Jonathan Littell não existia. Pelo menos aos olhos
do público. O sucesso fulgurante "Les Bienveillantes" [As Benevolentes, ed.
Gallimard, 912 págs., 25, R$
69] -que teve como ponto culminante o Prêmio Goncourt,
conferido no último dia 6, e os
300 mil exemplares vendidos
até a semana passada-, transformou esse desconhecido em
personagem público.
A esse Jonathan Littell, objeto da curiosidade da mídia,
atribuíram-se diversas vidas e
diversas identidades. Circularam os rumores mais infundados. Richard Millet, seu editor
na Gallimard, teria escrito "As
Benevolentes", a menos que tivesse sido fosse o romancista
Robert Littell, pai do autor...
Em Barcelona, onde mora, Jonathan Littell falou sobre seu
romance.
PERGUNTA - Desde seu lançamento, "As Benevolentes" foi coberto de
superlativos e comparações elogiosas. O senhor ficou lisonjeado ou entrou em pânico?
JONATHAN LITTELL - Nada disso.
Vejamos a comparação de meu
romance com "Guerra e Paz":
as pessoas que afirmam isso me
leram errado e leram errado
Tolstói. Não é absolutamente o
mesmo tipo de literatura.
Em "Guerra e Paz" já existe a
paz. Em meu romance há apenas a guerra. Existe outro nível
de complexidade no romance
de Tolstói. Um vaivém infinitamente superior entre vida normal e guerra. O tema de "As Benevolentes" é muito mais estreito. É o genocídio durante
quatro anos, com algumas escapadas à direita e à esquerda. A
ambição não é a mesma.
PERGUNTA - Como o senhor avalia
o resultado final? "As Benevolentes" lhe agrada?
LITTELL - Não se deve colocar assim a pergunta. É melhor indagar-se sobre o conceito inicial
para avançar. Posso responder
com uma citação de Georges
Bataille: "Os carrascos não têm
palavra ou, então, quando falam, é com a palavra do Estado". Os carrascos falam, existem até alguns que escrevem
muito e mal. Eles chegam a
contar coisas exatas em termos
factuais. A maneira como o
campo de Treblinka era organizado, por exemplo. Eichmann,
por exemplo, não mente em
seu processo. Ele diz a verdade.
Quando falo de palavra verdadeira, penso em uma palavra
que pode revelar seus próprios
abismos, como Claude Lanzmann conseguiu com as vítimas no filme "Shoah".
Descobri a frase de Bataille
depois de ter terminado meu livro. Ela veio me esclarecer em
retrospectiva. No início, eu
pensava que encontraria nos
textos dos carrascos coisas às
quais pudesse me agarrar.
Entre isso e todos os carrascos que freqüentei em minha
carreira -na Bósnia, quando
trabalhei no lado sérvio, na
Tchetchênia, com os militares
russos, no Afeganistão, com os
talebans, na África, com os
ruandeses ou congoleses-,
pensava ter material para trabalhar. Mas, quanto mais avançava na leitura dos textos de
carrascos, mais percebia que
não havia nada ali.
Eu jamais poderia avançar se
ficasse no registro da recreação
ficcional clássica com o autor
onisciente, a la Tolstói, que arbitra entre o bem e o mal. A única maneira era me colocar na
pele do carrasco. Ora, eu tinha a
experiência do carrasco. Eu os
havia freqüentado. Parti do que
eu conhecia, isto é, eu, com minha maneira de pensar e de ver
o mundo, dizendo-me que ia
entrar na pele de um nazista.
PERGUNTA - Mas se trata de um nazista pouco realista e não realmente
verossímil.
LITTELL - Concordo. Mas um nazista sociologicamente verossímil jamais poderia se exprimir
como meu narrador. Aquele último jamais teria condições de
dar esse esclarecimento sobre
os homens que o rodeiam. Os
que existiram, como Eichmann
ou Himmler, e os que eu inventei. Mas Aue é um raio X que
vasculha, um "scanner". Ele
não é efetivamente um personagem verossímil.
Eu não buscava a verossimilhança, mas a verdade. Não há
romance possível se nos fixarmos somente no registro da verossimilhança. A verdade romanceada é de uma ordem diferente da verdade histórica ou
sociológica.
A questão do carrasco é a
grande questão levantada pelos
historiadores do Holocausto há
15 anos. A única questão que
resta é a motivação dos carrascos. Parece-me, depois de ter lido os trabalhos dos grandes
pesquisadores, que eles chegam a um muro.
Isso é muito visível em Christopher Browning. Ele chega a
uma lista de potenciais motivações sem poder arbitrar entre
elas. Alguns dão ênfase sobretudo ao anti-semitismo, outros
à ideologia. Mas, no fundo, não
sabemos. O motivo é simples. O
historiador trabalha com documentos e, portanto, com as palavras de carrascos que são uma
aporia. A partir daí, como construir um discurso?
PERGUNTA - Quais são as críticas de
historiadores que mais o marcaram
e o estimularam?
LITTELL - Alguns levantaram
questões interessantes sobre
erros de interpretação. Um historiador comentou que eu havia interpretado mal a relação
entre os SD (o serviço de segurança da SS) e a Gestapo, apresentando os homens do SD como mais idealistas que os brutos policiais da Gestapo.
Pode ser que aí, como em outros momentos, eu me tenha
enganado. É um romance.
Quando Vassili Grossman
apresenta Eichmann em uma
passagem de "Vida e Destino",
sua descrição é completamente
falsa. No entanto isso não diminui em nada o livro. Grossman
via Eichmann como um super-homem desmesurado, que paira acima de tudo. Essa visão resulta dos materiais a que ele teve acesso na época. É impreciso, e daí?
Quando Claude Lanzmann
avalia que meu carrasco não é
verossímil, que é insano, ele
tem razão. Mas jamais
teria havido o livro se eu tivesse
escolhido um Eichmann como
narrador. O temor de Lanzmann é que as pessoas só conheçam o Holocausto por meio
de meu livro.
O contrário é evidente. As
vendas das obras de Raul Hilberg e de Claude Lanzmann,
aliás, aumentaram desde o lançamento do meu livro. Lanzmann e eu chegamos, a partir
de uma mesma pergunta, a
duas conclusões que são irredutíveis uma à outra. Ambas
são verdadeiras. Nossa discussão não terminou.
PERGUNTA - A questão da língua
também provocou debate sobre seu
romance, que foi criticado por alguns anglicismos.
LITTELL - Há anglicismos em
meu romance, sim! E como! Eu
sou um falante das duas línguas, e obrigatoriamente as línguas se contaminam entre si.
Existe um trabalho magnífico
do [crítico] Albert Thibaudet
que mostra, em Flaubert, a influência dos provincianismos
normandos sobre a língua literária do autor de "Madame Bovary". No início, isso foi considerado um defeito, mas a partir
daí Flaubert produziu belezas.
Cada um tem suas particularidades lingüísticas. É interessante observar que, neste ano,
vários prêmios literários foram
concedidos a não-francófonos.
Nancy Huston é anglófona. No
Reino Unido, há anos os principais escritores são indianos,
paquistaneses, japoneses. E
graças a eles a língua inglesa se
enriquece.
A íntegra desta entrevista saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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francês podem ser encomendados
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