São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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O drama do reconhecimento

Grande nome do feminismo em psicanálise, Juliet Mitchell reelabora o conceito de histeria em "Loucos e Medusas"

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Juliet Mitchell é um dos nomes mais representativos do viés feminista em psicanálise. Neozelandesa radicada no Reino Unido, Mitchell vem publicando, desde os anos 1970, trabalhos interessantes e originais. "Loucos e Medusas - O Resgate da Histeria e do Efeito das Relações entre Irmãos sobre a Condição Humana", um de seus últimos livros, confirma o quilate de sua produção.
O texto é extenso, e o material analisado abrange estudos clínicos, discussões metapsicológicas, fatos etnológicos e história da psicanálise. Os capítulos, por isso, são desiguais na densidade do argumento e da informação, o que pode produzir certo desconforto lógico, sobretudo entre especialistas no assunto. Vencida essa barreira, porém, o ganho intelectual está garantido.
A tese de Mitchell é a de que o suposto desaparecimento da histeria do cenário clínico e cultural contemporâneo reflete os equívocos de seu nascimento teórico. Entre eles, o principal foi o recalque da figura do homem histérico. Os analistas obstinaram-se em negar as evidências, e isso comprometeu decisivamente o futuro da clínica da histeria.
Para ilustrar a negação, Mitchell narra um episódio eloqüente. Freud, ao relatar aos seus pares austríacos que observara casos de histerias masculinas no serviço de [seu professor Jean-Martin] Charcot, teve como resposta: "Bem, talvez em Paris, mas não em Viena". O recado parece ter sido entendido. Os pais fundadores da psicanálise desistiram de constatar histeria em homens, apesar das incontáveis afirmações de Freud sobre seus próprios sintomas histéricos.
Após um mau começo, outros tropeços. Com o reaparecimento da histeria masculina, depois das duas guerras mundiais, o problema recalcado retornou. Os psicanalistas, então, foram obrigados a se contorcer intelectualmente para salvaguardar o narcisismo de suas crenças. Como a histeria masculina "realmente" existia, era urgente encontrar uma explicação que desmentisse, na fantasia, o que a razão não podia desconhecer.
A explicação foi a redescrição do "trauma", berço conceitual da psicanálise. Nos homens, como nas mulheres, admitiram eles, a raiz da histeria era o trauma, mas o mecanismo de formação do sintoma era diferente nos dois sexos.
No homem, o trauma histerogênico era o do desamparo diante da morte, enquanto na mulher continuava sendo o da castração, retraduzido em termos de conflito quanto à "feminilidade". Dito de outra forma, a histeria masculina era uma defesa contra o trauma do desamparo produzido pela deficiência dos primeiros cuidados maternos; a feminina era uma reação desmedida à fantasia de castração, manifestada na exibição estrepitosa da feminilidade "como se" ou da "mascarada da feminilidade".
Mitchell contesta ambas as opiniões, articulando o trauma, o desamparo, a sexualidade e a morte em um novo arranjo etiogênico.
A histeria, afirma ela, "é uma resposta particular a aspectos da condição humana de vida e morte". Ela não pode, portanto, deixar de existir, por ser congenial ao surgimento do sujeito. O pensamento hierárquico-patriarcal dominante na psicanálise, contudo, privilegiou o eixo vertical "pai-que-castra/mãe-que-alimenta" e terminou por ocultar o fundamental na histeria, isto é, o valor afetivo das relações laterais entre irmãos.
Ecoando, aqui e ali, o mote lacaniano da histeria como núcleo do processo de subjetivação ou as sugestões de Maria Rita Kehl sobre a relevância teórica da função fraterna, a autora desdobra o raciocínio como se segue: no início da vida, a criança aspira a ser o único objeto do desejo materno-paterno, até a chegada do irmão. A partir daí, vem o trauma do "desalojamento" e os conseqüentes ciúme, inveja e desejo de destruição do rival.
O desalojamento é vivido como recusa de reconhecimento, sentimento de vazio e despossessão de si. Para compensar a perda imaginária, o sujeito recorre à espetacularização da sexualidade ou à mortificação do corpo por meio dos sintomas conversivos. No primeiro caso, a dramatização sexual visa a recapturar o investimento amoroso perdido; no segundo, a preservar o sentido de realidade da existência em seu nível mais elementar e concreto, a experiência da dor.
"Loucos e Medusas" é, antes de tudo, um ensaio sobre aquilo que podemos vir a ser quando sentimos que nosso pedido de reconhecimento é ignorado pelo Outro. Apenas autores como Mitchell são capazes de revelar as entranhas inconscientes desse drama com solidez, respeito e delicadeza. Um belo toque freudiano à "Marca Humana" [Companhia das Letras], de Philip Roth, ou ao "Fator Humano" [L&PM], de Graham Greene. Para ser lido, debatido e divulgado.


JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "O Vestígio e a Aura" (Garamond), entre outros.

LOUCOS E MEDUSAS
Autora:
Juliet Mitchell
Tradução: Maria Beatriz Medina
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/xx/ 21/2585-2000)
Quanto: R$ 49,90 (448 págs.)



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