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O drama do reconhecimento
Grande nome do feminismo em psicanálise,
Juliet Mitchell reelabora o conceito de histeria
em "Loucos e Medusas"
JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Juliet Mitchell é um dos
nomes mais representativos do viés feminista
em psicanálise. Neozelandesa radicada no Reino Unido, Mitchell vem publicando, desde os anos 1970, trabalhos interessantes e originais. "Loucos e Medusas - O
Resgate da Histeria e do Efeito
das Relações entre Irmãos sobre a Condição Humana", um
de seus últimos livros, confirma o quilate de sua produção.
O texto é extenso, e o material analisado abrange estudos
clínicos, discussões metapsicológicas, fatos etnológicos e história da psicanálise.
Os capítulos, por isso, são desiguais na densidade do argumento e da informação, o que
pode produzir certo desconforto lógico, sobretudo entre especialistas no assunto. Vencida
essa barreira, porém, o ganho
intelectual está garantido.
A tese de Mitchell é a de que
o suposto desaparecimento da
histeria do cenário clínico e
cultural contemporâneo reflete os equívocos de seu nascimento teórico. Entre eles, o
principal foi o recalque da figura do homem histérico. Os analistas obstinaram-se em negar
as evidências, e isso comprometeu decisivamente o futuro
da clínica da histeria.
Para ilustrar a negação, Mitchell narra um episódio eloqüente. Freud, ao relatar aos
seus pares austríacos que observara casos de histerias masculinas no serviço de [seu professor Jean-Martin] Charcot,
teve como resposta: "Bem, talvez em Paris, mas não em Viena". O recado parece ter sido
entendido. Os pais fundadores
da psicanálise desistiram de
constatar histeria em homens,
apesar das incontáveis afirmações de Freud sobre seus próprios sintomas histéricos.
Após um mau começo, outros tropeços. Com o reaparecimento da histeria masculina,
depois das duas guerras mundiais, o problema recalcado retornou. Os psicanalistas, então,
foram obrigados a se contorcer
intelectualmente para salvaguardar o narcisismo de suas
crenças. Como a histeria masculina "realmente" existia, era
urgente encontrar uma explicação que desmentisse, na fantasia, o que a razão não podia
desconhecer.
A explicação foi a redescrição
do "trauma", berço conceitual
da psicanálise. Nos homens,
como nas mulheres, admitiram
eles, a raiz da histeria era o
trauma, mas o mecanismo de
formação do sintoma era diferente nos dois sexos.
No homem, o trauma histerogênico era o do desamparo
diante da morte, enquanto na
mulher continuava sendo o da
castração, retraduzido em termos de conflito quanto à "feminilidade". Dito de outra forma,
a histeria masculina era uma
defesa contra o trauma do desamparo produzido pela deficiência dos primeiros cuidados
maternos; a feminina era uma
reação desmedida à fantasia de
castração, manifestada na exibição estrepitosa da feminilidade "como se" ou da "mascarada da feminilidade".
Mitchell contesta ambas as
opiniões, articulando o trauma,
o desamparo, a sexualidade e a
morte em um novo arranjo
etiogênico.
A histeria, afirma ela, "é uma
resposta particular a aspectos
da condição humana de vida e
morte". Ela não pode, portanto, deixar de existir, por ser
congenial ao surgimento do sujeito. O pensamento hierárquico-patriarcal dominante na
psicanálise, contudo, privilegiou o eixo vertical "pai-que-castra/mãe-que-alimenta" e
terminou por ocultar o fundamental na histeria, isto é, o valor afetivo das relações laterais
entre irmãos.
Ecoando, aqui e ali, o mote
lacaniano da histeria como núcleo do processo de subjetivação ou as sugestões de Maria
Rita Kehl sobre a relevância
teórica da função fraterna, a
autora desdobra o raciocínio
como se segue: no início da vida, a criança aspira a ser o único objeto do desejo materno-paterno, até a chegada do irmão. A partir daí, vem o trauma
do "desalojamento" e os conseqüentes ciúme, inveja e desejo
de destruição do rival.
O desalojamento é vivido como recusa de reconhecimento,
sentimento de vazio e despossessão de si. Para compensar a
perda imaginária, o sujeito recorre à espetacularização da
sexualidade ou à mortificação
do corpo por meio dos sintomas conversivos.
No primeiro caso, a dramatização sexual visa a recapturar o
investimento amoroso perdido; no segundo, a preservar o
sentido de realidade da existência em seu nível mais elementar e concreto, a experiência da dor.
"Loucos e Medusas" é, antes
de tudo, um ensaio sobre aquilo que podemos vir a ser quando sentimos que nosso pedido
de reconhecimento é ignorado
pelo Outro. Apenas autores como Mitchell são capazes de revelar as entranhas inconscientes desse drama com solidez,
respeito e delicadeza. Um belo
toque freudiano à "Marca Humana" [Companhia das Letras], de Philip Roth, ou ao "Fator Humano" [L&PM], de Graham Greene. Para ser lido, debatido e divulgado.
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "O Vestígio e a
Aura" (Garamond), entre outros.
LOUCOS E MEDUSAS
Autora: Juliet Mitchell
Tradução: Maria Beatriz Medina
Editora: Civilização Brasileira
(tel. 0/xx/ 21/2585-2000)
Quanto: R$ 49,90 (448 págs.)
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