São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Concreto desarmado

Antologia poética de Arnaldo Antunes mostra o lado mais pop da vanguarda

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não há leitor brasileiro de poesia recente que desconheça Arnaldo Antunes; se não for pelo livro, será pela canção, essa jóia da cultura do século 20 em que o Brasil se expressa com tanta força, com tanta gente, para todo o mundo.
O Antunes de livro tem história já larga: antes mesmo do primeiro disco dos Titãs, de 1984, estava na rua o primeiro livro, "Ou e", em 1983. Se artista se mede pela permanência e pela persistência, aí está um poeta com tudo para continuar sendo lido.
Mas Arnaldo Antunes não precisaria dessa sucessão para ser lido nem para ser legível. De um modo que vale a pena examinar, sua poesia encontrou força expressiva notável já nos primeiros livros (e nos primeiros discos, igualmente): a gente via, ouvia, lia em sua arte a experiência megalopolitana viva, nascida do ventre concretista, pela contração da forma contendo grande energia, pela economia de meios querendo dizer muito, pela conversa franca com a informação visual, mas com a novidade de um elemento de erotismo, difuso mas perceptível.
Tudo isso ganhando força no plano da canção, que era roqueira e procurava um ar de rebeldia -mais do que no conjunto dos Titãs, era em Arnaldo Antunes ele mesmo que se concentrava essa dimensão rebelde: o agressivo corte de cabelo, a tensa expressividade dos olhos saltados, os movimentos conscientemente quebrados, jogados contra o paradigma da harmonia, por assim dizer, deslizante do samba.

Qualquer meio
Era um artista total a valer-se de qualquer meio, de todos os meios, corpo, voz, palavra, imagem, para dizer algo vital, que era compreendido na hora pelo leitor/ouvinte, para além do muro da mercadoria rock (e da mercadoria mais refinada chamada livro, também).
Era uma senha contra a estagnação, que só seria perceptível se o sujeito topasse a empreitada de ver que o mero movimento da rotina era também paralisia: o pulso ainda pulsa.
No poema chamado "O Pulso", por sinal, aparece de corpo inteiro um dos procedimentos recorrentes da poesia de Antunes. Trata-se da enumeração exaustiva: como se o poeta quisesse esgotar o tema (esgotar: dar esgoto, deixar fluir), repassando todas as variações dele, somos chamados a percorrer uma rede inescapável de doenças, do corpo e da alma, começando por peste bubônica e terminando em afasia, mas a cada giro do refrão (refrão: o que refreia, inclusive o esgoto) reafirmando a vida, o desejo, o pulso que ainda pulsa.
O leitor, atingido pela força da série desentranhada à força, vai fazer perguntas para si mesmo (para desgosto dos formalistas radicais, a poesia continua fazendo perguntas sobre a vida), atordoado pelos nomes, conjurado por eles.
Arnaldo Antunes tem outra predileção formal: mágico hábil na frente dos desatentos que somos, gosta de desfazer os nexos óbvios entre forma e conteúdo, significante e significado, superfície e abismo.

Sem tragédias
Exemplo bom é o título de sua antologia: "Como É que Chama o Nome Disso". É uma pergunta sem ponto de interrogação; é uma brincadeira infantil com a linguagem; e é um programa de ação: ali onde a rotina da língua criou uma craca cristalizada, o poeta vai catar uma trinca, uma rachadura por onde passar a dúvida, para esgotar, mais uma vez e sempre, o que ali se recolhia, pus sintoma da doença, vida em forma de tensão.
Além de sua notável criação poética, com uma seleta de cada um dos dez livros, mais letras de canções e textos inéditos, o volume traz também uma entrevista, não tão longa quanto as que estão nos volumes dedicados a Tom Zé e a José Miguel Wisnik (é a forma contida do concreto, que, porém, não tem mais, em Arnaldo Antunes, o viés desenvolvimentista dos anos 1950), mas de bom valor para entender alguns lados da forma que cria, como aquele em que o poeta menciona seu gosto por desdramatizar as tragédias: elas ainda estão ali, aqui, mas não são apresentadas como choro. Daí a força da voz de Antunes, a voz do corpo, algo cavernosa, mistura de metal e tábua, e a voz da letra, seca, rarefeita, mas sensual, quer dizer, viva.


LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Quatro Negros" (L&PM).

COMO É QUE CHAMA O NOME DISSO
Autor: Arnaldo Antunes
Editora: Publifolha (tel. 0/xx/11/ 3224-2186)
Quanto: R$ 59 (392 págs.)



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