São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lições de cinema

Da intuição até o domínio absoluto da técnica, do som como elemento definidor à pressão dos grandes estúdios, oito diretores fundamentais explicam seu trabalho e apontam as tendências da sétima arte

GODARD Perversões do autor

A perversão da noção de autor é incontestavelmente uma herança negativa da "nouvelle vague". Antes, aqueles que eram considerados autores dos filmes eram os roteiristas, uma tradição que vinha da literatura. Nos créditos, os nomes dos diretores vinham em último lugar, a não ser para pessoas como [John] Ford ou [Frank] Capra, mas unicamente porque eles também eram produtores. Mas nós dissemos: "Não, a direção é o fato fundador e verdadeiramente criador do filme. E Hitchcock [1899-1980] é autor tanto quanto Balzac [1799-1850]". A partir daí desenvolvemos a política dos autores, que consistia em apoiar o autor, mesmo quando ele era fraco.
Apoiávamos mais facilmente um mal filme de autor que um bom filme de alguém que não o era. E depois o conceito se inverteu, se transformou em um culto ao autor, e não a seu trabalho. Então todo mundo se tornou autor, e, hoje, quase que o cenarista pede para ser reconhecido como autor dos pregos que colocou no cenário. O termo não quer dizer mais nada, portanto. [...] Acredito que, quando lançamos a política dos autores, nos enganamos ao privilegiar a palavra "autor", enquanto na verdade é a palavra "político" que era preciso ressaltar.
Pois o verdadeiro objetivo desse conceito não era demonstrar quem faz a direção, mas, principalmente, explicar o que faz a direção. [...]
Eu acredito que existem duas maneiras de enfrentar um filme. A primeira é a das pessoas que fazem cinema mais clássico e tradicional, mas que vão até o fim. O que entendo por isso é que elas começam tendo vontade, a qual se transforma pouco a pouco em idéia.
Elas fazem anotações, começam a ver os cenários aparecendo em sua cabeça, depois imagens, depois uma narrativa, uma construção etc. A partir de todos esses elementos, passam a preparar o filme da melhor forma possível, um pouco do mesmo modo que um arquiteto prepara as plantas de uma casa.
Depois há a filmagem, que consiste em realizar o melhor possível e da maneira mais agradável o que foi desenhado nas plantas. E finalmente há a montagem, o último momento de possibilidade de invenção e de semiliberdade. Essa é uma abordagem. A minha é diferente. Eu começo tendo uma espécie de sentimento abstrato, de atração por alguma coisa sem compreendê-la bem, e o fato de filmá-la faz com que eu a verifique, pronto para recuar ou mudar enormemente as coisas. Somente no fim eu posso efetivamente verificar se minha intuição estava certa e, é claro, geralmente é tarde demais.
Eu diria que é um pouco como na pintura moderna, na qual se faz uma tentativa, depois se apaga e recomeça. É preciso explicar que eu sempre parti da possibilidade real de fazer o filme, quer dizer, o projeto é montado com um produtor antes mesmo que eu tenha escrito o roteiro.

História de amor
Então, quando tudo isso está pronto, é preciso ir em frente. É um pouco como uma história de amor. A gente fica junto, decide se casar e depois não é mais possível recuar. É preciso levantar de manhã, fazer as contas, se perguntar como vamos viver, trabalhar... Há uma obrigação que não podemos evitar. [...]
Existem dois níveis de leitura em um filme: o visível e o invisível. O que você coloca diante da câmera é o visível. E, se houver apenas isso, é um telefilme que você faz. Os verdadeiros filmes, para mim, são aqueles em que existe uma espécie de invisível, que só pode ser visto através daquele visível e unicamente porque ele é agenciado ou orientado assim.
Muitos realizadores hoje se contentam em filmar o visível. Deveriam se fazer mais perguntas. Ou talvez sejam os críticos que deveriam fazê-las. Mas não depois que os filmes estão prontos, como acontece hoje. Não, aí é tarde demais, é preciso fazê-las antes. E é preciso fazê-las como um juiz que interroga um suposto culpado. [...]
Eu nunca aderi ao conceito dos atores que conseguem fazer acreditar que são o personagem. O exemplo definitivo é sem dúvida a peça de Tchekov na qual a atriz faz crer que é uma gaivota. Muitas pessoas acreditam, eu não. Eu nunca dirigi realmente os atores. Com Anna (Karina) o problema nem mesmo se colocava, pois ela mesma se dirigia. Meus comentários muitas vezes se reduziam a "mais forte", "mais devagar" ou, "se você não entendeu, então pelo menos diga como eu teria entendido". Em geral, deixo os atores fazerem sua própria criação. É claro que o fazem sozinhos. Meu trabalho se restringe então a lhes dar boas condições: um bom enquadramento, uma boa profundidade de campo etc.
Não consigo fazer o enorme trabalho de direção de atores que se pode encontrar em [Ingmar] Bergman [1918], [George] Cukor [1899-1983] ou [Jean] Renoir [1894-1979], quando podemos ver que eles amavam os atores como um pintor ama seus modelos.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: + política: Os fantasmas da memória
Próximo Texto: ALMODÓVAR - A técnica é uma ilusão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.