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O ensaísta discute os best-sellers filosóficos e comenta o filme "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", que deve estrear no Brasil em fevereiro
A filosofia no banheiro
por Jacques Rancière
A Filosofia como Maneira de Viver" ("La Philosophie comme Manière de Vivre"), "Pequena Filosofia da Manhã" ("Petite Philosophie du Matin"), "101 Experiências de Filosofia Cotidiana" ("101 Expériences de Philosophie Quotidienne"), "Antimanual de Filosofia" ("Antimanuel de Philosophie"), "As Consolações da Filosofia" ("Les Consolations de la Philosophie")... O filósofo que examinasse neste período de festas os títulos que figuram nas prateleiras das livrarias parisienses ficaria satisfeito de ver seu ídolo disputar com vantagem sobre Bin Laden a condição de vedete da atualidade editorial. A filosofia está na moda, não resta dúvida. Há alguns anos foi o sucesso dos "cafés filosóficos", onde qualquer um, com a ajuda de um animador, podia vir debater aos domingos de manhã as grandes questões da existência humana. Depois vieram as consultas de filosofia, a filosofia a serviço dos problemas da empresa, jornadas ou semanas filosóficas organizadas com sucesso em várias cidades, grandes e pequenas,
convidadas a terem sua hora de filosofia.
Num segundo momento, claro, o filósofo se interroga:
o que é exatamente essa filosofia triunfante? E, se conhece seu ofício, ele não pode deixar de observar a tonalidade geral dessa vitrine filosófica. Dos "cafés-philo"
aos best-sellers filosóficos, uma mesma afirmação se repete. Ela opõe a filosofia viva, aquela pela qual cada um
pode enfrentar os problemas de sua vida concreta, à filosofia universitária, a que se ensina como professor ou
que se estuda para vir a ser professor. Em verdade, alguns dos autores pertencem à corporação universitária.
Mesmo assim fazem coro com os outros para reivindicar uma filosofia que desça da cátedra para o domínio
da vida.
Resta saber exatamente que "vida" é essa à qual a filosofia é devolvida. Os espíritos mal-humorados insistem
que essa restituição da filosofia a cada um é também
uma maneira de confinar cada um em seus problemas
existenciais. Filósofos "universitários" como Kant ou
Fichte enfrentavam a todo-poderosa faculdade de teologia sob o olhar de estudantes que sonhavam com a
Revolução Francesa e de funcionários monárquicos
que podiam fechar seus cursos a qualquer momento.
Quanto ao filósofo adormecido em cada um de nós, este
é chamado a se dedicar a outros problemas que não os
do fundamento da legitimidade dos Estados: os "verdadeiros" problemas que cada um enfrenta em seu cotidiano, tão logo delegou aos especialistas a preocupação
com as questões de justiça ou de liberdade coletivas.
O leitor das "Consolações da Filosofia" (Rocco), de
Alain de Botton, aprenderá primeiro, com o exemplo
de Sócrates, a não mais sofrer com sua "falta de popularidade". Depois disso, ser-lhe-á permitido buscar em
Epicuro os meios de resistir às preocupações com o dinheiro, em Montaigne, os de suportar seus problemas
sexuais, em Schopenhauer, a arma para enfrentar suas
decepções amorosas. Assim a filosofia será devolvida à
sua função: mudar a vida dos que a ela se devotam. Pouco importa então a contradição que há em opor a filosofia viva à sua história universitária para no final propor
apenas resumos ou textos escolhidos dos grandes filósofos. Pois os filósofos privilegiados -Sócrates, Epicuro, Sêneca, Montaigne, Schopenhauer- dão eles mesmos a demonstração de uma filosofia de não-profissionais, idêntica à experiência de uma vida a mudar.
O único problema é saber que vida pode ser mudada e
até onde vai essa mudança. Nietzsche, que havia praticado muito Platão e lido apaixonadamente Schopenhauer, tinha uma idéia a esse respeito. O que se aprendia na escola de Sócrates, dizia, não eram os prazeres da
vida preservada da popularidade, era um novo tipo de
esporte de combate no qual brilhar aos olhos do mundo. Esse tipo de esporte destinava-se evidentemente a
amadores privilegiados, jovens ricos que não tinham
outra coisa a fazer na existência a não ser transformar
sua vida em obra de arte. E a obra de arte que os fascinava por excelência, a nova meta que a filosofia destinava
à vida deles, era Sócrates moribundo. Transformar sua
vida para fazê-la filosófica tornando a filosofia viva era
aprender a fugir o mais rápido, o mais longe possível.
Pedir à filosofia para ser uma arte de viver que remedeie as pequenas preocupações da existência não é sempre, se levarmos a coisa a sério, pedir-lhe para chegar a
isto: retirar dessas preocupações sua seriedade, retirar
dos imperativos da vida a crença a eles associada? Podemos ler Schopenhauer para aprender a relativizar nossos males de amor. Mas ele, Schopenhauer, pede outra
coisa: que nos subtraiamos à visão do mundo onde esses males se fazem sentir, que aprendamos a não mais
querer, a nos tornar espectadores. Seguramente isso
pode ser dito de maneira mais ou menos dramática. Assim, há somente coisas agradáveis nas "101 Experiências de Filosofia Cotidiana" propostas por Roger-Pol
Droit: "Esperar sem fazer nada", "Acompanhar os movimentos das formigas", "Tomar uma ducha de olhos
fechados", "Sair do cinema para a plena luz do dia",
"Despertar sem saber onde", "Tomar o metrô sem ir a
lugar nenhum". Mas percebe-se bem aonde conduzem
todos esses exercícios de desorientação sensível. A experiência filosófica da estranheza do mundo tem por
termo a convicção de que a "verdadeira vida" não passa
de "uma ficção entre outras", que "de toda forma se interromperá".
Essa maneira de mudar a vida será realmente o que se
requer, no momento em que cada um de nós é chamado a expulsar a "sinistrose" e a dar sua contribuição entusiasta à nova vida do cibermercado, do euro e das fusões grandiosas entre gigantes da comunicação planetária? Pois o que se pede a Sócrates e a Schopenhauer,
afinal, é que rebaixem sua exigência, que transformem
sua maneira de ensinar a deixar este mundo em maneira de "habitá-lo no cotidiano". Para isso trata-se apenas
de mudar um pouco o sentido do exercício. O filósofo-jornalista convidava a "tomar uma ducha de olhos fechados", sem saber portanto de onde vem o jato, restringindo-se à pura sensação da pele molhada. A jornalista-filósofa, autora da "Pequena Filosofia da Manhã",
retira dessas abluções sua suspeita sofisticação schopenhaueriana. "Entre os gestos tônicos da manhã, terminar a toalete por um jato de água fria em todo o corpo é
dos mais estimulantes", assegura-nos Catherine Rambert no 127º de seus "365 pensamentos para ser feliz todos os dias".
Essa filosofia é seguramente menos perigosa. Ela se
inscreve sem problema na infinidade de recomendações que nos fazem, em centenas de revistas e programas de TV, médicos, psicólogos, higienistas, nutricionistas e outros, para nos ensinar a cuidar bem de nosso
eu e a viver harmoniosamente a vida. Mas então surge
outra vez a questão: há realmente necessidade de filosofia se esta apenas repete o refrão midiático do cuidado
de si no cotidiano? Eis aí o fundo do problema: os defensores da "filosofia na vida" querem ter simultaneamente a excitação de percorrer na carruagem platônica o
céu resplandecente das idéias e a mornidão do conforto
do pensamento e do corpo nas menores coisas da vida.
Sócrates morrendo para a vida da opinião e um bom
misturador de água.
Nas imagens filosóficas há sempre um que olha o céu
e um que olha a terra. Para ter o céu e a terra ao mesmo
tempo é preciso certamente voltar-se para outras ficções. De fato, ao lado das consolações filosóficas que as
livrarias oferecem, uma outra consoladora iniciava,
graças ao DVD, uma nova etapa de sua fabulosa carreira. Essa consoladora, a pequena Amélie Poulain, ponta-de-lança da indústria cinematográfica francesa, resolve
exatamente o casamento problemático do céu para onde fugimos e da terra onde nos enraizamos. "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" ("Le Fabuleux Destin
d'Amélie Poulain") oferece a conciliação exemplar de
duas teses opostas: em primeiro lugar, é preciso escapar
da monotonia do real no ideal; em segundo, é preciso
retornar do céu do ideal ao real.
Por um lado, Amélie é a fadinha que muda, por sua
simples decisão, a vida de todos os que a cercam, aliviando os corações inconsoláveis, unindo as almas solitárias, punindo os maus, recompensando os bons e
pondo em movimento os sedentários. Mas tudo isso seria apenas ilusão se aquela que projeta seu céu de sonho
na vida dos outros não se ocupasse também dela mesma e não aprendesse a trocar seu sonho pela ocasião
que o real prosaico oferece e não voltará a oferecer, sob
a figura de um rapaz aparentemente muito esperto.
A ficção é mais bela que o real. O real é mais belo que
qualquer ficção. Amélie faz todo espectador participar
do gozo dessa irrefutável filosofia e reserva a experiência schopenhaueriana da desorientação do mundo familiar ao mesquinho quitandeiro racista, trocando seu
par de chinelos ou pondo creme para os pés no lugar de
seu dentifrício. Às experiências equívocas da filosofia
ela opõe o casamento feliz do céu e da terra. Os espíritos
mal-humorados dirão certamente que esse casamento
do céu e da terra se parece muito às bodas da publicidade e da mercadoria e que essa filosofia sorridente da vida cotidiana lembra um pouco demais a teologia da
mercadoria sensível-supra-sensível que Marx analisava
numa outra época.
Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de
"O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.
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