São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O ensaísta discute os best-sellers filosóficos e comenta o filme "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", que deve estrear no Brasil em fevereiro

A filosofia no banheiro

por Jacques Rancière

A Filosofia como Maneira de Viver" ("La Philosophie comme Manière de Vivre"), "Pequena Filosofia da Manhã" ("Petite Philosophie du Matin"), "101 Experiências de Filosofia Cotidiana" ("101 Expériences de Philosophie Quotidienne"), "Antimanual de Filosofia" ("Antimanuel de Philosophie"), "As Consolações da Filosofia" ("Les Consolations de la Philosophie")... O filósofo que examinasse neste período de festas os títulos que figuram nas prateleiras das livrarias parisienses ficaria satisfeito de ver seu ídolo disputar com vantagem sobre Bin Laden a condição de vedete da atualidade editorial. A filosofia está na moda, não resta dúvida. Há alguns anos foi o sucesso dos "cafés filosóficos", onde qualquer um, com a ajuda de um animador, podia vir debater aos domingos de manhã as grandes questões da existência humana. Depois vieram as consultas de filosofia, a filosofia a serviço dos problemas da empresa, jornadas ou semanas filosóficas organizadas com sucesso em várias cidades, grandes e pequenas, convidadas a terem sua hora de filosofia.
Num segundo momento, claro, o filósofo se interroga: o que é exatamente essa filosofia triunfante? E, se conhece seu ofício, ele não pode deixar de observar a tonalidade geral dessa vitrine filosófica. Dos "cafés-philo" aos best-sellers filosóficos, uma mesma afirmação se repete. Ela opõe a filosofia viva, aquela pela qual cada um pode enfrentar os problemas de sua vida concreta, à filosofia universitária, a que se ensina como professor ou que se estuda para vir a ser professor. Em verdade, alguns dos autores pertencem à corporação universitária. Mesmo assim fazem coro com os outros para reivindicar uma filosofia que desça da cátedra para o domínio da vida.
Resta saber exatamente que "vida" é essa à qual a filosofia é devolvida. Os espíritos mal-humorados insistem que essa restituição da filosofia a cada um é também uma maneira de confinar cada um em seus problemas existenciais. Filósofos "universitários" como Kant ou Fichte enfrentavam a todo-poderosa faculdade de teologia sob o olhar de estudantes que sonhavam com a Revolução Francesa e de funcionários monárquicos que podiam fechar seus cursos a qualquer momento. Quanto ao filósofo adormecido em cada um de nós, este é chamado a se dedicar a outros problemas que não os do fundamento da legitimidade dos Estados: os "verdadeiros" problemas que cada um enfrenta em seu cotidiano, tão logo delegou aos especialistas a preocupação com as questões de justiça ou de liberdade coletivas.
O leitor das "Consolações da Filosofia" (Rocco), de Alain de Botton, aprenderá primeiro, com o exemplo de Sócrates, a não mais sofrer com sua "falta de popularidade". Depois disso, ser-lhe-á permitido buscar em Epicuro os meios de resistir às preocupações com o dinheiro, em Montaigne, os de suportar seus problemas sexuais, em Schopenhauer, a arma para enfrentar suas decepções amorosas. Assim a filosofia será devolvida à sua função: mudar a vida dos que a ela se devotam. Pouco importa então a contradição que há em opor a filosofia viva à sua história universitária para no final propor apenas resumos ou textos escolhidos dos grandes filósofos. Pois os filósofos privilegiados -Sócrates, Epicuro, Sêneca, Montaigne, Schopenhauer- dão eles mesmos a demonstração de uma filosofia de não-profissionais, idêntica à experiência de uma vida a mudar.
O único problema é saber que vida pode ser mudada e até onde vai essa mudança. Nietzsche, que havia praticado muito Platão e lido apaixonadamente Schopenhauer, tinha uma idéia a esse respeito. O que se aprendia na escola de Sócrates, dizia, não eram os prazeres da vida preservada da popularidade, era um novo tipo de esporte de combate no qual brilhar aos olhos do mundo. Esse tipo de esporte destinava-se evidentemente a amadores privilegiados, jovens ricos que não tinham outra coisa a fazer na existência a não ser transformar sua vida em obra de arte. E a obra de arte que os fascinava por excelência, a nova meta que a filosofia destinava à vida deles, era Sócrates moribundo. Transformar sua vida para fazê-la filosófica tornando a filosofia viva era aprender a fugir o mais rápido, o mais longe possível.
Pedir à filosofia para ser uma arte de viver que remedeie as pequenas preocupações da existência não é sempre, se levarmos a coisa a sério, pedir-lhe para chegar a isto: retirar dessas preocupações sua seriedade, retirar dos imperativos da vida a crença a eles associada? Podemos ler Schopenhauer para aprender a relativizar nossos males de amor. Mas ele, Schopenhauer, pede outra coisa: que nos subtraiamos à visão do mundo onde esses males se fazem sentir, que aprendamos a não mais querer, a nos tornar espectadores. Seguramente isso pode ser dito de maneira mais ou menos dramática. Assim, há somente coisas agradáveis nas "101 Experiências de Filosofia Cotidiana" propostas por Roger-Pol Droit: "Esperar sem fazer nada", "Acompanhar os movimentos das formigas", "Tomar uma ducha de olhos fechados", "Sair do cinema para a plena luz do dia", "Despertar sem saber onde", "Tomar o metrô sem ir a lugar nenhum". Mas percebe-se bem aonde conduzem todos esses exercícios de desorientação sensível. A experiência filosófica da estranheza do mundo tem por termo a convicção de que a "verdadeira vida" não passa de "uma ficção entre outras", que "de toda forma se interromperá".
Essa maneira de mudar a vida será realmente o que se requer, no momento em que cada um de nós é chamado a expulsar a "sinistrose" e a dar sua contribuição entusiasta à nova vida do cibermercado, do euro e das fusões grandiosas entre gigantes da comunicação planetária? Pois o que se pede a Sócrates e a Schopenhauer, afinal, é que rebaixem sua exigência, que transformem sua maneira de ensinar a deixar este mundo em maneira de "habitá-lo no cotidiano". Para isso trata-se apenas de mudar um pouco o sentido do exercício. O filósofo-jornalista convidava a "tomar uma ducha de olhos fechados", sem saber portanto de onde vem o jato, restringindo-se à pura sensação da pele molhada. A jornalista-filósofa, autora da "Pequena Filosofia da Manhã", retira dessas abluções sua suspeita sofisticação schopenhaueriana. "Entre os gestos tônicos da manhã, terminar a toalete por um jato de água fria em todo o corpo é dos mais estimulantes", assegura-nos Catherine Rambert no 127º de seus "365 pensamentos para ser feliz todos os dias".
Essa filosofia é seguramente menos perigosa. Ela se inscreve sem problema na infinidade de recomendações que nos fazem, em centenas de revistas e programas de TV, médicos, psicólogos, higienistas, nutricionistas e outros, para nos ensinar a cuidar bem de nosso eu e a viver harmoniosamente a vida. Mas então surge outra vez a questão: há realmente necessidade de filosofia se esta apenas repete o refrão midiático do cuidado de si no cotidiano? Eis aí o fundo do problema: os defensores da "filosofia na vida" querem ter simultaneamente a excitação de percorrer na carruagem platônica o céu resplandecente das idéias e a mornidão do conforto do pensamento e do corpo nas menores coisas da vida. Sócrates morrendo para a vida da opinião e um bom misturador de água.
Nas imagens filosóficas há sempre um que olha o céu e um que olha a terra. Para ter o céu e a terra ao mesmo tempo é preciso certamente voltar-se para outras ficções. De fato, ao lado das consolações filosóficas que as livrarias oferecem, uma outra consoladora iniciava, graças ao DVD, uma nova etapa de sua fabulosa carreira. Essa consoladora, a pequena Amélie Poulain, ponta-de-lança da indústria cinematográfica francesa, resolve exatamente o casamento problemático do céu para onde fugimos e da terra onde nos enraizamos. "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" ("Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain") oferece a conciliação exemplar de duas teses opostas: em primeiro lugar, é preciso escapar da monotonia do real no ideal; em segundo, é preciso retornar do céu do ideal ao real.
Por um lado, Amélie é a fadinha que muda, por sua simples decisão, a vida de todos os que a cercam, aliviando os corações inconsoláveis, unindo as almas solitárias, punindo os maus, recompensando os bons e pondo em movimento os sedentários. Mas tudo isso seria apenas ilusão se aquela que projeta seu céu de sonho na vida dos outros não se ocupasse também dela mesma e não aprendesse a trocar seu sonho pela ocasião que o real prosaico oferece e não voltará a oferecer, sob a figura de um rapaz aparentemente muito esperto.
A ficção é mais bela que o real. O real é mais belo que qualquer ficção. Amélie faz todo espectador participar do gozo dessa irrefutável filosofia e reserva a experiência schopenhaueriana da desorientação do mundo familiar ao mesquinho quitandeiro racista, trocando seu par de chinelos ou pondo creme para os pés no lugar de seu dentifrício. Às experiências equívocas da filosofia ela opõe o casamento feliz do céu e da terra. Os espíritos mal-humorados dirão certamente que esse casamento do céu e da terra se parece muito às bodas da publicidade e da mercadoria e que essa filosofia sorridente da vida cotidiana lembra um pouco demais a teologia da mercadoria sensível-supra-sensível que Marx analisava numa outra época.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Paulo Neves.



Texto Anterior: + 5 livros Sobre alquimia
Próximo Texto: José Arthur Giannotti: O que pode um quadro significar
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.