São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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O filósofo descreve a sua "experiência vivida" ao visitar uma exposição com obras do pintor italiano Giorgio Morandi em Paris

O que pode um quadro significar

Reprodução
"Natureza Morta", óleo sobre tela do pintor italiano Giorgio Morandi (1890-1964)


por José Arthur Giannotti

Meu fascínio pela pintura sempre foi acompanhado pela enorme curiosidade em saber o que um quadro significa. Bem sei que não vou descobrir a essência da pintura, mas me contentaria em encontrar certa semelhança ligando várias obras, capaz de lhes dar sentido. Se me movo no elemento da pintura figurativa, sei que um quadro é sempre mais do que a imagem. Mas o que vem a ser esse mais?
Os primeiros homens deixaram nas cavernas o desenho de suas mãos. Bastava colocá-las sobre a parede e borrifá-las com um pigmento qualquer para que o contorno ficasse gravado a testemunhar uma existência de que, talvez, não se tenha outra notícia além desse traço marcado numa pedra, desse fóssil de um perfil e de um gesto. No entanto, é a partir daí que começa o trabalho do pintor. O pintor contemporâneo, porém, se move num mundo poluído de imagens, multimídia, onde se vêem bebês dançando, anunciando, falando ao telefone como se fossem gente grande. Que sentido pode ter, nessas condições, a imagem que fossiliza um objeto ou um gesto?
Os antigos egípcios figuravam deuses anexando ao corpo humano a cabeça de falcão, ou ao corpo de um leão a cabeça de mulher. A colagem testemunhava o sobrenatural, porquanto somente um visível recomposto possuía a virtude de ir além de uma natureza pensada como incapaz de transcender a si mesma. A imagem era algo que representava aquilo que não podia ser dito como algo naturalmente medrado. Quando isso foi possível, quando a physis passou a ser pensada como potência vindo a ser ato, os deuses puderam ser representados por figuras humanas. Não é sintomático que o Islã, ao afirmar, contra a Trindade cristã e a variação narrativa dos Evangelhos, a unicidade tanto de Deus quanto da palavra proferida por seu único profeta, tenha proibido o emprego das imagens? Um monoteísmo rigorosamente identitário haveria de ser expresso de uma só vez, recusando assim a indeterminação do imagiado. No entanto a palavra do profeta trai, necessita da metáfora para exprimir sub-repticiamente os múltiplos sentidos da divindade.
Neste mundo de imagem em que estamos mergulhados a distorção feita pela imagem pictórica se torna ainda mais enigmática. Além de imitar, por meio de um artifício, a transcendência da natureza, também precisa se haver com o significado oculto de uma segunda natureza, em que um número muito grande de objetos já são imagens. Não há dúvida de que não existe natureza em si. A pintura de uma paisagem sugere casas e caminhos, assinalando determinados hábitos de morar e de caminhar. Quando, porém, se vive num mundo povoado de objetos tecnológicos, os sentidos deles se entranham de tal modo que entre a primeira e a segunda natureza ocorre um salto de qualidade, visto que essa última se forma pelo cruzamento de planos naturais com outros planos cuja artificialidade provém da aplicação das ciências, de um conhecimento objetivado. Sob esse aspecto, de certo modo, nos tornamos politeístas.
Até mesmo as figuras públicas nas quais acreditamos se nos apresentam por ícones habitando um olimpo cinematográfico para onde endereçamos nossos anseios cotidianos.
Como funciona hoje em dia a artificialidade da composição pictórica? Também é construída a imagem do triângulo que se desenha sobre a folha de papel. Mas, quando se faz geometria, o traçado, na sua concretude, exemplifica de maneira distorcida propriedades do conceito triângulo. Para que se possa demonstrar uma propriedade desse conceito é preciso descartar as propriedades visíveis da figura, ater-se a certas relações entre os lados e os ângulos, por exemplo, desprezando as singularidades do fato. E, quando se empresta ao triângulo imagiado uma visibilidade superior àquela da imagem visível, quando é mero "eidos", convém expulsar os artistas de uma república bem conceituada. Platão que o diga.
A artificialidade de qualquer imagem pictórica sublinha, em contrapartida, o aspecto representante dela em prejuízo do representado. Importam as características visíveis dessa imagem na qualidade de signo. Mas como funciona esse signo? Resume-se a criar entre as partes de um quadro um sistema de remissões do mesmo tipo da relação que uma faca, disposta na mesa, tece com o garfo e a colher? A análise de um quadro, desse modo, haveria de se ater sobretudo à lógica de sua visibilidade, à maneira como o espírito se torna presente para o olho.
Este tem sido o caminho preferido pela estética contemporânea, a tal ponto que Giulio Carlo Argan ("Arte Moderna", Cia. das Letras), numa brilhante apresentação da obra de Giorgio Morandi, afirma sem rebuços que ela somente pode ser interpretada numa chave fenomenológica (pág. 602 da edição italiana). O pintor, diz ele, não parte de uma forma dada, de um sentido predeterminado da linha, do volume, da tonalidade, pois o fim do processo não resulta num espaço teórico, mas num espaço concreto onde se vê uma substância física, a densidade maior ou menor da matéria. A linha não é, pois, o limite da coisa, mas o limite e a mediação entre valores tonais comunicantes; o volume não é o relevo obtido pelo claro-escuro, mas a distância calibrada entre planos coloridos etc. Segue-se que tudo é relação, determinando-se no curso da experiência da pintura.
Não duvido de que a obra de Morandi, como a de tantos outros pintores, coloque problemas fenomenológicos, mas a fenomenologia bastaria para explicá-la? Esta é a pergunta, inspirada em Wittgenstein, que faria a Argan. E para tentar respondê-la preciso mergulhar num exemplo. Tive a oportunidade de visitar, no Museu de Arte Moderna de Paris, uma exposição intitulada "Dans l'Écart du Réel", que selecionava trabalhos de Morandi executados entre 1940 e 1960. Mostrava "in concreto" como sua obra se articula como uma fuga: dado o tema, se seguem variações. Sendo esse pintor suficientemente conhecido no Brasil, tendo sido essa mesma exposição analisada em outros jornais, permito-me descrever qual foi então "minha experiência vivida".
Logo na entrada me deparei com uma de suas primeiras telas (1918), testemunho de suas ligações com De Chirico, mas que também me invocou Picabia, pois combina objetos mecânicos. Estava ali para sublinhar a distância que se abre entre essa composição, resultante do cruzamento de planos e figuras se desenvolvendo no interior de uma caixa figurada, portanto construção de um espaço geométrico lembrando o vazio metafísico, e aqueles outros quadros afigurando garrafas, potes e pequenas caixas que, de tanto serem repetidos, se tornam familiares como qualquer objeto do mundo cotidiano. Com uma enorme diferença: enquanto os objetos à mão constituem pontos de passagem a indicar comportamentos -a cadeira sugere o sentar etc.- , as figuras das garrafas desde logo congelam e escondem o guardar e o derramar, ocultam o gesto real para sublinhar diversas nuanças no ver o mesmo representado.
Ao contrário dos artistas realistas, Morandi retira da garrafa seu rótulo e outras características capazes de individualizá-la como objeto do mundo para se fixar primeiramente na singularidade de sua mera presença plástica. Sabemos que, para isso, pintava a própria garrafa, revestindo-a de pó ou a enchendo de tinta. No entanto, a disposição dos quadros na mostra me empurrava para outros quadros antes mesmo de terminar o exame daquele diante do qual me postara. A repetição da mesma garrafa impunha ao olhar um ritmo que se cunhava nas telas, mas de tal modo que a reiteração da imagem tinha o efeito de obliterar sua relação com a garrafa denotada. Não é o que acontece quando se repete obstinadamente a mesma palavra, que assim perde seu significado?
Essa dança do olhar era interrompida por pausas que me levavam a mergulhar numa tela ali presente. Descobria então um espaço que se corporificava, por exemplo, graças à junção de dois planos, distintos sobretudo pela diferença no matiz da mesma cor, limitados pelo retângulo da mesa suportando a célebre garrafa canelada, tendo ao lado potes e tigelas familiares. O olho se detinha nos diferentes perfis, nas diferentes tonalidades dos objetos pintados de branco, como se agora eu os estivesse vendo por meio de óculos. E trocando de óculos o quadro se compunha pela soma de películas diferentes. Nesse momento, de fato, era um espaço que se mostrava pelos planos molhados de cores nebulosas, densas de tonalidades apenas sugeridas, singularizando objetos que às vezes se fundiam um no outro, mas que exibiam sua identidade na disposição que passavam a ocupar nessa coreografia.
O quadro ao lado, porém, me puxava para mostrar como a mesma garrafa, o mesmo pote e as duas tigelas agora se dispunham de maneira diferente na mesma mesa, vista, porém, de outro ângulo, contra um fundo cinzento sem nenhum outro relevo além daquele constituído por sua cor. E assim, de quadro em quadro, na medida em que os mesmos objetos eram apresentados sob aspectos diferentes, fossem neles mesmos, fossem em seu relacionamento com os outros, cada imagem passava a ser investida de suas combinações possíveis. Na diversidade de suas diversas presenças visíveis, os múltiplos aspectos do mesmo transformavam a mesmidade dele no feixe de suas relações virtuais. A imagem de algo, o sinal do mesmo, conforme vinha a carregar em si a virtualidade de suas combinações possíveis, constituía-se como elemento de uma sintaxe formada por aqueles objetos que se apresentavam no cruzamento de suas possibilidades de vínculo.
Não há dúvida de que em cada tela um objeto exibe sua individualidade densa. Cada imagem da mesma garrafa consiste numa figura que se contém a si mesma no seio do dispositivo que a contém. Consiste numa singularidade muito distante da exposição de um conceito, de um universal indiferente na medida em que a imagem é apenas o caso de uma regra. Sua presença de garrafa singular difere, pois, daquele traçado que representa o triângulo, porquanto está prenhe de matéria visível, contida no seu contorno, mas igualmente matéria que se individualiza mediante as diferenças com as matérias de outros corpos. Mas, de outro lado, essa mesma imagem, graças ao trabalho da memória e da imaginação a depositar nela seus modos já vistos no passado e a serem vistos no futuro, é parte de um jogo de linguagem não-verbal. A garrafa sai desse quadro e se dá como elemento da linguagem de Morandi, sinal transformando-se em signo, ao lado de outros objetos igualmente providos de suas possibilidades de vínculo, criando um mundo, o mundo do pintor Morandi.
Em contraposição ao futurismo, a pintura de Morandi é um libelo contra a segunda natureza, cria sua própria linguagem, na qual os objetos assumem valores na medida em que se negam como objetos tecnológicos. O bebê se comportando no outdoor como adulto enaltece as virtudes da informática, as imagens plásticas de Morandi nos ensinam uma técnica para olhar imagens como fontes de intimidades.
Essa transformação do sinal em signo a análise fenomenológica não pode apreender, na medida em que se atém a valores visíveis, deixando de lado a universalidade deles enquanto elementos de quadros possíveis. A linguagem de um pintor é mais rica do que um sistema de referências do tipo daquelas que o garfo tem com a faca, referências noemáticas, como se diz na linguagem da fenomenologia, porquanto uma garrafa de Morandi se reporta ao pote e à tigela também de Morandi, vale dizer, aos trabalhos que ele pode criar.
Consigo admirar Morandi quando entendo sua técnica de apresentar objetos de seu mundo. O pintor é o seu mundo. Mas, se isso for verdade, compreendo desde logo que um quadro não é belo em si mesmo. Vejo sua beleza quando aprendo um estilo, um código, mas também quando aprendo a ver como esse estilo é deformado para apresentar certas virtualidades, capazes de determinar este ou aquele quadro, diferentes contudo do código estabilizado. Somente assim é linguagem, capacidade de dizer o novo. Com as devidas ressalvas, porquanto o jogo de linguagem de um pintor abre o espaço para o seu falsário.

José Arthur Giannotti é filósofo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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