São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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+ polêmica

O ensaísta Hans Ulrich Gumbrecht responde aos comentários de Márcio Seligman-Silva

O Holocausto e as boas intenções

Hans Ulrich Gumbrecht
especial para a Folha

No Mais! de 16/12/01 Márcio Seligman-Silva critica meu relato "e minha crítica" das mais recentes posições que alguns intelectuais alemães adotaram para fazer face ao drama nacional causado pelo antigo projeto nacional de exterminar a "raça judia". Embora eu não duvide por um segundo das melhores intenções de Seligman-Silva de fazer uma contribuição racional e eticamente responsável para essa discussão de importância internacional (nem duvide das boas intenções daqueles intelectuais alemães com quem ele prefere concordar), sinto que, como autor nascido na Alemanha e ex-cidadão da República Federal da Alemanha, não posso tolerar a impressão produzida (de maneira bastante explícita) pela intervenção de Seligman-Silva de que eu esteja contribuindo para "encobrir" e, portanto, para reprimir a memória do Holocausto. Minha intenção é o oposto disso.
Compartilho totalmente a opinião de Seligman-Silva de que é vital para os alemães continuar dando ao Holocausto uma posição central em sua memória histórica, "embora uma posição não exclusivamente central". Mas discordo profundamente dele (e de alguns daqueles intelectuais alemães cujas opiniões parecem moldar hoje certas decisões dos principais políticos alemães), discordo profundamente deles quanto às estratégias por meio das quais esse objetivo poderia ser melhor alcançado. Aqui vai minha exposição de nossas três principais discrepâncias:

1) Fundar uma nova identidade para a nação alemã exclusivamente sobre a memória do Holocausto envolve o risco de produzir e sustentar uma certeza moral à qual os alemães se qualificam menos que qualquer outra nação -e qualquer outra intelligentsia nacional. Pois qual poderia ser a consequência de "fundar uma nova identidade nacional sobre a memória do Holocausto"? A única resposta que me ocorre, bastante banal, eu temo, é que isso "signifique" a excelente intenção de evitar novas tentativas de exterminar a "raça judia" (ou exterminar qualquer outra nação ou minoria nacional) no futuro da Alemanha. Mas tenho o forte sentimento de que essa boa intenção não basta (no sentido de que não é especificamente autocrítica o suficiente) para a fundação de uma nova identidade nacional, especialmente para a fundação de uma nova identidade nacional diante do passado especificamente alemão. Tendo desistido, como reação puramente simbólica, a uma responsabilidade herdada que continua sendo insuportável para mim, tendo desistido de minha cidadania alemã, talvez não seja mais meu problema o que, "além do reconhecimento do Holocausto", essa nova identidade alemã deva conter. Como já disse, no entanto, tenho o forte sentimento de que fazer isso depender exclusivamente do reconhecimento do Holocausto produz boas sensações demais para alemães demais com demasiada facilidade.

2) Uma segunda estratégia para enfrentar o passado sobre a qual Seligman-Silva parece discordar de mim é a proposta de não conceder aos inventores, aos executores e talvez até à sociedade que, afinal, efetuou o Holocausto (ao tentar não enxergá-lo), de não conceder aos agentes e aos perpetradores do Holocausto o generoso esforço da compreensão. Eu me recuso a "compreender" o Holocausto porque os esforços de "compreensão" não ajudam a produzir uma "normalização" por meio da inevitável implicação de que qualquer coisa que possa ser compreendida pertence, afinal, ao leque de potenciais ações e comportamentos que definem o significado do conceito de "humano". Em vez de tentar normalizar, encobrir e em última instância reprimir a memória do Holocausto, como Seligman-Silva parece pensar, recusar o esforço da compreensão histórica aos agentes do Holocausto apenas ressalta sua eterna inaceitabilidade e sua unicidade histórica.

3) Finalmente, em vez de elogiar (e talvez superestimar) a determinação do Estado Alemão reunificado de criar monumentos públicos em comemoração ao Holocausto no centro de Berlim, como faz Seligman-Silva, eu argumento que a questão do perdão à nação alemã e aos indivíduos naturais da Alemanha deve recair sob a lógica da redenção. Eu mesmo, tendo nascido de pais alemães na Alemanha três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial (e tendo trabalhado, entre outras coisas, sob um supervisor acadêmico que, pouco antes de sua morte em 1996, teve de confessar que fora membro das SS), é claro que aceito para mim mesmo essa lógica da redenção. Ela consiste, nesse caso preciso, de três condições: primeiro, que os alemães que não foram agentes do Holocausto se disponham a assumir essa responsabilidade e fornecer essa satisfação que, por diversos motivos, os verdadeiros agentes históricos não estavam qualificados a fornecer. Segundo, os alemães e a Alemanha como nação devem admitir que, antes que possa haver a redenção (com base num espírito de sacrifício e paciência), sua relação com a nação judia e com cada indivíduo judeu não será simétrica. Terceiro, que não há reivindicação nem condição (especialmente condição imposta pelos alemães) sobre quando o momento da redenção será (ou deverá) ser alcançado.

A culpa alemã Tendo apresentado posições semelhantes em discussões nacionais e internacionais sobre possíveis reações ao trauma histórico do Holocausto, ouvi várias vezes (e sempre discordei desse comentário) que eu exagerava em meus sentimentos sobre a "culpa alemã". Mas nunca ouvi ou li que, como Márcio Seligman-Silva parece sugerir, minha posição contribua para "encobrir" e "reprimir" a memória do Holocausto. Espero que eu tenha conseguido corrigir aqui essa impressão.
Quero finalmente acrescentar que Karl Heinz Bohrer, outro intelectual alemão aproximadamente da minha geração, com cujas opiniões Márcio Seligman-Silva parece identificar minhas próprias posições em um grau que nega a mim mesmo qualquer atitude intelectual, permitam-me acrescentar que Bohrer nunca foi (como Márcio Seligman-Silva escreve claramente) aluno (nem admirador) de Martin Heidegger. Mas posso entender que o fato de associar Bohrer (e, indiretamente, a mim) a Heidegger torne mais convincente (embora não mais fundamentada) a opinião sugerida de que as posições de Bohrer e as minhas (convergentes, mas não idênticas) sejam sintomas da ascensão de um novo nacionalismo alemão.
Não posso imaginar uma alegação que eu deseje rejeitar com maior veemência.


Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É autor de, entre outros, "Modernização dos Sentidos" (ed. 34).

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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