São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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+ sociedade

Ensaísta norte-americana faz autocrítica do credo politicamente correto e "progressista" e defende a artificialidade dos direitos humanos

Os antolhos da esquerda

Susie Linfield
especial para a Folha

O ano é 1956 para a esquerda? Bem, é.
Em todo o mundo, a esquerda foi arremessada a confusão e crise com o discurso de Kruschov expondo (alguns dos) crimes de Stálin, em 1956. Não foram só os membros do Partido Comunista que ficaram atônitos com as revelações de Kruschov; progressistas de todos os matizes -de sindicalistas a trotskistas- se viram forçados, caso fossem honestos e corajosos o bastante, a reavaliar crenças antigas e caras.
O 11 de setembro lançou aqueles de nós que se vêem como progressistas -aqueles que acreditam em democracia, feminismo, direitos humanos e socialismo- a uma crise semelhante à de 1956. Com isso não quero dizer que os fundamentalistas islâmicos que declararam guerra "aos infiéis" (entre os quais tantos de seus correligionários) sejam stalinistas, ainda que os dois grupos decerto compartilhem algumas características. Quero dizer que devemos, se formos honestos e corajosos o bastante, reavaliar algumas de nossas crenças mais antigas e caras. O questionamento da autoridade deve começar por nós mesmos.
Será que estamos preparados para isso? Não tenho certeza de que nos sairemos melhor do que os nossos ancestrais nos anos 50; anos de correção política adotada por nossa própria vontade resultaram em formas complicadas, estridentes e obtusas de abordar (ou seria evitar?) o mundo. Eu devo dizer que considero este texto basicamente como uma autocrítica; mas sei, igualmente, que, embora o universo de "progressistas" a quem me dirijo não seja infinito, ele é maior do que uma pessoa apenas.
O santo graal de boa parte do pensamento esquerdista ao longo das duas ou três décadas passadas vem sendo o relativismo cultural. Aterrorizados com a idéia de que nos vissem como racistas, imperialistas, arrogantes ou "ocidentais" demais, desviamos o olhar de (e até apoiamos, às vezes) barbarismos de toda espécie. Com isso veio também uma estranha reverência por "culturas tradicionais" -estranha para aqueles que se consideram como racionalistas objetivos-, pelo menos se essas culturas florescem no chamado Terceiro Mundo.
Por exemplo, uma aluna minha defendeu a mutilação genital feminina na África sob a alegação de que era "tradicional". Verdade, respondi, como a escravidão no sul dos Estados Unidos. "Isso é diferente!", exclamou ela. Ah, mas não é. De fato, se Marx estivesse escrevendo hoje, ele seria vilificado por criticar o ramerrão da vida rural, já que hoje esta seria interpretada -não obstante todas as evidências em contrário- como forma de inteligência. E há o ópio do povo, que de alguma estranha maneira se transformou em um grito consciente, ou melhor, dialético, de libertação nacional. Ah, mas não é.
A amarga ironia é que essa tentativa de nos libertarmos do racismo resultou em uma visão de mundo racista. De que outra maneira podemos classificar nossa deliberada ignorância sobre a agonia de tantos que vivem nos países subdesenvolvidos: as câmaras de tortura que literalmente infestam todos os países árabes, o milhão de "mártires" na lunática guerra entre Irã e Iraque, os milhares de execuções praticadas na China, o jugo grotesco sobre as mulheres? (Os éditos do Taleban quanto às mulheres fazem com que as leis nazistas de Nuremberg pareçam quase amenas, ainda que em espírito os dois conjuntos de normas sejam iguais.) Nossa "solidariedade" para com o Terceiro Mundo foi muitas vezes o contrário disso.


Aterrorizados com a idéia de que nos vissem como racistas, imperialistas ou "ocidentais" demais, desviamos o olhar de barbarismos de toda espécie


Outra ironia: nossa crença nos direitos humanos de alguma maneira ajudou a traí-los. Muitas vezes me dizem, hoje em dia, que os direitos humanos são inalienáveis -como se direitos, à maneira dos genes ou do DNA, residissem dentro de nós desde o nascimento. Conveniente, isso, pois quem precisa defender e muito menos criar o que seria inato? Mas direitos não são naturais: são produtos humanos artificiais, o resultado de pensamento deliberado, da história, de trabalho ético e político. Não herdamos direitos: os fazemos. Quando deixamos de construir instituições que lhes dêem forma (e optamos por recorrer a sensações que os sentimentalizam), eles deixam de existir.
Hannah Arendt disse-o bem, em 1951, em palavras que ainda hoje se aplicam: "Nenhum paradoxo da política contemporânea está mais repleto de ironia pungente do que a discrepância entre os esforços dos idealistas bem-intencionados que teimosamente insistem em encarar como "inalienáveis" aqueles direitos humanos de que desfrutam apenas os habitantes de países prósperos e civilizados e a situação das pessoas desprovidas de direitos (...) A igualdade (...) não nos é dada, mas resulta da organização humana, na medida em que seja guiada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um grupo, com base em nossa decisão de garantir a todos direitos mutuamente iguais".
Começando no século 18 e continuando até a metade do século passado, a esquerda sempre se definiu como defensora do conhecimento, ciência, secularismo, progresso, pensamento cético e liberdades universais (não-relativas). Tudo isso foi horrivelmente revertido; em lugar dos valores robustos de nossos ancestrais, temos racionalizações tímidas e assustadas para toda espécie de ideologias e práticas supersticiosas.
O 11 de setembro -e com isso quero dizer não só o massacre no World Trade Center, mas a teia de visões de mundo e organizações reacionárias e odientas que o atentado revelou com força inconfundível- é um chamado à ação. Há momentos em que as coisas mudam, em que a história se dobra, se bem que não chegue a quebrar. Estamos em um momento como esse. E, porque aqui estamos, precisamos desaprender o lastimável hábito de pressupor que a verdade esteja no mensageiro e não na mensagem. Se um neoliberal ou conservador tiver mais a nos dizer do que Noam Chomsky, que seja.
Toda a moralidade começa com o realismo: nossa capacidade de ver o mundo como é, em lugar de como queremos que seja, precisa ser, portanto, daqui por diante (e sempre deveria ter sido), o ponto de partida da política de esquerda. Será que somos honestos e corajosos o suficiente (o que nesse caso quer dizer também se estamos assustados a ponto de) para abandonar nossas fantasias vergonhosas sobre os oprimidos e nossas racionalizações vergonhosas nascidas da culpa, da arrogância e da indiferença? Nossas vidas, e certamente a espécie de mundo -se houver algum- que legaremos às futuras gerações, dependem disso.

Susie Linfield é professora de jornalismo cultural e crítica na Universidade de Nova York.
Copyright: Project Syndicate/Forum 2000.

Tradução de Paulo Migliacci.


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