São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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+ política

Na atualidade, o esquerdismo voluntarista tem a mesma matriz ideológica do neoliberalismo

Ambiguidades do Estado democrático

Tarso Genro
especial para a Folha

Todo o sentido emancipatório da modernidade parece ruir sob um mar de ajustes e imprecações neoliberais, sem maiores resistências dos trabalhadores e da sociedade civil. A dialética democrática "emancipação-regulação" pode ser confinada em três grandes movimentos históricos, numa fase em que se evidenciam os limites da forma histórica democrática, no contexto da globalização financeira:
"No primeiro período, a emancipação foi sacrificada às exigências regulatórias dos Estados e confinada quase só a movimentos anti-sistêmicos. No segundo período, a regulação estatal nos países centrais tentou integrar esses projetos emancipatórios e anti-sistêmicos, desde que fossem compatíveis com a produção e a reprodução social capitalista; longe de se tratar de uma verdadeira síntese da regulação e emancipação, constituiu uma nítida subordinação dos projetos emancipatórios aos projetos regulatórios. No terceiro período, essa falsa síntese evoluiu para uma mútua desintegração da regulação e da emancipação" (1), fundada numa profunda fragmentação social.
Neste terceiro período, que é o atual, lembremo-nos das contradições do "garantismo" dos direitos da cidadania, lá na sua origem. O último discurso de Robespierre perante a Convenção (10 Termidor 1794) é uma peça radical, ao mesmo tempo perplexa e confusa, sobre os destinos da Revolução. Ele permite perceber, através da retórica do orador, os impasses da "emancipação-regulação" e "adianta" a crise do sistema democrático contemporâneo.
Robespierre coloca-se em defesa da nação, da República, da Revolução. Mas fala para quem? Fala para o povo em nome do povo. Falando assim, quer que a lei penal tenha "algo de vago, pois, sendo a dissimulação e a hipocrisia as características atuais dos conspiradores, é preciso que a Justiça possa apreendê-los sob todas as formas" (2). Robespierre quer, assim, uma quase desregulamentação do delito "político", para neutralizar os inimigos do Estado.
Mais adiante, Robespierre, que supunha encarnar o próprio Estado, corteja o povo: "Povo, tu, que és temido, bajulado, desprezado, tu, soberano reconhecido, sempre tratado como escravo, lembra-te: por toda a parte onde a Justiça não reina, são as paixões dos magistrados que reinam (...)" (3). Robespierre refere-se, aqui, ao mesmo magistrado que, segundo ele, deveria lidar com leis penais "vagas". Mas como sair desse borgiano labirinto? Ora, com leis penais vagas qualquer magistrado pode emprestar uma força decisória maior à "paixão" e menor à razão: a razão feita legalidade imprecisa adquire a sua força regulatória no arbítrio.
Na questão dos "limites da liberdade", então, é que está revelada a ambiguidade que percorre o Estado democrático. Qual é a ambiguidade do discurso de Robespierre? O projeto democrático que não quer precisar os seus limites -regular-se plenamente- é, ao mesmo tempo, possibilidade de radicalização democrática e de totalitarismo.
As crescentes regulações sociais-democratas, que foram "concedidas" ao povo, formaram o "Estado de Bem-Estar" que materializa, na prática, de forma substantiva, a "democracia formal" (4). Embora tenha sido uma experiência de curta duração, o projeto social-democrata afirmou direitos. Podemos perceber que, para buscar alguma legitimação no mundo do trabalho, a reação neoliberal à social-democracia também não pôde prescindir de uma certa "iconização do povo", (que agora) "consiste em abandonar o povo a si mesmo" (5). Como? Agora endeusando-o, como fazia Robespierre, não mais como ser livre e dotado de direitos sociais: agora como consumidor livre, que aceita o congelamento da democracia pela ausência de regulamentos afirmativos.
Assim o esquerdismo voluntarista, que sacraliza o movimento e rejeita formas institucionais de protagonismo social, tem a mesma matriz ideológica do neoliberalismo. Como? Esse esquerdismo hipostasia o povo "de forma pseudo-sacral" (6), para instituí-lo como "padroeiro" de uma distante revolução, que o torna politicamente inofensivo no presente. (Não foi de graça que Hobsbawm disse que o neoliberalismo é uma espécie de anarquismo da classe média baixa).
Em consequência, o contribuinte-consumidor alheio à política ou o cidadão-político sem forma de exercício concreto de poder são ambos ineptos para exercer o poder-violência democraticamente. Eles trocam a sua condição de cidadão pela de consumidor (no neoliberalismo) e espectador do futuro (no esquerdismo voluntarista).
Contribuinte-consumidor (no neoliberalismo) e cidadão-político (na visão esquerdista) como povo ou classe não exercem, então, nenhuma influência direta sobre as decisões públicas. O cidadão-consumidor e o espectador da revolução futura não fazem a história no cotidiano, pois se abrigam na mesma visão metafísica de democracia, que gera duas fontes de alienação política: aquela que subsume a cidadania no exercício do consumo e aquela que se nega a produzir conquistas dentro da ordem.

Notas:
1. SANTOS, Boaventura de Souza, "A Crítica da Razão Indolente - Contra o Desperdício da Experiência", Cortez Editora, pág. 164.
2. ROBESPIERRE, Maximilien de, "Discursos e Relatórios na Convenção". Eduerj/Contraponto, pág. 195.
3. Idem, pág. 202.
4. ALTVATER, Elmar, "Os Desafios da Globalização e da Crise Ecológica para o Discurso da Democracia e dos Direitos Humanos", em "A Crise dos Paradigmas em Ciências Sociais e os Desafios para o Século 21", Editora Contraponto, pág. 138.
5. MULLER, Friedrich, "Quem É o Povo - A Questão Fundamental da Democracia", Max Limonad, pág. 22.
6. Idem, pág. 67.


Tarso Genro é advogado, prefeito de Porto Alegre (RS) e autor de "Utopia Possível" (ed. Artes e Ofícios), entre outros.


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