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+ política
Na atualidade, o esquerdismo voluntarista tem a mesma matriz ideológica do neoliberalismo
Ambiguidades do Estado democrático
Tarso Genro
especial para a Folha
Todo o sentido emancipatório da
modernidade parece ruir sob um
mar de ajustes e imprecações neoliberais, sem maiores resistências
dos trabalhadores e da sociedade civil. A
dialética democrática "emancipação-regulação" pode ser confinada em três
grandes movimentos históricos, numa
fase em que se evidenciam os limites da
forma histórica democrática, no contexto da globalização financeira:
"No primeiro período, a emancipação
foi sacrificada às exigências regulatórias dos Estados e confinada quase só a
movimentos anti-sistêmicos. No segundo período,
a regulação estatal nos
países centrais tentou integrar esses projetos
emancipatórios e anti-sistêmicos, desde
que fossem compatíveis com a produção
e a reprodução social capitalista; longe
de se tratar de uma verdadeira síntese da
regulação e emancipação, constituiu
uma nítida subordinação dos projetos
emancipatórios aos projetos regulatórios. No terceiro período, essa falsa síntese evoluiu para uma mútua desintegração da regulação e da emancipação" (1),
fundada numa profunda fragmentação
social.
Neste terceiro período, que é o atual,
lembremo-nos das contradições do "garantismo" dos direitos da cidadania, lá
na sua origem. O último discurso de Robespierre perante a Convenção (10 Termidor 1794) é uma peça radical, ao mesmo tempo perplexa e confusa, sobre os
destinos da Revolução. Ele permite perceber, através da retórica do orador, os
impasses da "emancipação-regulação" e
"adianta" a crise do sistema democrático
contemporâneo.
Robespierre coloca-se em defesa da nação, da República, da Revolução. Mas fala para quem? Fala para o povo em nome
do povo. Falando assim, quer que a lei
penal tenha "algo de vago, pois, sendo a
dissimulação e a hipocrisia as características atuais dos conspiradores, é preciso
que a Justiça possa apreendê-los sob todas as formas" (2). Robespierre quer, assim, uma quase desregulamentação do
delito "político", para neutralizar os inimigos do Estado.
Mais adiante, Robespierre, que supunha encarnar o próprio Estado, corteja o
povo: "Povo, tu, que és temido, bajulado,
desprezado, tu, soberano reconhecido,
sempre tratado como escravo, lembra-te: por toda a parte onde a Justiça não reina, são as paixões dos magistrados que
reinam (...)" (3). Robespierre refere-se,
aqui, ao mesmo magistrado que, segundo ele, deveria lidar com leis penais "vagas". Mas como sair desse borgiano labirinto? Ora, com leis penais vagas qualquer magistrado pode emprestar uma
força decisória maior à "paixão" e menor
à razão: a razão feita legalidade imprecisa
adquire a sua força regulatória no arbítrio.
Na questão dos "limites da liberdade",
então, é que está revelada a ambiguidade
que percorre o Estado democrático.
Qual é a ambiguidade do discurso de Robespierre? O projeto democrático que
não quer precisar os seus limites -regular-se plenamente- é, ao mesmo tempo, possibilidade de radicalização democrática e de totalitarismo.
As crescentes regulações sociais-democratas, que foram "concedidas" ao
povo, formaram o "Estado de Bem-Estar" que materializa, na prática, de forma
substantiva, a "democracia formal" (4).
Embora tenha sido uma experiência de
curta duração, o projeto social-democrata afirmou direitos. Podemos perceber
que, para buscar alguma legitimação no
mundo do trabalho, a reação neoliberal à
social-democracia também não pôde
prescindir de uma certa "iconização do
povo", (que agora) "consiste em abandonar o povo a si mesmo" (5). Como?
Agora endeusando-o, como fazia Robespierre, não mais como ser livre e dotado
de direitos sociais: agora como consumidor livre, que aceita o congelamento da
democracia pela ausência de regulamentos afirmativos.
Assim o esquerdismo voluntarista, que
sacraliza o movimento e rejeita formas
institucionais de protagonismo social,
tem a mesma matriz ideológica do neoliberalismo. Como? Esse esquerdismo hipostasia o povo "de forma pseudo-sacral" (6), para instituí-lo como "padroeiro" de uma distante revolução, que o torna politicamente inofensivo no presente.
(Não foi de graça que Hobsbawm disse
que o neoliberalismo é uma espécie de
anarquismo da classe média baixa).
Em consequência, o contribuinte-consumidor alheio à política ou o cidadão-político sem forma de
exercício concreto de poder são ambos ineptos para exercer o poder-violência democraticamente.
Eles trocam a sua condição de cidadão pela de
consumidor (no neoliberalismo) e espectador do futuro (no esquerdismo voluntarista).
Contribuinte-consumidor (no neoliberalismo) e cidadão-político (na visão
esquerdista) como povo ou classe não
exercem, então, nenhuma influência direta sobre as decisões públicas. O cidadão-consumidor e o espectador da revolução futura não fazem a história no cotidiano, pois se abrigam na mesma visão
metafísica de democracia, que gera duas
fontes de alienação política: aquela que
subsume a cidadania no exercício do
consumo e aquela que se nega a produzir
conquistas dentro da ordem.
Notas:
1. SANTOS, Boaventura de Souza, "A Crítica da Razão Indolente - Contra o Desperdício da Experiência", Cortez Editora, pág. 164.
2. ROBESPIERRE, Maximilien de, "Discursos e Relatórios na Convenção". Eduerj/Contraponto,
pág. 195.
3. Idem, pág. 202.
4. ALTVATER, Elmar, "Os Desafios da Globalização
e da Crise Ecológica para o Discurso da Democracia e dos Direitos Humanos", em "A Crise dos Paradigmas em Ciências Sociais e os Desafios para o
Século 21", Editora Contraponto, pág. 138.
5. MULLER, Friedrich, "Quem É o Povo - A Questão
Fundamental da Democracia", Max Limonad,
pág. 22.
6. Idem, pág. 67.
Tarso Genro é advogado, prefeito de Porto Alegre (RS) e autor de "Utopia Possível" (ed. Artes e
Ofícios), entre outros.
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