São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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Ponto de fuga

A projeção do canto

Jorge Coli
especial para a Folha

Em "João Miramar", Oswald de Andrade avacalhava com a "Tosca". Quatro décadas depois, nos anos de 1960, Otto Maria Carpeaux profetizava que, de Puccini, "num distante futuro", só sobreviveriam algumas árias. Talvez o grande sucesso popular do compositor tenha alimentado os preconceitos de uma crítica mais sofisticada e moderna.
Assiste-se hoje, ao contrário, a uma reviravolta do gosto. O grande gênio de Puccini não faz dúvida para quase mais ninguém. Percebeu-se, enfim, que a devastadora força emotiva de suas obras não provém de facilidades sentimentais, mas de uma invenção musical incomum e complexa, cuja originalidade se renova em cada ópera.
É sobre essas emoções arrebatadas que se constrói "Tosca", filme de Benoît Jacquot, lançado na França. As paixões estão lá, incandescentes, sem perda nenhuma, sem o "resfriamento" que ocorre na maioria dos filmes de ópera. Alagna, Gheorgiu, Raimondi, os protagonistas, tiveram a voz reforçada por meios técnicos. Pouco importa, já que não se trata, aqui, de uma representação teatral: o cinema tem direitos específicos. O diretor alterna a caracterização de época, em cores, com cenas de um preto-e-branco contrastado, em que se vê a gravação da trilha sonora pelos intérpretes. Em vez de distanciar, isso reforça a verdade carnal dos personagens. Puccini inoculou neles uma animalidade física, na qual amor e poder se revelam no corpo acariciado ou violentado. Captando essas pulsões, Jacquot não filmou uma ópera: transformou-a, sem traição, em puro cinema.
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Pompa - O governo francês, por meio de um organismo governamental de título aparatoso ("Alto Comitê das Celebrações Nacionais"), decretou que 2001 seria consagrado a comemorar o centenário de André Malraux (1901-1976). Qualquer revisão crítica foi, assim, afastada: Malraux perde suas ambiguidades que exasperam e fascinam para se tornar uma glória pátria.
Em Paris, uma exposição busca retraçar os vínculos de Malraux com a modernidade. Reúne belas obras e desenha um percurso iniciado nos anos de 1920, cujo apogeu é atingido quando Malraux se transforma no ministro da Cultura de De Gaulle, numa escalada que se acelera depois da Segunda Guerra Mundial. Por esse caminho, a mostra revela, mesmo se de modo involuntário, o quanto Malraux impôs, de modo institucional, os valores de uma arte moderna antes afirmativa que subversiva. Braque, Giacometti, Derain, Fautrier, Dubuffet, Balthus são, sem dúvida, grandes artistas; Malraux, porém, faz com que eles surjam no papel de grandes artistas. Ao chamar Chagall para substituir as antigas pinturas do século 19 que decoravam o teto do teatro da Ópera de Paris, ele o transforma, de fato, em sucessor dos pintores oficiais do século 19.
Abóbadas - Além da encomenda feita a Chagall para a Ópera de Paris, Malraux solicitou a Masson um trabalho equivalente no forro do teatro do Odéon. Rebatizado com o título solene de "Teatro de França", Malraux nomeou Jean-Louis Barrault como diretor. O teatro se tornava moderno e prestigioso.
As maquetes de Chagall e de Masson encontram-se expostas lado a lado na mostra "Malraux e a Modernidade". A de Masson é admirável, a de Chagall muito menos convincente. Por felicidade, a pintura original da Ópera de Paris foi preservada. Chagall empregara, na versão definitiva, um dispositivo que toma a forma circular do teto, mascarando a antiga decoração. Assim, quem sabe, um dia poderá ser removido.
Clima - A mostra sobre Malraux é apresentada num dos mais adoráveis museus de Paris: o Museu da Vida Romântica. Foi instalado na casa-ateliê de Ary Scheffer, pintor da primeira metade do século 19, então muito célebre e hoje esquecido. Reúne-se ali uma coleção de objetos e móveis que pertenceram a George Sand, e várias obras de Scheffer, que são admiráveis pela técnica e pela inspiração. A casa, o jardim, a mobília, os quadros, tudo leva o visitante a respirar os ares de 1830.


Jorge Coli é historiador da arte.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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