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Ponto de fuga
A projeção do canto
Jorge Coli
especial para a Folha
Em "João Miramar", Oswald de Andrade avacalhava
com a "Tosca". Quatro décadas depois, nos anos de
1960, Otto Maria Carpeaux profetizava que, de Puccini,
"num distante futuro", só sobreviveriam algumas árias.
Talvez o grande sucesso popular do compositor tenha
alimentado os preconceitos de uma crítica mais sofisticada e moderna.
Assiste-se hoje, ao contrário, a uma reviravolta do
gosto. O grande gênio de Puccini não faz dúvida para
quase mais ninguém. Percebeu-se, enfim, que a devastadora força emotiva de suas obras não provém de facilidades sentimentais, mas de uma invenção musical incomum e complexa, cuja originalidade se renova em
cada ópera.
É sobre essas emoções arrebatadas que se constrói
"Tosca", filme de Benoît Jacquot, lançado na França. As
paixões estão lá, incandescentes, sem perda nenhuma,
sem o "resfriamento" que ocorre na maioria dos filmes
de ópera. Alagna, Gheorgiu, Raimondi, os protagonistas, tiveram a voz reforçada por meios técnicos. Pouco
importa, já que não se trata, aqui, de uma representação
teatral: o cinema tem direitos específicos. O diretor alterna a caracterização de época, em cores, com cenas de
um preto-e-branco contrastado, em que se vê a gravação da trilha sonora pelos intérpretes. Em vez de distanciar, isso reforça a verdade carnal dos personagens.
Puccini inoculou neles uma animalidade física, na qual
amor e poder se revelam no corpo acariciado ou violentado. Captando essas pulsões, Jacquot não filmou uma
ópera: transformou-a, sem traição, em puro cinema.
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Pompa - O governo francês, por meio de um organismo governamental de título aparatoso ("Alto Comitê
das Celebrações Nacionais"), decretou que 2001 seria
consagrado a comemorar o centenário de André Malraux (1901-1976). Qualquer revisão crítica foi, assim,
afastada: Malraux perde suas ambiguidades que exasperam e fascinam para se tornar uma glória pátria.
Em Paris, uma exposição busca retraçar os vínculos
de Malraux com a modernidade. Reúne belas obras e
desenha um percurso iniciado nos anos de 1920, cujo
apogeu é atingido quando Malraux se transforma no
ministro da Cultura de De Gaulle, numa escalada que se
acelera depois da Segunda Guerra Mundial. Por esse caminho, a mostra revela, mesmo se de modo involuntário, o quanto Malraux impôs, de modo institucional, os
valores de uma arte moderna antes afirmativa que subversiva. Braque, Giacometti, Derain, Fautrier, Dubuffet,
Balthus são, sem dúvida, grandes artistas; Malraux, porém, faz com que eles surjam no papel de grandes artistas. Ao chamar Chagall para substituir as antigas pinturas do século 19 que decoravam o teto do teatro da Ópera de Paris, ele o transforma, de fato, em sucessor dos
pintores oficiais do século 19.
Abóbadas - Além da encomenda feita a Chagall para a
Ópera de Paris, Malraux solicitou a Masson um trabalho equivalente no forro do teatro do Odéon. Rebatizado com o título solene de "Teatro de França", Malraux
nomeou Jean-Louis Barrault como diretor. O teatro se
tornava moderno e prestigioso.
As maquetes de Chagall e de Masson encontram-se
expostas lado a lado na mostra "Malraux e a Modernidade". A de Masson é admirável, a de Chagall muito
menos convincente. Por felicidade, a pintura original da
Ópera de Paris foi preservada. Chagall empregara, na
versão definitiva, um dispositivo que toma a forma circular do teto, mascarando a antiga decoração. Assim,
quem sabe, um dia poderá ser removido.
Clima - A mostra sobre Malraux é apresentada num
dos mais adoráveis museus de Paris: o Museu da Vida
Romântica. Foi instalado na casa-ateliê de Ary Scheffer,
pintor da primeira metade do século 19, então muito célebre e hoje esquecido. Reúne-se ali uma coleção de objetos e móveis que pertenceram a George Sand, e várias
obras de Scheffer, que são admiráveis pela técnica e pela
inspiração. A casa, o jardim, a mobília, os quadros, tudo
leva o visitante a respirar os ares de 1830.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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