São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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Terra à vista

NESTA SEMANA, COMPLETAM-SE 200 ANOS DO DESEMBARQUE DE D. JOÃO 6º EM SALVADOR, ONDE O REGENTE ABRIU OS PORTOS DO BRASIL E PASSEOU COM O FILHO PEDRO NA ILHA DE ITAPARICA

JURANDIR MALERBA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A grande temporada brasileira do soberano português foi no Rio, mas a estréia foi em Salvador. Nesta semana, mais especificamente na terça-feira, dia 22, completam-se 200 anos da chegada de dom João 6º ao Brasil, onde aportou inicialmente na Bahia, antes de rumar para o exílio mais ao Sul.
Tirante todo o folclore em torno a essa escala de mais de mês feita na capital baiana, da apoteose das solenidades festivas sempre com aura religiosa, como as procissões, missas, beija-mãos, onde o povo expressara seus vivos sentimentos de devota vassalagem ao soberano -a quem desejaram as elites soteropolitanas fazer ali fixar residência definitivamente, inclusive ofertando-lhe a construção de um magnífico palácio, jamais erigido-, o fato mais significativo da passagem do dirigente português por terras baianas foi a carta régia de 28 de janeiro de 1808.
Dirigida ao conselheiro do rei e governador e capitão-general da Bahia, o conde da Ponte, decretavam-se abertos os portos do Brasil ao comércio direto com nações estrangeiras amigas do Estado português. Não é raro tomar esse ato de dom João, cuja autoria intelectual atribui-se ao distinto baiano José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, como o marco zero da fundação da nacionalidade brasileira, pois que encerrou o velho sistema exclusivista da época colonial e franqueou a instituição do liberalismo econômico no Brasil.
Quer-se ter Cairu como a mente iluminada de uma casta de homens de governo, empreendedores e intelectuais que, já desde a colônia, pretendiam retirar o Brasil do colonialismo agrário exportador para colocá-lo nos rumos do desenvolvimento industrial, o que implicava, antes de mais nada, a liberação do comércio.
De fato, como demonstram seus "Princípios de Direito Mercantil" (1798) e "Princípios de Economia Política" (1804), Cairu era leitor dos economistas clássicos (particularmente devoto às teses de Adam Smith) e teve, sem contestação, grande ascendência nas medidas liberalizantes postas em prática entre 1808 e 1810.
Nas interpretações correntes, a abertura dos portos costuma ser atribuída, entre outros, a dois fatores: a pressão da Inglaterra e a ascendência decisiva de Cairu, espelhando os interesses nativos, sobre as decisões do príncipe.
De fato, a economia local carecia de um respiro diante da situação de asfixia provocada pelas medidas draconianas da administração portuguesa que haviam desmantelado os lampejos industrialistas do final do século 18 por meio de várias sanções. Entre elas a que mandava extinguir as manufaturas têxteis locais "pela brandura ou pela violência".
Assim que chegou, dom João 6º suspendeu essas medidas. À Inglaterra sem dúvida interessava não uma "abertura geral", mas o controle sobre a colônia de Portugal. Os números o explicam: metade das exportações portuguesas para o exterior era de produtos brasileiros e 80% das exportações (grande parte de produtos ingleses) de Portugal para suas colônias tinha o Brasil como destino.
Em 1796, só o Brasil fornecia a Lisboa 85% de suas importações coloniais, número que chegou aos 88% em 1806. Seria um desastre para a Inglaterra que esse mercado caísse nas mãos dos franceses.
A Inglaterra tinha de fato vigorosos interesses colonialistas em relação ao Brasil. Já em 1803, na memória em que dom Rodrigo de Sousa Coutinho aconselha o regente a migrar para cá, o estadista afirma textualmente que, caso o reino caísse em mãos francesas, a Inglaterra não hesitaria em tomar-lhe suas colônias. Corrobora suas suspeitas a convenção secreta assinada em outubro de 1807 pelo ministro dos estrangeiros, lorde Canning e o marquês de Funchal, negociando-se a abertura de um porto em Santa Catarina à navegação inglesa, caso Portugal se curvasse à França. A Inglaterra, pois, nada tinha de "liberal", o que se comprovará com a assinatura dos tratados de 1810, que praticamente revogam o decreto de 1808 e dão precedência aos interesses ingleses nos negócios brasileiros, mesmo sobre os portugueses.
As idéias smithianas de que o comércio livre é base do bem-estar econômico dos povos e de que o franco comércio é a base da riqueza das nações só se tornará política de Estado na Inglaterra em 1852, com a liberação dos portos ingleses a todas as bandeiras.
Por outro lado, é imprudente acreditar demasiado no ilibado liberalismo de Cairu. Entre a idéia professa e a ação encetada há um mediador complexo que é o homem. Cairu pode ser apontado como aquele personagem típico situado na esquina dos tempos. Sente e professa o hálito profilático do liberalismo contra as amarras de um tempo que, moribundo, invade o novo século -lembre-se que autores como Arno Meyer situam o fim do Antigo Regime nos desfechos da Primeira Guerra Mundial!. Mas é homem de corte, vassalo fiel ao seu rei. Como revelam suas "Memórias" e sua prática de estadista, Cairu paira suspenso na fronteira móvel desses dois tempos em luta: o persistente Antigo Regime e os insurgentes novos tempos liberais.


JURANDIR MALERBA é doutor em história pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP); autor de "A Corte no Exílio" (Companhia das Letras).


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