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+ história
Terra à vista
NESTA SEMANA,
COMPLETAM-SE 200 ANOS
DO DESEMBARQUE
DE D. JOÃO 6º EM SALVADOR, ONDE O REGENTE ABRIU
OS PORTOS DO BRASIL
E PASSEOU COM O FILHO PEDRO
NA ILHA DE ITAPARICA
JURANDIR MALERBA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
grande temporada
brasileira do soberano português foi
no Rio, mas a estréia foi em Salvador. Nesta semana, mais especificamente na terça-feira, dia
22, completam-se 200 anos da
chegada de dom João 6º ao
Brasil, onde aportou inicialmente na Bahia, antes de rumar para o exílio mais ao Sul.
Tirante todo o folclore em
torno a essa escala de mais de
mês feita na capital baiana, da
apoteose das solenidades festivas sempre com aura religiosa,
como as procissões, missas,
beija-mãos, onde o povo expressara seus vivos sentimentos de devota vassalagem ao soberano -a quem desejaram as
elites soteropolitanas fazer ali
fixar residência definitivamente, inclusive ofertando-lhe a
construção de um magnífico
palácio, jamais erigido-, o fato
mais significativo da passagem
do dirigente português por terras baianas foi a carta régia de
28 de janeiro de 1808.
Dirigida ao conselheiro do
rei e governador e capitão-general da Bahia, o conde da Ponte, decretavam-se abertos os
portos do Brasil ao comércio
direto com nações estrangeiras
amigas do Estado português.
Não é raro tomar esse ato de
dom João, cuja autoria intelectual atribui-se ao distinto baiano José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, como o marco zero
da fundação da nacionalidade
brasileira, pois que encerrou o
velho sistema exclusivista da
época colonial e franqueou a
instituição do liberalismo econômico no Brasil.
Quer-se ter Cairu como a
mente iluminada de uma casta
de homens de governo, empreendedores e intelectuais
que, já desde a colônia, pretendiam retirar o Brasil do colonialismo agrário exportador
para colocá-lo nos rumos do
desenvolvimento industrial, o
que implicava, antes de mais
nada, a liberação do comércio.
De fato, como demonstram
seus "Princípios de Direito
Mercantil" (1798) e "Princípios
de Economia Política" (1804),
Cairu era leitor dos economistas clássicos (particularmente
devoto às teses de Adam
Smith) e teve, sem contestação,
grande ascendência nas medidas liberalizantes postas em
prática entre 1808 e 1810.
Nas interpretações correntes, a abertura dos portos costuma ser atribuída, entre outros, a dois fatores: a pressão da
Inglaterra e a ascendência decisiva de Cairu, espelhando os
interesses nativos, sobre as decisões do príncipe.
De fato, a economia local carecia de um respiro diante da
situação de asfixia provocada
pelas medidas draconianas da
administração portuguesa que
haviam desmantelado os lampejos industrialistas do final do
século 18 por meio de várias
sanções. Entre elas a que mandava extinguir as manufaturas
têxteis locais "pela brandura
ou pela violência".
Assim que chegou, dom João
6º suspendeu essas medidas. À
Inglaterra sem dúvida interessava não uma "abertura geral",
mas o controle sobre a colônia
de Portugal. Os números o explicam: metade das exportações portuguesas para o exterior era de produtos brasileiros
e 80% das exportações (grande
parte de produtos ingleses) de
Portugal para suas colônias tinha o Brasil como destino.
Em 1796, só o Brasil fornecia
a Lisboa 85% de suas importações coloniais, número que
chegou aos 88% em 1806. Seria
um desastre para a Inglaterra
que esse mercado caísse nas
mãos dos franceses.
A Inglaterra tinha de fato vigorosos interesses colonialistas em relação ao Brasil. Já em
1803, na memória em que dom
Rodrigo de Sousa Coutinho
aconselha o regente a migrar
para cá, o estadista afirma textualmente que, caso o reino
caísse em mãos francesas, a Inglaterra não hesitaria em tomar-lhe suas colônias.
Corrobora suas suspeitas a
convenção secreta assinada em
outubro de 1807 pelo ministro
dos estrangeiros, lorde Canning e o marquês de Funchal,
negociando-se a abertura de
um porto em Santa Catarina à
navegação inglesa, caso Portugal se curvasse à França. A Inglaterra, pois, nada tinha de "liberal", o que se comprovará
com a assinatura dos tratados
de 1810, que praticamente revogam o decreto de 1808 e dão
precedência aos interesses ingleses nos negócios brasileiros,
mesmo sobre os portugueses.
As idéias smithianas de que o
comércio livre é base do bem-estar econômico dos povos e de
que o franco comércio é a base
da riqueza das nações só se tornará política de Estado na Inglaterra em 1852, com a liberação dos portos ingleses a todas
as bandeiras.
Por outro lado, é imprudente
acreditar demasiado no ilibado
liberalismo de Cairu. Entre a
idéia professa e a ação encetada
há um mediador complexo que
é o homem. Cairu pode ser
apontado como aquele personagem típico situado na esquina dos tempos. Sente e professa o hálito profilático do liberalismo contra as amarras de um
tempo que, moribundo, invade
o novo século -lembre-se que
autores como Arno Meyer situam o fim do Antigo Regime
nos desfechos da Primeira
Guerra Mundial!. Mas é homem de corte, vassalo fiel ao
seu rei. Como revelam suas
"Memórias" e sua prática de
estadista, Cairu paira suspenso
na fronteira móvel desses dois
tempos em luta: o persistente
Antigo Regime e os insurgentes
novos tempos liberais.
JURANDIR MALERBA é doutor em história pela
Universidade de São Paulo e professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP); autor de
"A Corte no Exílio" (Companhia das Letras).
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