São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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Canção radical

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

C ancioneiros Medievais Galego-Portugueses", de Gladis Massini-Cagliari, é livro meritório por duas razões básicas. A primeira, por resgatar tema esquecido por poetas, prosadores, críticos e operadores do idioma em geral: a origem da própria língua, tema relegado aos "especialistas", quando está -por mais oculto que pareça- presente na vida diária. A segunda, por tocar na questão do "nacionalismo", sempre polêmica.
Massini-Cagliari é didática e de uma clareza invejável. Expõe as fontes dos poemas que usa, alertando que muitos outros perderam-se em transcrições ou na poeira do tempo. Ensina-nos que, da lírica profana galego-portuguesa -formadora do português e do galego-, há cerca de 1.700 composições, feitas por 160 autores, entre os séculos 12 e 14.
Acrescenta que há oito compilações desse material: "Cancioneiro da Ajuda", "Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa", editado na Itália, a mando de Angelo Colucci, "Cancioneiro da Vaticana", igualmente coligido na Itália, e outros.
Revela qualidades e defeitos de cada um deles. Assinala os períodos dessa lírica, que inclui as cantigas de amor, as cantigas de amigo e as cantigas de escárnio e maldizer. O Pré-Afonsino, de 1189 a 1245, o Afonsino, que perdura de 1245 a 1280, o Dionisíaco, de 1280 a 1300, e o Pós-Dionisíaco, de 1300 a 1350.

Variações
Repropõe 13 cantigas e as coteja pelos métodos fac-similar (reprodução fotográfica), diplomático (transliteração da escrita manuscrita), semidiplomático (decifração da escrita, com interpretação), crítico (recomposição do poema por meio de interpretação pura) e genético (reconstrução de cada ato da escrita). Como todos sabem, as cantigas de amor são aquelas em que o trovador se dirige diretamente à amada, "seguindo todo um rígido formalismo sentimental". Exemplos: a submissão, o uso de pseudônimo, a mesura e o pássaro (o mensageiro entre o trovador e a amada).
As cantigas de amigo são aquelas em que a amada é quem fala e estão de braço com a música e a dança -são muitos os cantares de amigo, entre eles o cantar de romaria, "em que a donzela convida companheiras para uma peregrinação" etc. As cantigas de escárnio e maldizer distinguem-se pelas formas coberta e descoberta.
Estas são difamatórias de modo franco; aquelas, ambiguamente difamatórias. E a elas juntam-se as inclassificáveis. Talvez sejam as mais instigantes! Ao analisar a cantiga "O Marot Aja Mal-Grado", de autoria desconhecida, aborda a questão do nacionalismo: "O lai [tipo de poema], segundo Spina, é adaptação galega de substância primitiva de composição francesa, alterada na estrofação, na medida do verso, na atmosfera moral e no tônus psicológico".
Vê-se que a tópica nacional não reaparece apenas na "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido, que a faz coincidir com a independência política do Brasil: atormenta os próprios portugueses em relação à língua, até hoje. Massini-Cagliari, ao citar Spina, aceita veladamente que a imitação se dá enquanto "substância primitiva" -ou não explicita uma opinião nítida.

Língua internacional
Francisco Silveira Bueno, autor do "Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa", tem opinião menos hesitante. Para ele, o empório cultural de Compostela, que se ergueu a partir do mito de que Santiago estava enterrado em Padrón, cidade vizinha, fez do local uma capital sem corte: "Nas hostes francesas, que vinham tomar parte na cruzada contra os mouros, no séqüito de bispos não escasseavam os inspiradores da língua d'oc (provençal). Encontrando-se, assim, a natural aptidão poética dos galizianos com a excelente escola dos provençais".
Em outros palavras, o português nasceu da fusão do romance arcaico e do provençal -ou seja, nasceu internacional. Em toda a época trovadoresca, o galego-português foi "a" língua da península Ibérica, sobrepondo-se a todos os outros idiomas.
Santiago de Compostela era efervescente, atraindo pessoas de toda a Europa. Foi nesse clima que se forjou o português, tantas vezes empobrecido pela "renacionalização", à direita e à esquerda. Das cantigas de amigo vieram os Noéis, e das de amor, os Cabrais. Fico com o trovador Airas Peres Vuitoron, como a luz perdida na barricada do "nacionalismo": "Salvos son os traedores".

RÉGIS BONVICINO é poeta, autor de "Página Órfã" e organizador de "Um Barco Remenda o Mar" (ambos pela Martins Editora).


CANCIONEIROS MEDIEVAIS GALEGO-PORTUGUESES
Autora:
Gladis Massini-Cagliari
Editora: WMF Martins Fontes (tel. 0/ xx/11/3241-3677)
Quanto: R$ 32 (222 págs.)




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