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Canção radical
RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
C
ancioneiros Medievais Galego-Portugueses", de Gladis
Massini-Cagliari, é
livro meritório por
duas razões básicas. A primeira, por resgatar tema esquecido
por poetas, prosadores, críticos
e operadores do idioma em geral: a origem da própria língua,
tema relegado aos "especialistas", quando está -por mais
oculto que pareça- presente
na vida diária. A segunda, por
tocar na questão do "nacionalismo", sempre polêmica.
Massini-Cagliari é didática e
de uma clareza invejável. Expõe as fontes dos poemas que
usa, alertando que muitos outros perderam-se em transcrições ou na poeira do tempo.
Ensina-nos que, da lírica
profana galego-portuguesa
-formadora do português e do
galego-, há cerca de 1.700
composições, feitas por 160 autores, entre os séculos 12 e 14.
Acrescenta que há oito compilações desse material: "Cancioneiro da Ajuda", "Cancioneiro
da Biblioteca Nacional de Lisboa", editado na Itália, a mando de Angelo Colucci, "Cancioneiro da Vaticana", igualmente
coligido na Itália, e outros.
Revela qualidades e defeitos
de cada um deles. Assinala os
períodos dessa lírica, que inclui
as cantigas de amor, as cantigas
de amigo e as cantigas de escárnio e maldizer. O Pré-Afonsino,
de 1189 a 1245, o Afonsino, que
perdura de 1245 a 1280, o Dionisíaco, de 1280 a 1300, e o Pós-Dionisíaco, de 1300 a 1350.
Variações
Repropõe 13 cantigas e as coteja pelos métodos fac-similar
(reprodução fotográfica), diplomático (transliteração da
escrita manuscrita), semidiplomático (decifração da escrita,
com interpretação), crítico (recomposição do poema por
meio de interpretação pura) e
genético (reconstrução de cada
ato da escrita).
Como todos sabem, as cantigas de amor são aquelas em que
o trovador se dirige diretamente à amada, "seguindo todo um
rígido formalismo sentimental". Exemplos: a submissão, o
uso de pseudônimo, a mesura e
o pássaro (o mensageiro entre o
trovador e a amada).
As cantigas de amigo são
aquelas em que a amada é
quem fala e estão de braço com
a música e a dança -são muitos
os cantares de amigo, entre eles
o cantar de romaria, "em que a
donzela convida companheiras
para uma peregrinação" etc.
As cantigas de escárnio e
maldizer distinguem-se pelas
formas coberta e descoberta.
Estas são difamatórias de modo
franco; aquelas, ambiguamente
difamatórias. E a elas juntam-se as inclassificáveis. Talvez sejam as mais instigantes!
Ao analisar a cantiga "O Marot Aja Mal-Grado", de autoria
desconhecida, aborda a questão do nacionalismo: "O lai [tipo de poema], segundo Spina, é
adaptação galega de substância
primitiva de composição francesa, alterada na estrofação, na
medida do verso, na atmosfera
moral e no tônus psicológico".
Vê-se que a tópica nacional
não reaparece apenas na "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido, que a
faz coincidir com a independência política do Brasil: atormenta os próprios portugueses
em relação à língua, até hoje.
Massini-Cagliari, ao citar Spina, aceita veladamente que a
imitação se dá enquanto "substância primitiva" -ou não explicita uma opinião nítida.
Língua internacional
Francisco Silveira Bueno, autor do "Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua
Portuguesa", tem opinião menos hesitante. Para ele, o empório cultural de Compostela, que
se ergueu a partir do mito de
que Santiago estava enterrado
em Padrón, cidade vizinha, fez
do local uma capital sem corte:
"Nas hostes francesas, que vinham tomar parte na cruzada
contra os mouros, no séqüito
de bispos não escasseavam os
inspiradores da língua d'oc
(provençal). Encontrando-se,
assim, a natural aptidão poética
dos galizianos com a excelente
escola dos provençais".
Em outros palavras, o português nasceu da fusão do romance arcaico e do provençal -ou
seja, nasceu internacional. Em
toda a época trovadoresca, o galego-português foi "a" língua da
península Ibérica, sobrepondo-se a todos os outros idiomas.
Santiago de Compostela era
efervescente, atraindo pessoas
de toda a Europa. Foi nesse clima que se forjou o português,
tantas vezes empobrecido pela
"renacionalização", à direita e à
esquerda. Das cantigas de amigo vieram os Noéis, e das de
amor, os Cabrais. Fico com o
trovador Airas Peres Vuitoron,
como a luz perdida na barricada do "nacionalismo": "Salvos
son os traedores".
RÉGIS BONVICINO é poeta, autor de "Página
Órfã" e organizador de "Um Barco Remenda o
Mar" (ambos pela Martins Editora).
CANCIONEIROS MEDIEVAIS GALEGO-PORTUGUESES
Autora: Gladis Massini-Cagliari
Editora: WMF Martins Fontes (tel. 0/
xx/11/3241-3677)
Quanto: R$ 32 (222 págs.)
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