São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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Livro de dois jornalistas israelenses reconstrói a história de uma família de anões judeus que sobreviveram às experiências do médico nazista Josef Mengele no campo de Auschwitz

O Holocausto e os anões

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Neste ano, as vítimas do Holocausto nazista foram lembradas em cerimônias ecumênicas pungentes, por ocasião dos 50 anos da extinção do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Atos dessa natureza são muito importantes para que os horrores do nazismo não venham a ser obliterados com o passar do tempo.
Por ora, o Holocausto permanece vivo nas controvérsias entre historiadores ou pseudo-historiadores no discurso da extrema direita européia e ainda de algumas lideranças do Estado de Israel. O extermínio fez parte, na Alemanha, das discussões sobre o nazismo, rotuladas de "querela dos historiadores", opondo aqueles que sustentam a especificidade brutal do fenômeno nazista e os que tendem de certo modo a justificá-lo, sobretudo em razão da ameaça representada pelo bolchevismo.


Os Ovitz não tiveram de raspar o cabelo nem sofreram espancamentos


Uma operação menos sutil consiste em negar pura e simplesmente a existência dos campos de extermínio ou reduzi-los a proporções desprezíveis. A essa ignóbil tarefa, incorporada ao discurso da extrema direita européia, dedicaram-se alguns "assassinos da memória", na feliz expressão do historiador Pierre Vidal-Naquet.
Em sentido diametralmente oposto, é preciso lembrar a instrumentalização do Holocausto no Estado de Israel, com o objetivo de apresentar como atitudes defensivas as violências praticadas contra o povo palestino, o que não quer dizer que o extermínio e as violências possam ser, nem de longe, equiparadas.

História com muitas facetas
As fontes para o conhecimento do Holocausto são abundantes, abrangendo informações de natureza diversa, desde vestígios materiais dos campos de concentração aos depoimentos de sobreviventes. Foi possível, assim, construir sua história, uma história com muitas facetas, que abarca amplas interpretações analíticas ou relatos que pertencem ao quadro da microistória.
Um bom exemplo do filão por último mencionado é o livro de Yehuda Koren e Eilat Negev, dois jornalistas israelenses, com o longo e melodramático título de "In Our Hearts We Were Giants - The Remarkable Story of the Liliput Troupe - A Dwarf Family's Survival of the Holocaust" (ed. Carroll and Graaf, 2004), que poderíamos traduzir, algo livremente, por "Em Nossos Corações Éramos Gigantes - A Notável História da Trupe Liliput; uma Família de Anões sobrevive ao Holocausto". Aqui, diga-se de passagem, extraio os dados da excelente resenha do escritor húngaro István Deák, publicada no "New York Review of Books", edição de 10/ 3/2005.
Desde logo, a história vale pela excepcionalidade e por seus traços irônico-dramáticos. Vamos a ela. A família judia Ovitz, composta de sete anões, foi deportada da Hungria para Auschwitz em 1944, quando a invasão do país pela Alemanha mudou definitivamente a sorte dos judeus húngaros. Todos os membros da família sobreviveram à triagem que os nazistas faziam à entrada do campo e, mesmo saindo atordoados dos vagões de gado entupidos de gente, tiveram a iniciativa de distribuir aos homens da SS um cartão autografado, no qual se lê: "Lembrança da Trupe Liliput".

Tratamento especial
Por que os Ovitz foram poupados e, mais do que isso, receberam tratamento especial, quando comparado ao dos outros milhares de prisioneiros? Porque eles "caíram nas graças" de um nosso conhecido, o dr. Josef Mengele, o mais notório entre os médicos alemães que realizaram mortíferas experiências "científicas" com prisioneiros dos campos de concentração.
Os Ovitz foram instalados em barracões separados, com móveis em miniatura. Não tiveram de raspar o cabelo, usar trapos listados nem sofreram espancamentos. As mulheres receberam bijuterias, vestidos de pele e de seda e objetos para maquilagem. Antes que se imagine uma surrealista vida tranqüila, lembremos que eles eram obrigados a fornecer grandes quantidades de sangue e, de tempos em tempos, sofriam extrações de parte da medula óssea.
Ao que tudo indica, Mengele -que levou à morte gêmeos e corcundas- poupou os anões porque acreditava serem eles uma espécie muito útil para seus estudos, destituídos, aliás, de valor científico, sobre as influências da hereditariedade e do ambiente na formação dos seres humanos. Além disso, os Ovitz, com suas cabeças em tamanho normal, que pareciam enormes ao integrarem corpos de tamanho reduzido, pareciam ser um exemplo eloqüente confirmatório da degenerescência da raça judaica.
Ocasionalmente, os Ovitz serviram também ao entretenimento dos guardas do campo, como cantores e músicos e, pelo menos numa ocasião, foram apresentados nus a uma platéia de figurões da SS. Por último, um final feliz: a família foi libertada pelos russos em 1945 e, após passar pela Bélgica, emigrou para Israel, onde alguns de seus membros viveram até recentemente.

Ilustração da eugenia
A narrativa vale por si mesma, por seu conteúdo que supera de longe o realismo fantástico. Mas representa mais do que isso, por ser uma ilustração peculiar da ideologia do eugenismo, em busca do aperfeiçoamento da raça humana. Esse objetivo constituiu-se num dos traços culturais de toda uma época. Entre nós, lembremos o sociólogo Oliveira Viana e o médico e escritor Afrânio Peixoto, sem pretender convertê-los em ideólogos nazistas.
Obcecado pela necessidade de "branqueamento" da raça, o primeiro escreveu um livro intitulado "Raça e Assimilação" (1932) que pretende dar uma explicação científica, carregada de mensurações, para a superioridade das estirpes brancas.
O segundo voltou-se mais para a medicina e a criminologia, inspirado em figuras como os criminologistas italianos Ferri e Lombroso. Preocupava-se com a existência de indivíduos marcados por sua herança racial, que precisavam ser controlados e "melhorados" por uma política de "higiene social", como lembrou a antropóloga Olivia Maria Gomes da Cunha.
Os exemplos são expressão de uma ideologia enraizada na cultura, para além das opções políticas liberais ou autoritárias de seus respectivos porta-vozes. Desse modo, se as teorias e práticas do nazismo representaram um salto qualitativo para o abismo, nem por isso deixaram de se inspirar numa abrangente moldura cultural racista.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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