São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997.

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ENCONTRO
A palavra sequestrada

JOSÉ GERALDO COUTO
especial para a Folha

Pensar sobre a sociedade humana é, em grande medida, pensar sobre a palavra e suas metamorfoses. Essa idéia é o ponto comum entre as dez palestras do ciclo ``A Palavra Democrática'', promovido pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, em parceria com a Folha e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
O ciclo, que ocorreu entre 1º e 16 de abril no Centro Cultural Maria Antonia, em São Paulo, foi o primeiro dos 12 módulos do evento ``Direitos Humanos no Limiar do Século 21'' e contou com a coordenação do professor de filosofia Renato Janine Ribeiro, da USP.
Ao reunir intelectuais de primeiro plano em várias áreas (filosofia, letras, psicanálise, comunicação), ``A Palavra Democrática'' lembrou os ciclos de conferências promovidos pela Funarte (``O Olhar'', ``Ética'' etc.). Com uma diferença: os participantes do ciclo foram ``sequestrados'' durante um fim-de-semana (5 e 6/4) num hotel em Atibaia (SP) para debater entre si suas idéias.
Passeio-cabeça
É desse fim-de-semana ``sui generis'' que trata este texto, sem nenhuma pretensão de resumir mais de 15 horas de discussão.
Só dois dos dez conferencistas (o sociólogo Gabriel Cohn e o psicanalista Jurandir Freire Costa) não puderam atender ao convite de Janine Ribeiro. Os outros oito chegaram a Atibaia na sexta-feira à noite e saíram de lá no final da tarde de domingo atordoados de tanta conversa.
O próprio Janine abriu os trabalhos, no sábado de manhã, estabelecendo uma espécie de moldura para o debate que se seguiria. Segundo ele, o lugar-comum de que a palavra substitui a força elude a questão da complexidade da comunicação, por pressupor a idéia de uma palavra límpida e transparente, sem manipulação e sem densidade. Retomou, em linhas gerais, as formulações de sua palestra, publicada no Mais! de 30/3.
As comunicações de todos os outros participantes passaram, em algum momento, por esse ponto, e o desdobraram nas mais variadas direções.
O especialista em comunicação e política cultural José Teixeira Coelho Neto, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, abordou o discurso do poder como um ``dizer para não dizer'' e retomou a idéia de Italo Calvino de que uma peste corrói a linguagem verbal de nossa época. Deu um sem-número de exemplos recentes de corrosão ou perversão de vocábulos pela fala cotidiana, pela imprensa, pelas autoridades etc. Um exemplo: a palavra ``animal'' usada como adjetivo de valor positivo.
O debate que se seguiu às proposições de Janine e Teixeira estabeleceu alguns temas que seriam recorrentes. Scarlett Marton, professora de filosofia da USP, introduziu a questão da palavra como jogo e como arma; o professor de literatura (também da USP) José Miguel Wisnik chamou a atenção para o deslocamento contínuo do sentido das palavras e para o paradoxo implicado na tentativa de analisar a linguagem usando uma fala ``neutra''.
Instaurou-se a partir daí uma espécie de alerta máximo quanto ao(s) sentido(s) de cada palavra usada no debate, o que tornou a coisa toda muito divertida.
Até nos bate-papos informais, durante as refeições ou na beira da piscina (``mens sana in corpore sano''), a palavra sempre esteve sob suspeita, apesar do caráter franco e amistoso das conversas.
A maioria das comunicações partiu, como é moda hoje em dia, de textos literários específicos. O professor de literatura grega Antonio Medina Rodrigues apresentou um trecho da ``Odisséia'' de Homero, traduzido por ele, para falar sobre a idéia da linguagem como fundamento da democracia.
Newton Bignotto, professor de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, investigou a existência de uma ``palavra tirânica'' a partir de um texto de Frederico 2º a respeito de Maquiavel. O professor de filosofia da USP Sérgio Cardoso partiu dos ensaios de Montaigne para destrinchar as relações entre a ``fides'' (boa fé) e a perfídia na constituição do espaço político.
Numa das comunicações que deram mais pano para a manga das discussões, José Miguel Wisnik interpretou o conto ``Famigerado'', de Guimarães Rosa, como um ``pequeno tratado de política mineira''. No conto, todo o conflito dramático resulta do fato de que o narrador, um homem letrado, tem de dizer a um temível jagunço o que significa a palavra ``famigerado'', que lhe foi pespegada por um funcionário do governo. Seu desafio é revelar apenas o sentido nobre da palavra (célebre, notável, famoso), omitindo o sentido que adquiriu com o uso (facínora, malfeitor).
O conto, da maneira como foi lido por Wisnik, lança luz sobre inúmeras das questões abordadas no encontro, como as relações entre denotação e conotação, os deslizamentos do sentido, a palavra como arma e como jogo etc.
Scarlett Marton, em vez de concentrar-se num texto específico, preferiu falar sobre a linhagem dos ``outsiders'' da filosofia ocidental, sobretudo desde Pascal até Nietzsche, que questionaram a lógica dicotômica que preside essa filosofia e a sua busca metafísica de verdades abstratas e eternas.
De acordo com o fecundo retrospecto de Scarlett, a cisão medieval entre mundo natural e mundo social se interioriza, na Idade Moderna, no próprio homem, e acaba se multiplicando em dicotomias como corpo e alma, instintos e espírito, paixão e razão.
O jornalista Marcelo Leite, da Folha, debruçou-se sobre outro tipo de texto, o da imprensa. Lembrou sua experiência como ombudsman da Folha (no período 94-96) para discutir as implicações éticas e políticas da prática jornalística.
Ao contrário do que se poderia imaginar, esse encontro de intelectuais numa montanha bucólica não foi uma conversa olímpica alheia ao mundo impuro e conturbado dos fatos. A todo momento, o debate desembocava em temas quentes da atualidade: precatórios, massacre de Diadema, movimento dos sem-terra, futebol (o tema preferido, para desespero da não-aficionada Scarlett).
Uma das discussões mais interessantes, por exemplo, trouxe a questão da ``fides'' e da perfídia, levantadas por Sérgio Cardoso, para a situação ambígua do policial e do traficante (ambos ``phármakon'', venenos-remédios da sociedade atual, segundo Wisnik).
Outro assunto que suscitou discussão acalorada foi a suposta influência das telenovelas sobre o comportamento moral dos telespectadores. Ao mostrar uma garota que resolve ser mãe solteira, a novela induz suas espectadoras a fazer o mesmo ou desculpabiliza as que já o fazem? Ficou como sugestão a realização de um estudo sobre a mimese e a catarse na recepção das telenovelas.
Houve momentos de discreto atrito. Scarlett Marton apontou um certo sexismo na leitura que Medina fez da passagem de Homero (ao dizer que a intervenção de Penélope foi inconveniente no episódio narrado). Teixeira se impacientou com a falta de conclusões utilizáveis na prática política e cultural. Mas tudo se manteve dentro de um clima cordial e, ouso dizer, afetuoso.
Do ponto de vista deste repórter, que se sentiu um pouco como um espião leigo nessa reunião de doutores, algumas conclusões se impõem: 1) intelectual sabe falar língua de gente; 2) intelectual sabe ser divertido; 3) intelectual, com raras exceções, não sabe jogar futebol.


O jornalista José Geraldo Couto viajou a Atibaia a convite da organização do evento ``A Palavra Democrática'', com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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