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+ Literatura
A jovem
testemunha
"Conversas com Kafka" reproduz diálogos entre
o autor tcheco e um aspirante a artista
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poucos textos são tão
misteriosos e enigmáticos quanto os de
Franz Kafka. Daí ser
compreensível que
seus leitores tentem buscar em
fontes externas modos de lidar
com essas obras. No caso do escritor tcheco, os caminhos
usuais são os seus diários, a sua
correspondência e os depoimentos de uns poucos amigos.
É esse o caso de "Conversas
com Kafka" [ed. Novo Século,
tradução de Celina Luz, 240
págs., R$ 37], que julga reproduzir trechos dos diálogos
-ocorridos com vários intervalos de março de 1920 a meados de 1922- entre Gustav Janouch, um jovem aspirante a artista então com 17 anos, e o
autor de "A Metamorfose", na
época um diligente funcionário
de um escritório de seguros.
Nessas "conversas", há conselhos a respeito dos escritos
de Janouch, comentários sobre
a produção recente de poetas
vanguardistas europeus ("Zone", de Apollinaire, por exemplo, é tratado com desdém),
discussões sobre anti-semitismo, temas filosóficos e política.
O problema é que, entre os
encontros ocorridos quase
sempre no escritório de Kafka,
onde também trabalhava o pai
de Janouch, e a publicação de
uma primeira versão do relato,
em 1951, passaram-se quase 30
anos e aconteceram todos os
eventos trágicos da Segunda
Guerra. E o testemunho "completo" surge apenas em 1968,
quando o músico e escritor, já
no final de sua vida (1903-68),
resolve retomar suas antigas
anotações e ampliar o volume.
Talvez por isso o jovem fascinado por um artista complexo
dê lugar, na reprodução de suas
lembranças e notas, a uma espécie de discípulo quase religioso, que vê naquele com
quem fala um oráculo (vegetariano, ascético, justo, elevado)
a proferir verdades bombásticas, muitas das quais de fazer
inveja a qualquer bom livro de
auto-ajuda.
Cito uma: "Os cumes das
montanhas se vêem uns aos
outros. Os vales e as planícies
que estão sob a sua sombra, ao
contrário, nada sabem uns dos
outros, embora vivam em geral
no mesmo nível".
Basta comparar essas "sentenças" com qualquer narrativa de Kafka, das mais simples
às mais enigmáticas, para perceber que a distância que as separa é ainda maior do que a
longa jornada até a próxima aldeia: "Meu avô costumava dizer: "A vida é espantosamente
curta. Para mim ela agora se
contrai tanto na lembrança que
eu por exemplo quase não
compreendo como um jovem
pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que
-totalmente descontados os
incidentes desditosos- até o
tempo de uma vida comum que
transcorre feliz não seja nem
de longe suficiente para uma
cavalgada como essa'". ("A Próxima Aldeia", trad. Modesto
Carone).
Isso para não falar no projeto
-que reforçava, diga-se de passagem, o que muitos críticos
importantes vinham dizendo
de modo exagerado- de transformar o escritor em um profeta que previra todos os horrores do Holocausto.
Sobre essa questão, os interessados podem conferir o bom
-e também exagerado- "Kafka as Holocaust Prophet - A
Dissenting View" [Kafka como
Profeta do Holocausto - Uma
Voz Discordante], em "Admitting the Holocaust", de Lawrence Langer).
Como diz Janouch, "talvez
aquilo que o sr. escreve, em
meio ao atual "cine dos cegos",
seja simplesmente um espelho
de amanhã". Ao que este Kafka
que ele construiu, páginas depois, acrescentaria: "O escritor
tem por tarefa dar acesso à vida
infinita o que é isolado e mortal
e à necessidade da lei o que é
contingente. Ele tem uma tarefa profética".
Trata-se, enfim, de um livro
escrito por devoção (não por
vaidade, como tantos), mas que
teve, no seu autor, alguém incapaz de chegar perto da altura
(ou seria da distância?) do personagem que quis retratar.
ADRIANO SCHWARTZ leciona literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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