São Paulo, domingo, 20 de abril de 2008

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+ Literatura

A jovem testemunha

"Conversas com Kafka" reproduz diálogos entre o autor tcheco e um aspirante a artista

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poucos textos são tão misteriosos e enigmáticos quanto os de Franz Kafka. Daí ser compreensível que seus leitores tentem buscar em fontes externas modos de lidar com essas obras. No caso do escritor tcheco, os caminhos usuais são os seus diários, a sua correspondência e os depoimentos de uns poucos amigos.
É esse o caso de "Conversas com Kafka" [ed. Novo Século, tradução de Celina Luz, 240 págs., R$ 37], que julga reproduzir trechos dos diálogos -ocorridos com vários intervalos de março de 1920 a meados de 1922- entre Gustav Janouch, um jovem aspirante a artista então com 17 anos, e o autor de "A Metamorfose", na época um diligente funcionário de um escritório de seguros.
Nessas "conversas", há conselhos a respeito dos escritos de Janouch, comentários sobre a produção recente de poetas vanguardistas europeus ("Zone", de Apollinaire, por exemplo, é tratado com desdém), discussões sobre anti-semitismo, temas filosóficos e política.
O problema é que, entre os encontros ocorridos quase sempre no escritório de Kafka, onde também trabalhava o pai de Janouch, e a publicação de uma primeira versão do relato, em 1951, passaram-se quase 30 anos e aconteceram todos os eventos trágicos da Segunda Guerra. E o testemunho "completo" surge apenas em 1968, quando o músico e escritor, já no final de sua vida (1903-68), resolve retomar suas antigas anotações e ampliar o volume.
Talvez por isso o jovem fascinado por um artista complexo dê lugar, na reprodução de suas lembranças e notas, a uma espécie de discípulo quase religioso, que vê naquele com quem fala um oráculo (vegetariano, ascético, justo, elevado) a proferir verdades bombásticas, muitas das quais de fazer inveja a qualquer bom livro de auto-ajuda.
Cito uma: "Os cumes das montanhas se vêem uns aos outros. Os vales e as planícies que estão sob a sua sombra, ao contrário, nada sabem uns dos outros, embora vivam em geral no mesmo nível".
Basta comparar essas "sentenças" com qualquer narrativa de Kafka, das mais simples às mais enigmáticas, para perceber que a distância que as separa é ainda maior do que a longa jornada até a próxima aldeia: "Meu avô costumava dizer: "A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que -totalmente descontados os incidentes desditosos- até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa'". ("A Próxima Aldeia", trad. Modesto Carone).
Isso para não falar no projeto -que reforçava, diga-se de passagem, o que muitos críticos importantes vinham dizendo de modo exagerado- de transformar o escritor em um profeta que previra todos os horrores do Holocausto. Sobre essa questão, os interessados podem conferir o bom -e também exagerado- "Kafka as Holocaust Prophet - A Dissenting View" [Kafka como Profeta do Holocausto - Uma Voz Discordante], em "Admitting the Holocaust", de Lawrence Langer).
Como diz Janouch, "talvez aquilo que o sr. escreve, em meio ao atual "cine dos cegos", seja simplesmente um espelho de amanhã". Ao que este Kafka que ele construiu, páginas depois, acrescentaria: "O escritor tem por tarefa dar acesso à vida infinita o que é isolado e mortal e à necessidade da lei o que é contingente. Ele tem uma tarefa profética".
Trata-se, enfim, de um livro escrito por devoção (não por vaidade, como tantos), mas que teve, no seu autor, alguém incapaz de chegar perto da altura (ou seria da distância?) do personagem que quis retratar.


ADRIANO SCHWARTZ leciona literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


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