São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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"Amores Brutos", primeiro filme do diretor Alejandro González Iñarritu, que estréia no Brasil nesta semana, investiga as contradições da sociedade mexicana

Notícias de uma guerra civil

Cássio Starling Carlos
Editor do Folhateen

A Cidade do México é um experimento antropológico e eu me sinto parte dele. Sou apenas um dos 21 milhões que vivemos na maior cidade e na mais povoada do mundo. Nenhum homem no passado viveu (ou melhor, sobreviveu) em uma cidade com semelhantes níveis de poluição, violência e corrupção, e apesar disso ela é incrível e paradoxalmente bonita e fascinante, e isso é "Amores Perros': o fruto dessa contradição."
A definição, dada por seu diretor, Alejandro González Iñarritu, estreante no cinema depois de ter dirigido cerca de 800 filmes publicitários, poderia ter sido feita por algum talentoso cineasta brasileiro (pelo menos algum que andasse por aí com os olhos bem abertos). Pois a forma como Iñarritu filma a Cidade do México é a mesma como nós, habitantes das grandes cidades brasileiras, enxergamos o caos urbano e social no qual estamos metidos.
"O mais ambicioso e espantoso filme que surgiu na América Latina em três décadas", ajuizou com exagero o "The New York Times". Nem tanto assim, mas de fato é difícil não se entusiasmar diante desse painel construído a partir da mistura bem conhecida na qual entram decadência social, violência generalizada e sonhos absurdos de ascensão, movidos pelo mundo de ficção criado pela TV.
"Amores Perros" (transformado em "Amores Brutos" na tradução capenga do título) articula três histórias, que se unem a partir de uma batida de carros numa esquina da Cidade do México. Três blocos narrativos, três amores "do cão". O primeiro: entre um jovem desempregado de periferia por sua cunhada, uma adolescente grávida, vítima do machismo e da violência doméstica. O segundo: entre um editor casado e sua amante, uma modelo ("uma das mulheres mais belas da América Latina") protagonista de uma campanha publicitária de um perfume sofisticado. O terceiro: entre um mendigo, ex-guerrilheiro político convertido em assassino de aluguel, e sua filha, que desconhece a existência do pai.
A sinopse assemelha-se à de uma novela de TV, e a semelhança é intencional. Com as telenovelas o filme compartilha o foco (família, casal, mendigo) e, sobretudo, a ênfase no melodrama. A diferença é que no caso dos produtos fabricados pela TV, tanto lá quanto aqui, as contradições sociais, as divergências, as disputas em geral são apaziguadas ao longo das tramas, movidas a paixões românticas, enriquecimentos lícitos e outras ficções.
No filme, ao contrário, a contradição, a oposição entre pares é exacerbada ao extremo até ser reconduzida a uma espécie de matriz mítica -Caim e Abel-, formulada explicitamente a certa altura. A impressão é que estamos assistindo a uma novela de Manoel Carlos que tivesse sido dirigida por dom Luis Buñuel ("Tristana" é apenas uma das referências, explícita no episódio Daniel e Valeria), pois o filme abole o efeito "como se" das ficções libertadoras e mergulha em direção à rudeza sem artifícios. A grande cidade transforma-se no espaço contemporâneo do "estado de natureza" hobbesiano, no qual a lei vigente é a do mais forte, ou seja, a do mais violento.
Esse retorno não-idílico à natureza recebe uma configuração ainda mais explícita com a presença dos cães em todos os três episódios. Não se trata de uma fórmula simplista e metafórica, na qual os cães e os homens são trocados de lugar na hierarquia moral e passam a atuar uns como os outros.
O respeito, os afetos, o cuidado, alguns dos básicos pressupostos por trás da chamada "civilidade", aparecem aqui transferidos integralmente para os animais (o mesmo princípio em ação no estupendo e pouco compreendido "O Fantasma", do português João Pedro Rodrigues).
O rottweiller assassino sangra no banco de trás do carro e o desespero dos jovens é para salvá-lo; no programa de TV, a modelo apresenta seu amor de fachada, e o casal mostra com orgulho o cãozinho de estimação, tratado como "filhinho"; na cena do acidente, em meio a mortos e gravemente feridos, o cão é a única "vítima" que sobrevive sem sequelas.
Depois de séculos sendo atraiçoados pela "infidelidade humana", parece que encontramos na "fidelidade canina" um derradeiro conforto. Um sintoma disso está no letreiro feito para a exibição do filme nos EUA, no qual se alerta o público de que "os animais não sofreram nenhum tipo de agressão nas filmagens". "A violência entre humanos aparentemente não demanda esse tipo de esclarecimento", ironizou a "Salon" em sua crítica sobre o filme.

Estética da urgência Como será exibido no Brasil após "Traffic", o filme mexicano pode acabar sendo visto como um arremedo daquela estética adotada por Steven Soderbergh em seu painel sobre as drogas. Mas "Traffic" foi filmado poucas semanas após "Amores Perros" e os elementos em comum derivam mais de uma contemporaneidade no modo de ver e de mostrar do que de influência.
A imagem predominante nos dois filmes é praticamente a mesma: a câmera na mão, a instabilidade dos planos, a proximidade física exacerbada dos corpos dos atores, a edição em "tempo real" (a câmera se movendo veloz de um espaço a outro sem corte), tudo isso serve para reiterar a urgência do que está sendo narrado.
Muito se tem falado (e se falará) das semelhanças (inegáveis, aliás) entre "Amores Perros" e os filmes de Quentin Tarantino. Mas é outra estética, a dos programas policiais de TV, que repercute com força ainda maior nessas imagens -tanto nas de "Traffic" quanto nas de "Amores Perros". Basta lembrar a linhagem que no Brasil teve início com o "Aqui Agora". É como uma adequação da imagem à brutalidade do seu objeto, mas também um grau a mais de "realismo".
O mais estimulante em um filme como "Amores Perros", contudo, é sua capacidade de se apropriar de uma estética forjada pelo mundo do espetáculo (TV, videoclipe, cinema de ação) e subvertê-la (sem precisar contradizê-la nem negá-la) na construção de um filme que é sobretudo político.
"Para mim, os "Amores Perros" são três histórias de amor, no contexto de uma guerra civil, e a guerra civil é o cotidiano da Cidade do México. Existe beleza, aqui, mas aqui é um campo de batalha", definiu o diretor do filme. Alguma semelhança?


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