São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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+ sociedade

Escritor discute o fortalecimento da direita na Itália e a ameaça às instituições democráticas

A vigência do antifascismo

Comemorou-se há pouco, na Itália, o 25 de abril, aniversário da libertação do fascismo, da vitória dos aliados sobre os nazistas e dos "partigiani" sobre os partidários da República de Salò, uma data que, por tudo isso, se transformou em festa nacional, isto é, uma festa de todos os italianos.
Porque nossa república se funda no antifascismo, e nossa pátria nele se reconhece. Há cerca de três anos, tive a oportunidade de assistir à cerimônia de traslado dos restos mortais do escritor André Malraux para o Panteão da França. A solenidade foi presidida por Jacques Chirac, presidente da República e representante da direita francesa, herdeira política do partido do mesmo general De Gaulle (de quem Malraux foi ministro), que, com suas tropas e com a Resistência francesa, libertou seu país dos invasores nazistas.
Mas Chirac não conduzia ao Panteão um ex-ministro de De Gaulle (pois, nesse caso, todos os ex-ministros mereceriam a mesma honra), e sim um herói nacional: o Malraux que, como antifascista, lutara contra o franquismo na Guerra Civil Espanhola e como maqui na Alsácia contra os nazistas. No momento em que o féretro entrou no Panteão, a orquestra tocou o hino da Resistência e "A Marselhesa". O antifascismo, de fato, não é, nem na França nem na Itália, uma "opção", mas um denominador comum das democracias européias do pós-guerra. Na França, não aceitar o princípio do antifascismo significa a exclusão da vida política, segundo uma rigorosíssima "conventio ad excludendum" (inspirada no Front Républicain), promovida justamente pela direita gaullista (uma direita nem um pouco light).
Assim, Jacques Chirac fez questão de deixar claro que não recorreria aos votos do partido de Le Pen, mesmo que isso significasse perder as eleições. Na França, um acordo com Le Pen, por mais secreto ou "técnico" que seja, está totalmente fora de discussão, até mesmo numa tese acadêmica. De Gaulle impôs o antifascismo como horizonte comum e insuperável não apenas do ser democrático, mas também do ser francês: quem flerta com alguma fórmula de revisionismo fascista ou fascistóide ou quem, por qualquer motivo, justifica o governo de Vichy é imediatamente considerado um traidor da pátria.
Na Alemanha, o antifascismo também faz parte da Constituição e considera-se delito negar ou minimizar o extermínio do povo judeu (assim como o dos ciganos, dos homossexuais, dos deficientes ou dos opositores políticos de Hitler). Na Espanha de hoje, nem mesmo os representantes da direita ou os políticos que pertenceram à ala moderada do franquismo ousariam reivindicar esse regime. Em Portugal, a festa nacional (lá também o 25 de abril) é a festa da Revolução dos Cravos, isto é, a libertação do salazarismo, e a atual direita portuguesa nem em sonhos se remeteria aos princípios daquele regime fascistóide. Seria desnecessário, por fim, falar da Bélgica, da Holanda ou da Dinamarca, democracias que excluem firmemente qualquer possibilidade de ressurgimento do fascismo.
O antifascismo, portanto, não é uma questão de opção para ninguém, mas sim o irrenunciável horizonte comum da atual cidadania européia. Pois bem, na Itália, cuja Constituição nasce da Resistência e se fundamenta no antifascismo, ultimamente a direita tem manifestado renovado carinho pelo fascismo, a ponto de consentir que os seguidores dessa ideologia, que tantos massacres e catástrofes causaram à nossa Europa, sejam legitimados, mimados e cortejados, tolerando o descaramento e a arrogância com que ferem nossa Carta Magna.
Uma recente amostra disso, denunciada com preocupação por personalidades como Alessandro Galante Garrone e Paolo Sylos Labini, foi protagonizada pelo partido de Silvio Berlusconi ao dar um passo decisivo para o abraço funesto que o qualifica abertamente como direita antidemocrática, parafascista e, por isso mesmo, auto-excluída dos valores europeus: a aliança eleitoral com o movimento do nazifascista Pino Rauti, indivíduo que, além disso, está sendo investigado pela Procuradoria da República como autor de um atentado. No ano passado, o presidente da República, Ciampi, assim como fizeram seus antecessores Sandro Pertini e Oscar Luigi Scalfaro, prestou sua homenagem, em nome de toda a nação, às 560 vítimas do massacre nazista de Sant'Anna di Stazzema, na Província de Lucca, localidade agraciada com a medalha de ouro de mérito militar.
Gostaria de lembrar os pormenores daquela matança aos leitores que não a conheceram. Eis o que ocorreu quando os nazistas chegaram ao povoado, nas palavras do escritor local Manlio Cancogni: "Os habitantes foram empurrados para os corredores e os andares baixos para ali serem metralhados, e, enquanto muitos deles ainda estavam vivos, as casas eram incendiadas; as paredes, os móveis, os cadáveres, os corpos vivos, os animais nos estábulos, tudo ardia numa única chama. Depois havia os que tentavam fugir pelos campos e eram abatidos com rajadas de metralhadora, quando, com um grito de angústia e de suprema esperança, já se encontravam nos limites do bosque que poderia salvá-los. Havia ainda as crianças, os frágeis corpos infantis que excitavam aquela libido demente de destruição. Quebravam-lhes o crânio com as culatras de suas armas e, traspassando-os com um bastão, pregavam-nos nas paredes das casas. Sete delas foram colocadas num forno preparado para o pão daquela manhã e assadas em fogo lento. E ainda não tinham terminado. Desceram pelo caminho do vale, sedentos de tortura e destruição, cometendo novos crimes até a caída da noite".
Leio no jornal o anúncio insólito de um fato que aconteceu, ao que parece, sem que nossas instituições nada fizessem para impedi-lo: em 25 de abril, em Lucca, a poucos quilômetros do local do massacre, os neofascistas da Forza Nuova, com a conivência do prefeito da Forza Italia (ao que tudo indica, uma aliança de Forças), o senhor Pietro Fazzi, homenagearam o hierarca fascista Pavolini em um edifício da prefeitura.
Nesse mesmo 25 de abril, a mesma força neofascista prestou homenagem a Mussolini em Piazzale Loreto. Trata-se de manifestações de desprezo à Constituição e às leis da República italiana por parte de um neofascismo que em nosso país já avança abertamente, beneficiando-se de uma impunidade surpreendente. Esse é um momento extremamente grave, e os cidadãos não podem se mostrar indiferentes e muito menos permanecer equidistantes ou neutros, diante da alternativa entre fascismo e antifascismo. Nossa democracia é jovem e frágil, e toda vigilância é pouca.
A Itália, como outras nações do continente, realizou nos últimos anos consideráveis esforços para se integrar economicamente à realidade concreta e operativa que é a Comunidade Européia. A Europa, assim como todos os cidadãos que permanecem fiéis à Constituição da República, não aceitará que as conquistas democráticas num país como o nosso sejam burladas.


Antonio Tabucchi é italiano, professor de língua e literatura portuguesas na Universidade de Siena e autor de "Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa" (Rocco), entre outros.

Tradução de Rubia Prates Goldoni.




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