São Paulo, domingo, 20 de maio de 2007

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Signos da auto-ajuda

Dois lançamentos discutem a história da astrologia e seu ajuste às necessidades da sociedade contemporânea

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qual o lugar social, o significado cultural e o uso predominante da astrologia na atualidade?
Dois livros recém-lançados, com orientações distintas e complementares, fornecem alguns elementos que indicam as formas sob as quais a teoria e a prática da astrologia procuram se legitimar em um mundo inteiramente dessacralizado.
"História da Astrologia", de Kocku von Stuckrad, apresenta, em estilo convencional, uma descrição factual e positiva dos principais desdobramentos da astrologia desde a Mesopotâmia.
Em ordem cronológica e linear, destaca biografias individuais e traça drásticos resumos de complexos sistemas filosóficos e teológicos.
Ao contrário do que sugere o autor, não configura uma "história cultural", pois, em vez de se debruçar sobre as práticas sociais da astrologia, se atém apenas a seu estatuto teórico.
Von Stuckrad parte de uma premissa que não cansa de ressaltar, a "da impressionante continuidade das tradições astrológicas na história da cultura ocidental". O resultado do livro, no entanto, é a demonstração da tese oposta.

Fundamentos intelectuais
Sob o mesmo nome (e a mesma hipótese genérica de que a configuração dos astros influencia a ação humana), se descortina uma multiplicidade de modalidades que variam desde as tentativas de prever eventos históricos ou pessoais até a determinação psicológica do "caráter".
Professor de "história da filosofia hermética" em Amsterdã, Stuckrad almeja mais do que fornecer um relato das modificações temporais da astrologia.
Propõe-se a reconstituir a história dessa atividade em seus fundamentos intelectuais, reafirmando-a como tradição teórica, ao mesmo tempo em que busca situar sua nova posição num mundo moldado pela racionalização científica.
Nesse registro, a dimensão mágica da astrologia -sua utilização como oráculo e técnica de adivinhação- permanece na sombra, assim como suas funções em rituais religiosos.
Ressaltam-se seus vínculos com a tradição filosófica e científica (mesmo quando a diferenciação dessas esferas diante da religião era mínima) e adota por ideal a época renascentista, quando a disciplina, um segmento da filosofia natural, tinha lugar e destaque na vida universitária.
Após a separação entre astronomia e astrologia, esta sobreviveu como ramo do esoterismo (ancorada na sociedade teosófica de Madame Blavatsky) ou como empreendimento comercial assentado na publicação em série de revistas e horóscopos.
A partir de que solo se torna possível tentar legitimar novamente a astrologia como saber "científico"?
A resposta de Stuckrad, dando verniz teórico a um giro que a prática astrológica já perpetrou, é simples. Trata-se de descrevê-la não mais como uma ciência matemática, mas como uma hermenêutica voltada não tanto para o diagnóstico e a previsão dos acontecimentos, mas para o conhecimento da "alma" e da "personalidade".
As casas do zodíaco tornam-se símbolos, elementos dos arquétipos imemoriais descritos por Carl Gustav Jung em sua teoria do inconsciente coletivo.
"Astrologia - Uma Novidade de 6.000 Anos", de Maria Eugênia de Castro, ilustra bem essa modificação no uso e significado da astrologia.
O instrumental clássico, os 12 signos, a posição dos planetas, as casas astrológicas, é redirecionado para a exposição de "perfis psicológicos" que destacam as predisposições do indivíduo em sua situação familiar, amorosa, financeira, profissional, social.

Mundo ilustrado
A astrologia adapta-se, assim, ao cenário de um mundo ilustrado. Restringe-se a fornecer conselhos pragmáticos e úteis para os problemas do cotidiano, sufocando sua dimensão esotérica.
As premissas do gênero, estabelecidas por T.W. Adorno em "The Stars Down to Earth and Other Essays on the Irrational in Culture [Os Astros Descem à Terra e Outros Ensaions sobre o Irracional na Cultura, ed. Routledge], se aplicam perfeitamente ao livro de De Castro.
Pode-se observar na composição dos "perfis" o esforço para equilibrar exigências contraditórias, como é o caso do par ameaça/alívio configurado pela dicotomia entre diagnóstico e conselho ou pela oscilação entre o ato de infundir angústia e o de satisfazer o narcisismo.
Tarefa facilitada pelo uso da noção de "polaridade", que possibilita, por exemplo, descrever a atitude perante o sexo como um espectro que se estende do ascetismo ao desregramento.
A descrição adorniana pode ser complementada com a adição de uma nova modalidade, predominante nas manifestações recentes do gênero, a submissão do discurso astrológico ao modelo da literatura de auto-ajuda.
A astrologia sobrevive assim como uma prática de auto-racionalização, degradação do ideal de autoconhecimento a uma técnica de transformação interior e autocontrole que reforça a adequação conformista ao curso do mundo.
RICARDO MUSSE é professor no departamento de sociologia da USP.


HISTÓRIA DA ASTROLOGIA - DA ANTIGÜIDADE AOS NOSSOS DIAS
Autor:
Kocku von Stuckrad
Tradução: Kelly Passos
Editora: Globo
Quanto: R$ 44 (448 págs.)

ASTROLOGIA - UMA NOVIDADE DE 6.000 ANOS
Autora:
Maria Eugênia de Castro
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 49,90 (416 págs.)



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