São Paulo, domingo, 20 de maio de 2007

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Do luxo ao lixo

O historiador da USP Henrique Carneiro fala da trajetória da fruta, que passou de produto caro no início do século 20 para, depois, invadir as mesas do Ocidente Do luxo ao lixo

DA REDAÇÃO

Entre as que se podem classificar como "frutas frescas" -o tomate, por exemplo, não costuma entrar na conta-, a banana é a mais comercializada: mais de 12,8 milhões de toneladas delas foram exportados em 2004, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
A planta de origem asiática, em sua ascensão no consumo e no imaginário mundiais, assumiu conotações pejorativas associadas aos países pobres, alguns deles "repúblicas das bananas".
Para Henrique Soares Carneiro, professor de história na USP e autor de "Comida e Sociedade" (Campus-Elsevier), aconteceu com a banana o mesmo que com o café: de insumo de luxo, passou a ser artigo de massa.
Em entrevista à Folha, Carneiro fala da história da banana no Brasil e ainda arrisca explicar por que ela, e não o caju ou o abacaxi, assumiu lideranças cultural e gastronômica. (EGN)

 

FOLHA - Como se deu a chegada da banana ao Brasil?
HENRIQUE SOARES CARNEIRO -
A maioria das variedades no Brasil é de origem africana. O termo "banana" é africano. Mas a banana chegou à África vinda da Ásia.

FOLHA - Aqui ela era um produto de rico ou do povo?
CARNEIRO -
A banana era popular. Já existia outro tipo de banana, a pacova, que é como a banana-da-terra, mais usada assada ou cozida, pois não é muito saborosa crua. Ela já tinha importância razoável para os indígenas.
A banana asiática, via africana, do gênero Musa, passou a ter não só um uso muito popular na alimentação mas passou a ter uma representação simbólica muito curiosa: a identificação com a árvore do Paraíso.
Um dos cronistas dos primeiros tempos do Brasil colonial, Pero de Magalhães Gândavo [?-1579] diz que seria essa a fruta com a qual Adão e Eva teriam pecado.
Há outras referências de Garcia d"Orta [cerca de 1500-1568], mais importante cronista português na Ásia, que diz a mesma coisa: a banana seria o fruto proibido do jardim do Éden.

FOLHA - Por quê?
CARNEIRO -
Por duas razões: primeiramente porque, ao cortar a banana em rodelas, pode-se ver uma cruz no centro. [O historiador] Sérgio Buarque de Holanda menciona, em "Visão do Paraíso", essa interpretação de Gândavo. Há também a idéia de que a bananeira é que teria fornecido a "roupa" a Adão e Eva, pois suas folhas são muito grandes.

FOLHA - Essa imagem não chegou a nossa geração.
CARNEIRO -
Não teve muita repercussão posterior, mas teve no nome científico das espécies: "musa paradisíaca", "musa sapientum"... A lenda permaneceu por tempo suficiente para chegar à classificação de Lineu, na primeira sistematização da botânica moderna, no século 18.

FOLHA - Na crônica medieval o formato da fruta não era mencionado?
CARNEIRO -
Nunca vi o aspecto fálico ser destacado. Não vi referências a isso. Houve o contrário: um atributo de valores cristãos, castos, em última instância.
Adão e Eva se cobrem com sua folha.

FOLHA - E a competição com a maçã pela imagem de fruta do Paraíso?
CARNEIRO -
É uma idéia muito recente, a da maçã. No período colonial, várias frutas foram identificadas, como o maracujá, nomeado "fruto da paixão" -ele recebe esse nome porque sua flor representaria a Paixão de Cristo.

FOLHA - A maçã não estava entre elas?
CARNEIRO -
Não, justamente porque não é uma fruta das regiões tropicais, onde o Paraíso supostamente se localizaria.

FOLHA - E como uma fruta "exótica", a banana, ultrapassa as outras como a fruta fresca mais vendida no mundo?
CARNEIRO -
Primeiro porque é uma espécie de emblema do fruto tropical por excelência. Tem um gosto atraente e várias utilidades possíveis.

FOLHA - Participa da imagem histórica da banana seu papel como remédio?
CARNEIRO -
Não sei se a difusão da banana tem a ver com virtudes terapêuticas.
Tem mais relação com o sabor, a facilidade de transformar em papa, em mingau.
Câmara Cascudo, na "História da Alimentação no Brasil", diz que "nenhuma fruta teve tão fulminante e decisiva popularidade.
Tão surpreendente quanto o amendoim na África" -o amendoim, americano, depois muito importante na África. "Foi a maior contribuição africana para a alimentação do Brasil, em volume, difusão e uso".

FOLHA - Essa fruta popular e sagrada tem mais significados pejorativos do que virtuosos...
CARNEIRO -
D. Pedro 2ø era o "Pedro Banana"...

FOLHA - De onde vem esse paradoxo?
CARNEIRO -
É a localização social. Aqui é uma fruta de pobres, vinda da África, pelos escravos que já a consumiam com importância, e se manteve como alimento barato, "a preço de banana".
Ao contrário, nos países frios, antes dos meios de transporte contemporâneos, era uma das mais exóticas, quase inacessível.

FOLHA - Como aparece historicamente essa diferença entre as maneiras como nós vemos a banana e os países desenvolvidos? A expressão "República das Bananas", por exemplo.
CARNEIRO -
A origem é a América Central, mas também o Equador, um dos grandes produtores de banana.
A presença da United Fruit nesses países condicionou as economias nacionais a essa fruta.
A tecnologia tornou uma série de produtos tropicais acessíveis aos mercados do hemisfério norte, o que conferiu a eles um estatuto de luxo.

FOLHA - Emblema de luxo ou de Terceiro Mundo?
CARNEIRO -
De luxo, porque era um produto caro.

FOLHA - E houve uma mudança no "estatuto social" da banana ao longo do século 20?
CARNEIRO -
Sim, pelo fato de ser um produto tipicamente de camadas subalternas nas regiões de origem que ganha o status de luxo nos países da Europa. Há uma inversão na escala de valores.
Mas é como o café: depois de um tempo, com a popularização, o produto se torna banal.
A vulgarização do luxo é um roteiro repetitivo na história dos produtos alimentares -não só alimentares: Voltaire já falava do espelho como produto de luxo que se torna essencial.

FOLHA - O rico comia banana no início da colonização do Brasil? O nobre?
CARNEIRO -
Segundo a crônica dos viajantes estrangeiros, especialmente no século 19, havia a opinião de que, no Brasil, todo mundo comia igualmente.
Havia pouca distinção social pela alimentação. E dá para dizer que essa característica antecede esse período: a crônica anterior, escassa, fala das condições difíceis de sobrevivência, em que a importação de produtos de luxo trazia produtos externos, como o vinho e o trigo, para a casa-grande, mas em que a comida do dia-a-dia era muito semelhante.
Vê-se em Gilberto Freyre ou Câmara Cascudo que o feijão e a carne-seca não eram coisas só da senzala. Era uma alimentação generalizada, como o uso do açúcar nos doces.
Na alimentação cotidiana, a base da alimentação brasileira até o século 19 era mais ou menos homogênea.

FOLHA - E isso é diferente de outros países?
CARNEIRO -
Sim, por causa da posição do Brasil no comércio internacional. A Europa e, depois, os EUA, tinham acesso a uma diversidade muito grande.
O Brasil não tinha um grande comércio de produtos estrangeiros de luxo alimentar. Mesmo queijos havia muito poucos. Vinham o vinho, o azeite e um pouco de presunto. Chegou-se a autorizar o uso de óleo de cabreúva no lugar do azeite de oliva nas unções da igreja.
Não havia algo como o senhor comer maçã e o escravo comer banana. Comia-se a comida da terra. A fruta mais popular era o caju. Os cajueiros eram a paisagem do litoral brasileiro, foram substituídos pelos coqueiros, disseminados no final do século 17.

FOLHA - Que frutas eram populares entre os nativos?
CARNEIRO -
Caju e abacaxi eram as mais populares entre as populações indígenas, talvez por seu conteúdo de açúcar. Eram fermentadas e transformadas em cauins. O cauim de maior teor alcoólico era o de abacaxi, que tem mais açúcar.

FOLHA - Lembra-se da análise da "New Scientist", em 2003, prevendo o desaparecimento da banana por sua fragilidade genética?
CARNEIRO -
Eu fiquei impressionado com a notícia.

FOLHA - Que impacto teria o desaparecimento da banana, em sua opinião?
CARNEIRO -
Os mais diversos. Seria uma grande perda para as regiões produtoras e também do ponto de vista cultural.

FOLHA - O sr. gosta de banana?
CARNEIRO -
Gosto muito, mas não diria que é minha fruta preferida.


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