São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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O CRimE DO AMoR PeLO CINemA

O CINEASTA ITALIANO BERNARDO BERTOLUCCI FALA AO MAIS! DE SEU NOVO FILME, "OS SONHADORES", PREVISTO PARA ESTREAR NO BRASIL EM NOVEMBRO

Maria Andrea Muncini
Aldo Villani

free-lance para a Folha

O amor pelo cinema é como ser membro de uma sociedade secreta, clandestina, na qual se comete um crime que, depois, é o grande amor pelo cinema." É o que confiou ao Mais!, sorrindo consigo mesmo, Bernardo Bertolucci, em Roma, no seu estúdio na rua Lungara, na margem direita do Tevere, sob a colina do Gianicolo -a belíssima e antiga estrada que leva ao coração da Roma "transtiberiana", o Trastevere, um dos bairros mais famosos e pitorescos da cidade.
"Se a gente não se cura de todo, que sentido há em acabar?", diz. Mas dessa vez falava, também com simplicidade e convicção, de suas idas ao analista, porque também as sessões psicanalíticas estão de alguma maneira dentro de seu cinema: "A análise é como um objetivo a mais a ser colocado na máquina de filmar, que olha dentro das pessoas, no inconsciente, no mistério", quando fala aos atores sobre aquilo que devem fazer e como devem fazer, para ajudá-los a entrar no papel.
No fim dos anos 50, depois da infância e a primeira juventude na cidade de Parma, veio para Roma, a grande velha cidade, a do cinema de Rossellini e De Sica e, logo depois, a de Pier Paolo Pasolini, o inquieto poeta, literato e roteirista, que morava em Monteverde Vecchio, o belo bairro sobre a pequena colina, no primeiro andar da mesma nova casa dos Bertolucci.
São de fato os anos em que o jovem Bertolucci já pusera um pé no cinema com sua câmera de 16 milímetros: um par de curtas-metragens, esperando a vez de se apresentar na Mostra de Veneza de 1962 com "La Commare Secca", com roteiro de seu admirado poeta e co-inquilino, que um ano antes se impusera com "Accattone" (Desajuste Social): uma espécie de contágio, de osmose de "Accattone" para "La Commare Secca", como a história do ovo nascido antes ou depois da galinha.
Mas a estrada que conduziu Bertolucci de "La Commare Secca" a "The Dreamers" (Os Sonhadores, 2003) é bem diferente, oposta mesmo àquela que conduziu Pasolini de "Accattone" a "Salò ou os 120 Dias de Sodoma". Os nós intermediários de Bertolucci vão de "Antes da Revolução" (1964) a "O Conformista" (1970), de "O Último Tango em Paris" (1972) a "1900" (1976), de "A Tragédia de um Homem Ridículo" (1981) a "Assédio" (1998), com um discurso sempre mais tenso, sensível, complicado, deslocando-se progressivamente do social para o político, o particular, o subjetivo, com um olhar que parece obstinadamente querer fitar sempre o profundo do ânimo dos jovens, homens e mulheres, posto no fundo sem nunca ser esquecido.

Depois de "O Conformista" (1970) e "O Último Tango em Paris" (1972), o sr. voltou a Paris para filmar "Os Sonhadores". Qual a emoção de rodar um novo filme em Paris após mais de 30 anos?
Fiz tudo para reprimir a recaída na nostalgia. Se você reparar, no filme não há nenhum dos lugares vistos em "O Último Tango" ou "O Conformista".
Nem mesmo nos exteriores, absolutamente nada. Procurei evitar os mesmos lugares porque não queria que houvesse, como dizer, nostalgia auto-referencial. Portanto, lugares diferentes. O ponto em comum entre "O Último Tango" e "Os Sonhadores" é, ao contrário, a importância do erotismo: mas, enquanto o erotismo daquele era cavernoso, quase mortuário, o de "Os Sonhadores" é jovial, alegre, de jovens em torno dos 20 anos. Talvez seja Paris que me sugira histórias em que o eros é importante...

Mais de uma vez o sr. manifestou a intenção de filmar a terceira parte de "1900", tendo como centro o período a que se refere em "Os Sonhadores". Como acabou escolhendo um filme só sobre 68?
É verdade. Alguns anos atrás tive a idéia de fazer a continuação de "1900", porque me parecia que ele não tinha acabado: "1900" vai até 25 de abril de 1945 (dia da insurreição geral dos "partigiani") e me parecia justo rodar uma continuação que chegasse ao fim do século.
Depois, refletindo, dei-me conta de que "1900" tinha raízes numa grande mudança política, a de 74 a 78, quando Aldo Moro (presidente do Conselho) e Enrico Berlinguer (secretário do Partido Comunista Italiano) lançaram juntos o que se chamou "compromisso histórico" (possibilidade de o PCI se tornar partido de governo). Dei-me conta, no entanto, de que, se realizasse a terceira parte de "1900", teria dado um passo em falso, porque aquela solução política não tinha mais sentido: as promessas, falidas, hoje ficaram completamente sem significado.
A idéia de sua realização e uma fé política daquele tipo não estavam mais em mim e tampouco na coletividade. Pensei então em fazer um filme mais geral sobre os anos 60, sobre a utopia como sonho de um mundo melhor. Depois de ler o livro de Adair, comecei a pensar em "Os Sonhadores" observando como ele falava de 68, de Paris, daquela atmosfera, sentida por alguém que a viveu na primeira pessoa e compreendeu e colheu os seus significados profundos.

Como se colocam em relação a seu filme "La Meglio Gioventù" (2003), de Marco Tulio Giordana, e "Buongiorno, Notte" (2003), de Marco Bellocchio?
Os filmes de Giordana e Bellocchio são muito diferentes entre si. "La Meglio Gioventù" se relaciona de alguma maneira com "1900" pelo seu grande respiro histórico: parte de 66, da grande inundação de Florença, quando estudantes e jovens de todas as partes do mundo acorreram para ajudar as pessoas tão duramente atingidas e contribuíram também para salvar o imenso patrimônio cultural em perigo, lançando as bases daquilo que seria o movimento de voluntariado dos anos 90. Logo, um filme também épico.
O filme de Bellocchio, ao contrário, é um filme com a visão pessoal de um acontecimento histórico. A coisa que mais me agradou nele foi o final, com a idéia da libertação de Moro, de não matá-lo, ou seja, a idéia muito cinematográfica e ao mesmo tempo surreal de ele sair de casa sorrindo, carregando alguma coisa de extraordinariamente liberatório numa alvorada triste e cinzenta. Bellocchio partiu do dado histórico de Moro trancado num apartamento com seus seqüestradores, a que se mistura uma interpretação pessoal, de Bellocchio homem: Moro não é mais Moro, talvez seja o pai de Bellocchio, como ele mesmo recordou, voltando à infância, quando o pai ia ver dormir os seus numerosos filhos ao voltar tarde para casa, e ele sentia aquela presença, exatamente como se vê também no final do filme. Libertar Moro seria como libertar uma geração inteira, não culpada por sua morte, mas de qualquer maneira se sentindo um pouco responsável.
No filme, ao contrário, nós o vemos sair, quase como se realizasse uma magia... Aí está, Moro ressuscitado: isto me agradou muito.
Quanto a "Os Sonhadores", trata-se de um outro caso ainda, muito diferente. Em substância, são três filmes que fazem três discursos diferentes. Como você chegou ao romance de Gérard Adair? Uns dez anos atrás, Clare (Peploe, sua mulher) o leu e me falou dele; depois, há dois ou três anos, colocou-o diante de meus olhos, li-o e logo tive vontade de encontrar Gérard Adair, porque me senti atingido pela autenticidade com que vivenciara a atmosfera de 68.

A psicanálise me ajudou muito em minha relação com os atores, para fazê-los compreender os personagens

Como em "A Estratégia da Aranha", de Borges, também em "O Conformista", de Moravia, e em outros filmes, aqui também parece haver alusões autobiográficas que dizem respeito à relação que opõe criticamente pai e filho. Há de fato esse aspecto em "Os Sonhadores"?
De uma certa maneira, sim. Também no romance original de Adair. Os rapazes ficam sozinhos em casa e, portanto, no filme, era necessário que os pais não estivessem ali, que viajassem. Quis que se sentisse toda a tensão que havia em 68 entre pais e filhos, aquela que define a contestação -contestação de valores e relações julgadas superadas, nas crises, não mais adaptadas às mudanças sociais.
Os contestadores eram os jovens e, os velhos, os pais. Quis que o pai fosse um poeta, um intelectual, para que no momento em que ele e a mulher retornassem e encontrassem os três rapazes nus numa tenda tuaregue erguida na sala, houvesse aquela compreensão que só um intelectual e sua mulher, isto é, pessoas instruídas e cultas, podiam ter diante de uma situação do gênero. Eram pessoas que não podiam se comportar de modo convencional, talvez provocando um atrito e constrangendo-os a fugir.
Essa coerência levara-os a falar com os filhos do romance de Bataille, de Cocteau etc., todos autores de escrita audaz, de tons fortes, no limite da obscenidade, pais que não podiam de repente se comportar como dois conformistas e, por isto, optaram pela única solução possível: sair na ponta dos pés.

Do longínquo ano de 1957 até o fim dos anos 80, o sr. não deixou de fazer documentários e curtas-metragens. Que importância tem para o sr. esse tipo de cinema, hoje?
O curta é importante porque permite, a quem tenha fantasia e vontade, se exprimir com a filmadora, colocar suas idéias em forma cinematográfica e, mais ainda, com obrigação da brevidade e, portanto, da síntese. Desse modo florescem também novos talentos, como já ocorreu no passado, observando por assim dizer o olho, a mão presentes em muitos curtas... Pessoalmente faz muito tempo que eu não dirijo curtas. Fiz um de dez minutos há um par de anos, mas dentro de um filme intitulado "Ten Minuts Older" (Dez Minutos Mais Velho), de episódios, todos eles de dez minutos, com o tema comum da passagem do tempo.

Como anda sua relação com a psicanálise?
Estou indo, nos últimos tempos, a um novo psicanalista, que é uma mulher. Depois de 30 anos com psicanalistas homens, experimento o encontro, sério e profundo, com uma psicanalista. Freud sustentava que a análise pode ajudar alguém a viver melhor, às vezes a sobreviver, mas disse também que não se pode alimentar ilusões porque das neuroses ninguém se cura de todo e também porque quem sofre de neuroses tende a permanecer atado a elas. Se não é possível se curar de todo, que sentido há em interromper? Por isso, melhor continuar. Pense que agora faz 34 anos que faço análise...

Quando dirige um filme, o sr. interrompe as sessões?
Certo, porque é materialmente impossível dirigir e ir às sessões. Após um filme, procuro retomá-las logo.

Seus filmes substituem um pouco as sessões?
Sim, seguramente um pouco. O método psicanalítico me ajudou muito em minha relação com os atores, por exemplo no modo de falar com eles, de fazê-los compreender certas coisas, talvez obscuras, dos personagens que devem interpretar.
A análise é assim um novo instrumento indireto de conhecimento.

Em "O Último Tango em Paris" o sr. se inspirou nos quadros de Francis Bacon. E em "Os Sonhadores"?
Quando dirigi "O Último Tango" havia uma grande exposição individual de Bacon no Grand Palais. Fiquei de tal forma impressionado com a dramaticidade daqueles corpos contraídos que pus o nome de Bacon nos créditos do filme. Levei Vittorio Storaro, diretor da fotografia, para ver a exposição e, sucessivamente, também Gitt Magrini, figurinista, junto com Ferdinando Scarfiotti, cenógrafo. Depois foi a vez de Marlon Brando, que nunca vira um quadro de Bacon, e expliquei-lhe que gostaria de ver no seu rosto a mesma dramaticidade selvagem que há na face das figuras de Bacon: creio que ele conseguiu.
Em "Os Sonhadores", ao contrário, não há nenhum pintor em quem tenha pensado em especial. Nem sempre é necessária uma referência à pintura: por exemplo, em "A Estratégia da Aranha" havia Magritte, em "O Conformista", nada, em "1900", alguma coisa, mas nada de muito preciso.

Que significado tem o cinema em seu filme? A referência é para sublinhar os problemas de Langlois ou por que os protagonistas são de alguma maneira influenciados?
Em "Os Sonhadores" a sala de cinema proporciona o encontro de Théo e Isabelle com Matthew e é o pretexto que os mantém unidos depois do encontro. O amor pelo cinema é como ser membro de uma sociedade secreta, clandestina, na qual se comete um crime que depois é o grande amor pelo cinema. Espero mesmo que os jovens de todo o mundo que desconhecem os filmes citados no filme sintam curiosidade e se perguntem quais são eles, quem é aquele gorila com uma moça loura na pata ("King Kong", de Schoedsack e Cooper, 1933).
A maneira como os três jovens amam o cinema é também, direi, fisiológica: de fato não se limitam a fazer reciprocamente perguntas sobre datas, títulos, diretores de um filme, mas com certeza revivem a seqüência de "Bande à Part" (Jean-Luc Godard, 1964), em que os três personagens correm durante nove minutos entre os visitantes do Louvre, e assim eles fazem, como se tivessem pelo cinema um amor não apenas mental, mas também físico. Aquela corrida é mesmo a repetição física de algo que amam, exatamente como a corrida de Anna Karina, Sami Frey e Claude Brasseur.

O sr. acha que os jovens de hoje podem ainda desejar acordar amanhã num futuro construído por eles mesmos?
Esse é um sentimento que, quando comecei a rodar o filme, esperava provocar nos jovens. Sei que muitas vezes a geração mais jovem não tem nem a coragem de ser ambiciosa, de dizer "quero ter um sonho impossível", enquanto pelo contrário é belo ter sonhos impossíveis, que empurrem para adiante na vida. O filme pode ser positivo nessa direção. Se era justo se rebelar em 68, deveria ser justa a idéia de se rebelar também em 2003.

Sonho e utopia podem ainda estimular os jovens a buscar a transformação da sociedade, do mundo?
Você falou em sonho e utopia. Meu filme quer despertar nos jovens exatamente a emoção que em 68 acompanhava essas duas palavras.

Como foi o trabalho desenvolvido com os atores?
Durante a filmagem, disse-lhes muitas vezes que não queria que se tornassem três pessoas de 68, mas que se sentissem três jovens de hoje que se põem em confronto com três de 68. Há pouco um jornalista de Milão me dizia que, quando viu no filme o ataque da polícia, enquadrada da janela, lhe veio súbito à mente aquele do G8, em Gênova, quando a polícia atacou com grande violência. A observação me deu grande prazer, porque era mesmo a minha intenção.
No último enquadramento do filme, com uma centena de policiais que correm investindo contra os manifestantes, eu quis, para acentuar o efeito, duplicá-lo com o sistema digital, depois ainda triplicá-lo e quadruplicá-lo, até se tornar muito longo, com um impacto de grande violência, exatamente por recordar a de Gênova e aquilo que sucede todas as vezes que os rapazes contra a globalização enfrentam a polícia. Uma espécie de cordão umbilical, em suma, que liga os rapazes do filme aos de hoje, como se o tempo não existisse.


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