São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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+ cinema

MORTO NO ANO PASSADO, O PORTUGUÊS JOÃO CÉSAR MONTEIRO REAFIRMOU EM SEUS FILMES, EMBORA DE MANEIRA AUTOCRÍTICA, O CARÁTER "DIVINO" DO DIRETOR

A comédia do autor

Lúcia Nagib
especial para a Folha

Jean-Claude Bernardet inicia seu livro "O Autor no Cinema" (Edusp) comparando o autor cinematográfico a Deus, "a causa primeira". Todo o trabalho de Bernardet vai no sentido de questionar a mitificação da figura do autor, cuja origem remonta à famosa "política dos autores", criada por Truffaut e seus colegas dos "Cahiers du Cinéma" nos anos 1950, às vésperas do surgimento da "nouvelle vague". Bernardet aponta o fundo religioso dessa política que, originária do personalismo católico de Mounier, passa pelo realismo de Bazin até chegar aos "jovens turcos" (Truffaut, Godard, Rivette, Rohmer, Chabrol), os quais, como se sabe, transformaram seus diretores prediletos em deuses, erigindo para eles um panteão.
A partir do final dos anos 60, a teoria do cinema, com base em Foucault e Barthes, se aplicou em desconstruir o autor, numa atitude política destinada a enfatizar a importância das forças sociais em detrimento do criador individual, visto como um mero filtro da história ou, na terminologia de Foucault, uma simples "função". Tratava-se de negar a crença romântica na arte como revelação da personalidade e, em última análise, negar Deus.
A obra do cineasta português João César Monteiro localiza-se no extremo oposto da revolução proposta por Barthes e Foucault, reafirmando não apenas a figura do diretor como autor único, mas também o seu caráter "divino". A obra integral de Monteiro, morto em 3 de fevereiro de 2003, aos 64 anos, já se encontra disponível em DVD, possibilitando ao espectador constatar a força do traço autoral que percorre seus filmes do primeiro ao último, apoiando-se em motivos recorrentes que, para o grupo dos "Cahiers", constituíam a "assinatura" do autor cinematográfico.
Ponto alto de sua obra é a extraordinária trilogia, composta por "Recordações da Casa Amarela" (1989), "A Comédia de Deus" (1995) e "As Bodas de Deus" (1998), na qual Monteiro, além de diretor, autor dos argumentos e fonte quase exclusiva do estilo, encarna o protagonista João de Deus, combinando seu próprio prenome com o do criador supremo.
Se o personagem divinizado e a personalidade dominadora do cineasta lembram o autor mítico louvado pelos "jovens turcos", não se trata de mera coincidência. Monteiro formou seu gosto cinematográfico na esteira cinefílica da "nouvelle vague". Festejado desde o início pelos "Cahiers", ligou-se de amizade com críticos e diretores franceses, tornando-se admirador de Serge Daney, editor dos "Cahiers" entre 1973-81 e fundador da revista "Trafic", a cuja memória dedicou o filme "A Comédia de Deus". Daney é também o inspirador de seu longa-metragem de ecos surrealistas, "Le Bassin de John Wayne" (1997), baseado num sonho cinefílico do amigo francês em que "John Wayne mexe maravilhosamente a bacia no Pólo Norte".
Outro tradicional crítico dos "Cahiers", Jean Douchet, integra a família de Monteiro, tendo participado do elenco de "As Bodas de Deus" e "A Comédia de Deus".

A construção do personagem de João de Deus se apóia em dois princípios opostos: as técnicas de filmagem realistas e a utilização da fábula

Embora soe conservador, o retorno ao autor uno, no caso de Monteiro, significa ausência de limites e total liberdade de expressão de um imaginário obsessivo, e seu grande trunfo é que isso se realiza sem nenhum resquício de romantismo messiânico. Essencial a seu cinema é a constatação a cada passo do ridículo da pretensão divina, cuja representação cinematográfica passa necessariamente pela ironia, o humor e a autoderrisão. A construção do personagem de João de Deus, lastreada na melhor tradição portuguesa do obsceno anticlerical, se apóia em dois princípios opostos: de um lado, as técnicas de filmagem estritamente realistas, quase documentais; de outro, a utilização da fábula, articulada num sistema de citações derivado da cinefilia. Trata-se de um método dialético, crítico e auto-reflexivo, que num só movimento se impõe e se anula, ao mesmo tempo solucionando e superando a questão do autor no cinema.

Realismo e comédia
Embora no início Monteiro tenha filmado lendas e contos fantásticos portugueses, na trilogia trata-se, antes de tudo, de "documentar" seu imaginário erótico da forma mais realista possível. O papel do diretor de fotografia fica reduzido ao mínimo, já que, para Monteiro, "a câmera não deve participar do drama, mas apenas registrá-lo". O resultado é uma abundância de planos-seqüência e planos gerais, frequentemente com câmera fixa, e um uso restrito do campo-contracampo. A luz natural é explorada à beira da escuridão, e a gravação do som direto inclui a execução da música durante a rodagem das cenas. Acrescentem-se a isso a participação de figurantes leigos, as locações internas e externas reais e a ênfase na ambientação contemporânea e resulta o filme realista por excelência, tal como o definia Bazin. No entanto, como aqui o objeto/personagem é o próprio sujeito/autor, não se trata de atingir o máximo de objetividade, como queria Bazin, mas de evitar que artifícios venham a interferir na expressão plena do estilo do diretor. Com relação ao gênero, Monteiro opta decididamente pela comédia. "Recordações da Casa Amarela" é anunciado, nos créditos, como "uma comédia lusitana". A designação se repete no título "A Comédia de Deus", filme, como o anterior, ambientado em Lisboa, que parodia e rebaixa para o cotidiano prosaico português a obra-prima de Dante. O humor reforça a intenção realista, pois o desajeitamento hilário com que Monteiro interpreta seu personagem relativiza suas pretensões divinas, reduzindo-as a delírios quixotescos. Em "A Comédia de Deus", essa tensão dialética se estabelece desde a introdução do protagonista. Duas funcionárias da sorveteria Paraíso do Gelado (outra alusão paródica a Dante) aguardam à porta que o gerente, sr. João de Deus, chegue para abri-la. Elas o vêem se aproximar, com "pontualidade britânica", num passo vagaroso. Uma delas comenta: "O movimento lento é essencialmente maestoso". E a outra responde: "Para mim, é um atraso de vida". João conserva o ar solene, mas suas lições de asseio e destreza, na sorveteria, são traídas por seu próprio desajeitamento, em momentos cômicos como quando perde no chão um gomo de mexerica que joga à boca ou esborracha a casquinha de sorvete ao tentar encaixar a massa. Em vários momentos, o desajeitamento evolui para o pastelão, a começar pelo fetiche incomum do protagonista por pentelhos femininos. João mantém uma coleção deles, cuidadosamente embalados em envelopinhos colados às páginas de um álbum chamado de "Livro dos Pensamentos", acrescidos de nomes, datas e comentários. Enriquece a coleção convidando ninfetas para jantar, oferecendo-lhes antes um banho de leite. A filha mais nova do açougueiro, Joaninha, de 15 anos incompletos, é uma das convidadas. Ao massagear com uma esponja o corpo da menina e procurar o seu sexo, João acaba caindo de cabeça na banheira. Ao final, com seu habitual mau jeito, enche galões com o leite da banheira, filtrando os pêlos púbicos e reutilizando o leite no sorvete sabor Paraíso, devidamente servido à convidada numa taça em forma de vagina. Mas o pastelão tem também seu contraponto sublime. Os rituais da lavagem e do banho levam à descoberta da beleza simples das mãos femininas, do corpo adolescente nu, de um rosto de menina sem maquiagem. Os close-ups, nesses momentos, constituem recortes epifânicos que neutralizam os sentidos da perversão e do cômico. Em "As Bodas de Deus", um longo close-up do rosto de Joaninha, captando o momento em que seu olho produz uma lágrima, lembra os famosos close-ups de Dreyer, em seu "A Paixão de Joana d'Arc" ("La Passion de Jeanne d'Arc", 1928), tão elogiados por Bazin, que mostram as lágrimas nascendo nos olhos de Falconetti e rolando em seu rosto sem maquiagem. Citações como as de Dreyer, típicas da cinefilia de Monteiro, são combinadas às técnicas realistas para conferir veracidade à fábula. Na construção de João de Deus, pesam em igual medida os elementos autobiográficos e a homenagem a um dos personagens mais famosos da história do cinema: o conde Drácula (ou Nosferatu), representado pelo ator Max Schreck em "Nosferatu" ("Nosferatu eine Symphonie des Grauens"), dirigido em 1922 por F.W. Murnau. No final de "Recordações da Casa Amarela", após escapar do hospício, João de Deus reaparece, em meio a uma nuvem de gelo-seco, de dentro de um alçapão na rua, tal como o vampiro que emerge do navio-fantasma no filme de Murnau. Em "A Comédia de Deus", o próprio nome do ator é dado nos créditos como Max Monteiro, combinando-se ao de Max Schreck. Enquanto ator, Monteiro faz de tudo para assemelhar-se a Nosferatu. Naturalmente magro, cabeçudo, narigudo e com orelhas de abano, como Schreck no filme antigo, ele às vezes anda com passinho miúdo e mãos encolhidas, sendo, como o vampiro, filmado à contraluz, especialmente quando se prepara para dar o bote em uma de suas ninfetas. É pela similitude com o personagem vampiresco que o nada atraente João de Deus consegue convencer como uma espécie de Don Juan sobrenatural.

Outra versão dos fatos
Mas também a verdade da fábula é questionada por uma segunda versão dos fatos, diferente daquela mostrada do ponto de vista ritualístico e íntimo de João de Deus. Por exemplo, embora Rosarinho pareça inteiramente satisfeita após o sexo com o sr. João, ele é afinal acusado pela dona da sorveteria de ter "esgarçado o cu" de sua melhor empregada. Joaninha também, após cumprir com visível deleite todas as etapas do ritual do banho e do sorvete, provavelmente conta história bem diversa a seu pai açougueiro, que retalha o rosto do herói e o manda nas últimas para o hospital.
Na versão da polícia, apresentada em "As Bodas de Deus", João é um psicopata criminal, identificável já pelo formato do crânio, enviado ao hospício por ter exibido os genitais a uma menina de sete anos num jardim público. Como João não oferece defesa a tais acusações, argumentando apenas que sua "desgraça foi ter nascido em Portugal", cabe ao espectador julgar.
A dupla perspectiva serve, também, como crítica social. Em "A Comédia de Deus", as fraudes da fábula nada fazem senão espelhar uma sociedade que vive de expedientes ilegais. A ingênua Rosarinho mora num bairro miserável chamado Cambodja, onde crianças vendem fotos de crimes para a imprensa e também de Rosarinho nua. O açougueiro moralista comercia carne sem fiscalização, falsificando o carimbo da saúde com a ajuda da mulher e das filhas.
A trilogia de João de Deus nos apresenta, assim, um autor relativo, cuja capacidade autocrítica nada mais é do que o retrato ao mesmo tempo subjetivo e crítico da sociedade que o cerca.


Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora de "O Cinema da Retomada" (ed. 34) e "Nascido das Cinzas" (Edusp). Este texto é o resumo de um capítulo sobre João César Monteiro escrito para o livro "24 Frames - Spain and Portugal" (Londres, Wallflower Press), a ser publicado em 2005.


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