São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

"Guimarães Rosa - Fronteiras, Margens, Passagens" investiga os arquivos do autor de "Grande Sertão: Veredas", como diários, cartas, entrevistas e discursos

Travessia por redes de sentido

Rosa projeta sensações, afetos, enredos e desenredos que politizam o cotidiano, extraviando-o de sua banalidade

Evando Nascimento
especial para a Folha

As leituras dos textos de Guimarães Rosa se multiplicaram nos últimos anos, sobretudo com a defesa e a publicação de teses universitárias, além de comunicações e artigos em anais de colóquios especializados, como o que se realizará no mês de agosto, em nível internacional, pela terceira vez na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Igualmente, é sob o signo rosiano da travessia que se fará em julho o congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O estudo criterioso de Marli Fantini, "Guimarães Rosa -Fronteiras, Margens, Passagens", se inscreve nessa comunidade de leitores que busca dar conta do vasto arquivo de Rosa, chegando nos melhores casos a contra-assinar e a reinventar seus textos. Assinale-se que o conjunto disponível da obra de Rosa foi enriquecido com a publicação, no ano passado, da preciosa correspondência com o tradutor alemão Curt Meyer-Clason e dos escritos afetivos que enviou a suas duas netas "adotivas". Lembre-se ainda a reedição das cartas com o tradutor italiano, Edoardo Bizzarri. O estudo de Fantini comprova de maneira arguta que esse material de missivas, diários, ensaios, entrevistas, discursos e outros documentos é uma extensão da literatura mesma, evidentemente sob outra inscrição.

"Hábil estrategista"
Em Rosa, a ficcionalização do acervo extraliterário é constante, na medida em que, por exemplo, suas cadernetas de notas, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, contêm todo tipo de informações extraídas da realidade, para serem aproveitadas como substrato criador. "Hábil estrategista, Guimarães Rosa conhece profundamente os lances mediante os quais pode reciclar os lugares fixos da geografia e da história, para criar múltiplas redes de sentido, as quais vazam das linhas de fuga de cada um de seus textos, para se enredar nas combinações recursivas entre vida e obra do escritor", diz Marli Fantini. Desse modo, sob a competente orientação de Eneida Maria de Souza, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, desde o título, "Guimarães Rosa", percebe-se a intenção de não se privilegiar este ou aquele texto, embora seleções sejam feitas, de acordo com critérios temático-formais, aliando crítica literária e cultural de alto nível. Cercando-se de seus teóricos e críticos preferenciais, Walter Benjamin, Hugo Achugar, Gilles Deleuze, Ángel Rama, Jacques Derrida, Silviano Santiago, entre outros, Fantini empreende uma trajetória cuja excelência a coloca ao lado de leituras anteriores de Rosa, tais como as de Antonio Candido, Augusto de Campos, Walnice Galvão, Kathrin Rosenfield, João Adolfo Hansen, Eduardo Coutinho, alguns desses citados pela autora.

Balizas e cercas
A interpretação de Fantini propõe uma forma de desterritorialização cultural via literatura, para utilizar um termo de Deleuze. Guimarães Rosa trabalhou nos últimos anos de vida como chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamaraty, mas paradoxalmente traçou uma geopolítica literária toda feita de ultrapasses, extravios, desgarres e aberturas para o desconhecido. O jagunço aposentado Riobaldo, narrador-protagonista de "Grande Sertão: Veredas", gostaria de ver os pastos todos demarcados, mas acaba constatando que este mundo é muito misturado, "lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos". É da natureza dos bois atravessar campos geralmente ignorando balizas e cercas. Rosa projeta, em seu mundo de papel, destinos, sensações, afetos, enredos e desenredos que politizam o cotidiano, extraviando-o de sua contumaz banalidade e demonstrando que o dia-a-dia pode ser tão extraordinário quanto a mais fabulosa estória. Essa literatura pensante reflete os comportamentos (locais e universais), os jogos de valor (artísticos, filosóficos, existenciais), os embates pelo poder (lutas entre bandos rivais, escolhas de chefe, estabelecimento de domínios), além da intrincada questão da diferença sexual e do homoerotismo que a figura de Diadorim evoca, e muito mais. Exemplo singular é o de "A Menina de Lá" (das "Primeiras Estórias"), aquela que habita um suposto aqui e agora, mas que é de fato o elemento transcendente no "aquém-túmulo", o estrangeiro no familiar. Com a figura de Nhinhinha e outras similares, Rosa tece uma combinação de arte naïf, por meio de uma fábula debruada de estrelas, pássaros, flores, arco-íris, no limite da garatuja infantil, e uma erudição como poucas na literatura ocidental, em diálogo com as vanguardas do século 20. A pobreza latino-americana se torna o ponto de partida para o deslocamento da ótica governamental, de políticas culturais deletérias, incapazes de dar conta do popular sem absorvê-lo num populismo estéril. Rosa superdimensiona a potência que vem das camadas excluídas da economia planetária, mas que insistem em se reinscrever no centro, como uma margem que obstinadamente retorna do ponto em que gostariam de fixá-la, engendrando assim uma "comunidade alternativa", no dizer de Fantini. Outra vertente brilhantemente explorada pelo livro está nas cartas com Meyer-Clason e Bizzarri; Guimarães Rosa co-assina a tradução, sugerindo transposições, cortando, decifrando trechos e teorizando sobre o traduzir. Pelo trabalho de parceria com os tradutores, conclui-se que é por meio de um nódulo praticamente intraduzível que o texto poético pode ser traduzido. Em relação a este, somente pode ocorrer recriação ou, como gostava de dizer Haroldo de Campos, "transcriação" de signos de uma língua a outra.

"Traduzadaptação"
"Traduzadaptação" é o termo cunhado para o gesto quase impossível de traduzir o autor de "Sagarana". Se na base de sua escrita encontram-se heteróclitas formas de transculturação, ao leitor-tradutor cabe redobrar tais estratégias "traduzadaptando" o universo pluricultural de Rosa num outro espaço idiomático. Traços dessa quase intraduzível poética rosiana comparecem nas lindíssimas "Imagens do Grande Sertão", do artista plástico juiz-forano Arlindo Daibert, algumas delas reproduzidas no livro de Fantini.
Ao trabalhar simultaneamente com diversas línguas, por meio de variados registros e entonações, Rosa funciona ao mesmo tempo como etnólogo e arqueólogo, escavando os estratos culturais para encontrar a preciosidade arquietnográfica. Como ele não se cansa de repetir, os outros, os de "lá", desdobrados em cegos, velhas, crianças, desterrados de toda sorte, é que sabem o que nós, citadinos, ignoramos. Eles é que podem nos ensinar a ver através de novas lentes, retentivas, as da própria ficção, como no caso paradigmático do menino de "Corpo de Baile", Miguilim, que passa de uma semicegueira à visão intensa das coisas e cores do mundo.


Evando Nascimento é professor-adjunto de teoria da literatura na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "Derrida e a Literatura" (editora da Universidade Federal Fluminense).

Guimarães Rosa - Fronteiras, Margens, Passagens
296 págs., R$ 35,00 de Marli Fantini. Ed. Senac/Ateliê (r. Manuel Pereira Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 4612-9666).


Texto Anterior: Lançamentos
Próximo Texto: + arte: Dança em tempos digitais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.