São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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+ arte

Diretor da companhia de Merce Cunningham, que se apresenta no Brasil em julho, Trevor Carlson fala sobre o uso da tecnologia na criação de coreografias

Dança em tempos digitais

Stephanie Berger
Cena do espetáculo "Biped", de Merce Cunningham


Inês Bogéa
Crítica da Folha

Como encontrar novas dimensões no movimento? Poucos responderam a essa pergunta básica da dança contemporânea com o mesmo grau de invenção e perserverança de Merce Cunningham (1919), renovador de si mesmo há mais de cinco décadas. Ao longo desse período, o coreógrafo norte-americano propôs uma seqüência de inovações de grande arrojo: os elementos de uma obra, por exemplo -dança, música, cenário, figurino, luz-, mantêm sua autonomia e só se encontram no dia do espetáculo; estruturas aleatórias são empregadas na criação; vídeo e cinema transformam o palco em outro espaço; e um programa de computador -"Life Forms", rebatizado agora de "Dance Forms"- vira parceiro coreográfico. No mês de julho, sua companhia volta ao Brasil (Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro) com "Biped" (1999) e "Sounddance" (1975), peças de períodos bem distintos, que marcam o trabalho antes e depois do uso do computador. Antes da vinda da companhia, seu diretor, Trevor Carlson, fará uma palestra sobre o uso dessas tecnologias. Em conversa com o Mais!, por telefone, Carlson adiantou algumas idéias. No programa "Dance Forms", as possibilidades de movimento se desdobram até perder de vista; opera-se nada menos que uma redefinição do imaginário, ao se alterar a "complexidade dos passos pela experimentação e visualização do gesto [na tela do computador] e pela concepção do ritmo individual de cada parte do corpo". Podem-se isolar diferentes partes do corpo, fracionando e recombinando movimentos de diferentes maneiras, gerando polirritmos no corpo. Algo que, no trabalho direto com os bailarinos, seria muito exaustivo, não apenas pela dificuldade, mas também porque, algumas vezes, os gestos vão contra a natureza habitual. Desenhando a figura humana em 3D, o "Dance Forms" é um programa relativamente simples. Foi desenvolvido na Universidade Simon Fraser em 1986 e usado desde 1989 por Cunningham, como um dos estágios da criação. "Na tela do computador você projeta a forma humana e a variação da figura em diferentes posições e ângulos", explica Carlson. "A imagem do movimento pode ser inteiramente visualizada: vêem-se claramente as articulações e os deslocamentos, nos diferentes tempos. A partir dessa imagem cria-se a seqüência dos gestos. No espaço da tela, então, se colocam os grupos de "bailarinos'; e na linha do tempo se define o ritmo dos movimentos."

Sorteios coreográficos
De modo análogo às criações musicais de seu antigo parceiro, o compositor John Cage (1912-92), Cunningham usa sorteios para definir os participantes, as seqüências, os pontos no espaço. "As frases coreográficas ficam disponíveis na memória do computador como um arquivo; quem realiza a conexão entre cada posição definida é o próprio programa. O palco pode ser visto na tela de diversos ângulos." E o que o programa não é capaz de saber? "A relação com a gravidade e o limite do corpo humano." Passada essa etapa, Cunningham vai ao estúdio trabalhar com os bailarinos, a partir de notas rabiscadas no papel; só aí as idéias ganham materialidade. Está sempre em busca do inusitado, justamente para fugir dos hábitos e permitir que se chegue a algo de novo. Suas criações são marcadas pelo isolamento de uma parte do corpo em relação a outra, por mudanças incrivelmente rápidas de direção e pelo refreamento de impulsos naturais de movimento. Assim como no plano individual do corpo, também na cena não há hierarquias de organização: não há nada no centro que atraia prioritariamente o olhar, e a "frente" do palco não é a platéia, e sim o que está à frente de cada bailarino. Em "Biped", além do "Dance Forms", Cunningham usa outro programa, o "Motion Capture" (Captura de Movimento), que é como o reverso do outro: "Da figura humana se passa para o computador". Essa tecnologia é usada em "games", filmes e televisão e serve para compor uma partitura de movimentos. Discos sensíveis à luz foram colocados nas articulações de dois bailarinos que dançaram as 72 frases de movimento criadas por Cunningham, com pelo menos cinco gestos cada, para a captação das imagens do cenário de "Biped". Os pontos no espaço -posição e rotação do corpo em movimento, sem a massa muscular- foram captados e convertidos em arquivos digitais em 3D. Dois artistas, Paul Kaiser e Shelley Eshkar, trabalharam então a partir dos movimentos capturados e criaram o cenário da peça, onde se encontram os bailarinos virtuais e reais.

Trama de relações
A diferença entre os dois trabalhos que serão dançados aqui é grande, comenta Carlson: "No trabalho mais novo, Cunningham explora acima de tudo o contraste das articulações, enquanto no outro o movimento tem grande fluidez. Em "Biped", o corpo é usado em múltiplas direções, seguindo o que as articulações permitem -a cabeça e o tronco são quase separados, por exemplo. Já em "Sounddance", tudo é mais fluido, com uso extensivo das costas, braços e pernas".
Aqui, como sempre, diversos pontos de vista e planos facetados criam uma trama de relações, que faz com que a dança seja mediada pelo seu entorno. E se isso soa, ao mesmo tempo, como descrição técnica e metáfora existencial, não é justamente porque dança e vida aqui se confundem? Sem triunfalismos tecnológicos nem resistências antimodernas, vida e dança saem revigoradas do encontro, aceitando as lições de juventude serena e perene da arte de Cunningham.


Programação
"Biped" (música de Gavin Bryars, cenário de Shelley Eshkar e Paul Kaiser) e "Sounddance" (música de David Tudor, cenário, luz e figurinos de Mark Lancaster) serão apresentadas em 2/7, em Porto Alegre (teatro Sesi, tel. 0/xx/51/3311-1137), 6 e 7/ 7, em São Paulo (teatro Municipal, tel 0/xx/11/ 223-8698) e 9 e 11/7, no Rio de Janeiro (teatro Municipal, tel: 0/xx/21/2205-6672). Em 28/6 também haverá palestra com Trevor Carlson, sobre "Dance Forms", na Oficina Oswald de Andrade, em SP (tel. 0/xx/11/222-2662).



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