São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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Ponto de fuga

Viagem ao céu

"Não é estranho que tripas de carneiro possam transportar a alma para fora do corpo dos homens?", perguntava um personagem de Shakespeare. Tripas, hoje, deram lugar a outros materiais, mais modernos, para fabricar as cordas dos violinos, das violas, dos violoncelos. Não importa a mudança: essas cordas, ao vibrarem sob seus arcos, continuam enlevando as almas. A apresentação que, não faz muito, abriu a temporada do auditório BankBoston atingiu a estratosfera. Foram três recitais do quarteto tcheco Prazak. O último programa, no dia 8, reunia o nš 1 de Zemlinski, o nš 2, "Cartas Íntimas", de Janacek, e o nš 11 de Dvorak.
O quarteto de cordas manifesta, na música do Ocidente, uma unidade como que natural graças ao parentesco dos timbres e da técnica de execução. Essas semelhanças não anulam a personalidade de cada instrumento; da fusão brota um poder secreto. As quatro vozes expõem a arquitetura das obras, revestem-na de emoções sonoras e impõem ao ouvinte, a um só tempo, compreensão e sentimento.
É preciso que os integrantes de um quarteto tenham longa prática conjunta. Exige-se deles virtuosidade impecável, no entanto capaz de submeter os brilhos individuais à luminosidade musical coletiva. Não se atingem facilmente essa altitude e esse equilíbrio. Os que conseguiram passaram para a história, como Capet, Busch, Vegh, Amadeus. A essa lista lendária pode se acrescentar hoje o quarteto Prazak: pulsação rítmica, energia incendiada, discurso que vem de dentro, coerente, sem uma falha, sem que nunca se percam as belezas sonoras e plenas.

Apocalipse - Foi uma prova de fogo. A Osesp interpretou, em concerto recente na Sala São Paulo, o "Réquiem Polonês", de Krzysztof Penderecki. Obra intrincada, escrita para uma orquestra enorme e para um coro que enfrenta dificuldades espinhosas. O compositor regeu: músicos e coristas responderam esplendidamente às menores nuanças, às precisões mais exigentes. A composição é longa: um hora e 45 minutos de música.
Penderecki obteve grande celebridade muito cedo. Soube empregar as ásperas sonoridades de vanguarda não como aventuras formais, mas em benefício de um sentido do espetáculo e do drama. Elas funcionam à perfeição em sua ópera "Os Demônios de Loudun", estreada em 1960, que retoma um tema várias vezes tratado na literatura, no teatro e no cinema: outro polonês, Jerzy Kawalerowicz, o havia apresentado, em 1964, num filme soberbo, "Madre Joana dos Anjos". A história é verdadeira: na França do século 17, sob o reino de Luís 13, um convento de freiras possuídas pelo demônio induz um processo iníquo que implica, condena, martiriza, queima vivo o padre Urbain Grandier, inocente. A histeria das cerimônias exorcistas e os horrores das torturas levaram Penderecki a paroxismos sonoros assustadores.
No "Réquiem", ouvido na sala São Paulo, bem posterior como data aos "Demônios" e diverso nas escolhas formais, se desencadeiam efeitos neo-românticos, eloqüentes, cujas intenções, muito perceptíveis, parecem mais hábeis que convictas. Dos modos meditativos, do "Sanctus", do "Agnus Dei", emana uma verdade interior.

Chamas - O quarteto "Cartas Íntimas", de Janacek, foi inspirado pelo amor. Sua forma está, por assim dizer, para além da própria forma. A viola é o núcleo, o pólo, em volta do qual giram fragmentos sonoros líricos, soturnos ou esperançosos. Alternam-se gritos, prostrações, júbilos. Sua execução não pode ser feita apenas de notas. É preciso musicalidade exaltada, como demonstrou o quarteto Prazak. Se os intérpretes não forem investidos pela paixão que ela pressupõe e que lhe confere unidade, a obra perde seu sentido e sua coerência.

Oásis - Em região distante, inóspita, paulistana até a alma, entre uma favela enorme, arranha-céus luxuosos de negócios e as águas infectas do rio Pinheiros, situa-se o Espaço Cultural BankBoston. Há nele uma sala ideal para música de câmera. É elegante, calorosa e confortável. Tem uma acústica seca, nítida, analítica, valorizando os sons que se entrelaçam sem confusão nem amálgama.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br.


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