São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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A visão da África selvagem encontrada pelos colonizadores, repleta de animais e vegetação, foi moldada por uma peste bovina que devastou comunidades baseadas na criação de gado e destruiu um cenário milenar de pastagens e rebanhos
A falsa África

por Fred Pearce

Matagais cheios de animais selvagens como girafas, elefantes, leões e zebras: essa é a visão que a maioria de nós tem da África selvagem, "primeva", anterior à chegada dos europeus. Essa África pode ser vista em incontáveis documentários feitos em seus muitos parques nacionais. Essa visão é, em grande parte, um mito. A África não era assim. Seus parques nacionais são tão artificiais quanto os jardins ingleses. A diferença é que o "jardineiro" que moldou a paisagem africana foi um micróbio. Quando chegou à África, há pouco mais de cem anos, fez com que reinos sofisticados, dotados de marinhas, comércio internacional e cortes com etiqueta própria, virassem poeira -ou melhor, arbustos. A transformação começou com a investida de uma força expedicionária italiana. Os soldados não foram longe, mas seu gado transportou um passageiro mortífero: o vírus da peste bovina (Rinderpest). O vírus se espalhou. Devastando reinos baseados na pecuária em todo o continente, deixou a África vulnerável à invasão colonial. No rastro da destruição de rebanhos e pastagens ficou uma paisagem coberta por capim e arbustos e infestada pela mosca tsé-tsé. Esse cenário foi interpretado pelos europeus como a paisagem original africana, com animais selvagens e povos primitivos. O vírus da peste bovina, natural das estepes da Ásia Central, espalhava-se pela Europa periodicamente. Mas era desconhecido na África ao sul do Saara, provavelmente porque os camelos, únicos animais a cruzar o deserto, não eram suscetíveis a ele. Em 1887, porém, a doença apareceu na Eritréia, no local da invasão italiana. Levou cinco anos para chegar até o Atlântico. Em dez, alcançou a África do Sul. "Para as populações pastorais, foi devastador. O índice de mortalidade do gado superava os 90%", diz John Rowe, historiador da Universidade Northwestern (EUA). Um ancião da tribo masai, na África Oriental, relatou que os cadáveres "eram tantos e tão próximos uns dos outros que os abutres esqueceram como voar". A pandemia é considerada a maior calamidade natural da África. "Nunca antes tinha acontecido de o gado morrer em números tão altos (...). Dificilmente poderíamos exagerar a extensão da devastação", escreveu Frederick Lugard, capitão do exército britânico que percorreu rotas de caravanas no Quênia em 1890.

Catástrofe
A peste bovina atinge apenas animais fissípedes (que têm os cascos fendidos). Indiretamente, porém, a peste que chegou à África devastou a população humana. Não havia mais gado para criar. Os agricultores não tinham bois para puxar arados ou empurrar as rodas d'água que irrigavam os campos. Doenças nativas, como varíola, cólera e tifo, e males trazidos pelos europeus vitimavam as populações esfomeadas. Nenhum pesquisador moderno calculou quantas pessoas morreram como consequência indireta da peste bovina, mas relatos da época revelam a escala da catástrofe. "Em todo lugar as pessoas estavam emaciadas, quase mortas de fome, a pele coberta por doenças", escreveu Lugard. "Não tinham outra coisa para substituir o leite e a carne, sua alimentação natural." Em alguns lugares, a epidemia coincidiu com períodos de seca. Entre 1888 e 1892, acredita-se que cerca de um terço da população da Etiópia -vários milhões de pessoas- tenha morrido pelo efeito conjunto da peste bovina e da seca. Na década de 1970, John Ford, que dirigiu uma organização de pesquisa sobre tripanossomíase no leste africano, conduziu um estudo detalhado sobre o impacto da peste bovina numa região a oeste do lago Vitória, na África Central. Os registros de dois distritos típicos, Bukoba e Biharamulo, mostram que a população local de gado caiu de cerca de 400 mil cabeças em 1891 para 20 mil no ano seguinte. A fome atingiu várias populações, como os tutsis (em Ruanda e no Burundi), que viviam quase inteiramente à base de leite e de sangue. Os mais atingidos provavelmente foram os masais, no Quênia. Seu folclore fala da "enkidaaroto", ou destruição, de 1891. A maior parte de seu gado morreu. Os masais mergulharam em guerras, disputando o gado sobrevivente. Esmolavam carne às caravanas passageiras. O austríaco Oskar Baumann, que percorreu a Tanzânia em 1891, calculou que dois terços dos masais morreram. "A peste bovina aniquilou quase instantaneamente a riqueza da África tropical", conta o historiador John Reader. "Os aristocratas pecuaristas foram à falência. Onde os rebanhos chegavam às dezenas de milhares de cabeças, só algumas dezenas de animais sobreviveram." O botânico britânico Scott Elliot viajou para a região do lago Vitória três anos após a chegada da peste bovina. Ele relatou que as guerras e os saques de gado haviam produzido a destruição completa da comunidade. "A terra é completamente desabitada", descreveu. No norte da Nigéria, os fulanis, "depois de perder quase todo o seu gado, perderam a razão", escreveu Ford. "Muitos tiraram suas próprias vidas. Alguns vagavam pelos matagais, chamando por cabeças de gado imaginárias." Muitas dessas sociedades nunca mais recuperaram seus números anteriores, muito menos a riqueza e o poder que tinham. A peste bovina ofereceu o país de bandeja à "corrida européia pela África", nos últimos anos do século 19. Na sua esteira, alemães e britânicos conseguiram dominar a Tanzânia e o Quênia praticamente sem lutar. No sul da África, os hereros sucumbiram diante dos colonizadores alemães e os zulus migraram para as minas de ouro de Witwatersrand, ajudando a criar o brutal abismo entre brancos e negros que deu origem ao apartheid. Lugard observou que a peste bovina, sob alguns aspectos, favoreceu o empreendimento. "Por poderosas e guerreiras que fossem as tribos criadoras de gado, seu orgulho foi humilhado e nosso avanço foi facilitado por essa terrível praga. Em nenhum outro lugar o advento do homem branco tem sido tão pacífico quanto aqui."

Doença do sono
A doença do gado abriu caminho para a mosca tsé-tsé, que até hoje perde apenas para a Aids como obstáculo ao desenvolvimento africano. A mosca tsé-tsé vive entre animais selvagens em vegetação arbustiva tropical de planícies. Ela transmite a doença do sono -um tipo de tripanossomíase letal para o gado e para os humanos (outro tipo de tripanossomíase é a doença de Chagas, da América do Sul). De início, a peste bovina foi negativa para as moscas tsé-tsé, pois matava seus hospedeiros. Mas, em pouco tempo, a epidemia criou um ambiente no qual as moscas puderam retornar com força redobrada.
A mosca tsé-tsé gosta de vegetação extensa e farta, na qual seus ovos podem ser depositados. Antes da peste, o gado freava as moscas, pois pastava o capim e impedia que arbustos e árvores atingissem mais que alguns centímetros de altura. Sem animais herbívoros, a vegetação cresce rapidamente. "Em uma ou duas estações, as pastagens viram capinzais com árvores e sombreados matagais de arbustos, com condições perfeitas para a expansão da mosca tsé-tsé", diz Reader.
Depois de passada a epidemia de peste bovina, a população de animais selvagens cresceu mais rapidamente que o gado, voltando a gerar hospedeiros para a mosca tsé-tsé. As moscas e a doença do sono impediram humanos e gado de refrear o crescimento da mata. Numa paisagem propícia, a tsé-tsé se espalhou rapidamente.
Especialmente na África Ocidental, áreas de planalto antes livres de tsé-tsé, onde grandes populações viviam do gado, em pouco tempo viraram bosques e savanas infestados pela mosca. No sul da África, a tsé-tsé, que quase sumira dos vales do Zambezi e do Limpopo no meio da década de 1890, ganhou força a partir de mais ou menos 1904 e voltou a dominar sua área antiga.
A doença do sono era desconhecida na África Oriental até a peste bovina. Mas, após sua chegada, no início do século 20, causou milhões de mortes, fazendo com que grandes extensões de terra fossem abandonadas aos animais selvagens e à tsé-tsé, conta Keith Sones, diretor da consultoria StockWatch, com sede em Nairóbi.
A peste bovina encabeçou uma revolução ambiental contra as pessoas e o gado -e a favor dos animais selvagens. Todo ano, a doença do sono infecta cerca de 500 mil pessoas, das quais aproximadamente 100 mil morrem. A tsé-tsé ainda é um grande obstáculo ao desenvolvimento de regiões inteiras que, de outro modo, seriam terreno ideal para o gado.
Essas áreas são virtualmente proibidas tanto para os humanos quanto para o gado, conta John McDermott, do Ilri (sigla para Instituto Internacional de Pesquisas com Gado), em Nairóbi, que estudou a doença em Uganda. Ambientalistas já qualificaram a doença do sono como "a mais eficiente guarda-caça da África". Quando europeus se deslocaram em massa para a África, há um século, a paisagem de mata baixa, infestada pela tsé-tsé, recém-esvaziada de humanos e gado e repleta de animais selvagens, tornou-se para eles o arquétipo da África "em estado natural". Não é por acaso que a idéia de transformar grandes extensões de savana vazia em reservas de animais selvagens, primeiro para caça e depois para conservação, tenha surgido mais ou menos nessa época. "Os europeus supuseram que a paisagem encontrada era o que a África sempre havia sido. Acharam que precisava ser protegida e começaram a criar leis para manter as pessoas fora dessas áreas, muitas das quais hoje são reservas de animais selvagens infestadas de tsé-tsé", explica Reader. As décadas que se seguiram à pandemia da peste bovina foram os grandes anos dos safáris na África. A "orgia de caçadas" impressionou as gerações seguintes. Julian Huxley, diretor da Unesco e fundador da World Wildlife Fund (atual WWF, sigla em inglês para Fundo Mundial para a Natureza) no início dos anos 60, descreveu as planícies da África Oriental como "um setor sobrevivente do rico mundo natural como era antes da ascensão do homem moderno". Essa idéia era acompanhada por outro equívoco sobre as savanas africanas, diz Holly Dublin, assessora de conservação do WWF e autora de um estudo sobre a transformação ambiental da Reserva Nacional Masai Mara, no Quênia. Na época, aceitava-se como verdade a idéia de que todos os sistemas avançam em direção a uma vegetação "de clímax". Supondo que os arbustos que viam compunham o ambiente intocado das savanas, os preservacionistas concluíram que essa era a vegetação "de clímax" da região. Assim, criaram os grandes parques nacionais da África, como o Serengueti. "Não perceberam que, 40 anos antes, essas áreas tinham sido pastagens abertas", diz Dublin.

Paisagem dinâmica
Está cada vez mais claro que o conceito de vegetação de clímax não explica a evolução ambiental das savanas africanas. "Foi apenas em meados da década de 1980 que começamos a perceber que a savana era muito mais dinâmica", afirma Dublin. "Ela envolve transformações maciças no prazo de uma ou duas décadas, alternando-se entre bosques e pastagens", diz.
Esse sistema natural de transformações envolvia animais selvagens, gado e incêndios ocasionais. "Os criadores de gado vêm cuidando de seus rebanhos em harmonia com os animais selvagens há milhares de anos", diz Robin Reid, ecólogo de sistemas no Ilri.
O resultado final era um mosaico de habitats espalhado pelas planícies, em constante transformação. A epidemia de peste bovina transtornou esse sistema, privilegiando a savana em detrimento das pastagens abertas. Ao excluir o gado de áreas extensas, os ambientalistas coloniais e seus sucessores mantiveram esse estado.
Hoje, em boa parte da África, há dois ecossistemas criados e separados pelos homens: áreas dominadas por agricultura e criação de gado, onde a savana e a tsé-tsé estão contidas, e áreas dominadas pela visão peculiar que o Ocidente tem da África "selvagem". A verdade é que a paisagem africana real, antes da colonização, era muito mais semelhante ao primeiro tipo de área do que ao segundo.


Texto originalmente publicado na revista "New Scientist"
Tradução de Clara Allain.


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