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A visão da África selvagem encontrada pelos colonizadores,
repleta de animais e vegetação, foi moldada por uma peste bovina
que devastou comunidades baseadas na criação de gado e destruiu
um cenário milenar de pastagens e rebanhos
A falsa África
por Fred Pearce
Matagais cheios de animais selvagens como
girafas, elefantes, leões e zebras: essa é a visão que a maioria de nós tem da África selvagem, "primeva", anterior à chegada dos
europeus. Essa África pode ser vista em incontáveis documentários feitos em seus muitos parques nacionais.
Essa visão é, em grande parte, um mito. A África não
era assim. Seus parques nacionais são tão artificiais
quanto os jardins ingleses. A diferença é que o "jardineiro" que moldou a paisagem africana foi um micróbio. Quando chegou à África, há pouco mais de cem
anos, fez com que reinos sofisticados, dotados de marinhas, comércio internacional e cortes com etiqueta própria, virassem poeira -ou melhor, arbustos.
A transformação começou com a investida de uma
força expedicionária italiana. Os soldados não foram
longe, mas seu gado transportou um passageiro mortífero: o vírus da peste bovina (Rinderpest). O vírus se espalhou. Devastando reinos baseados na pecuária em todo o continente, deixou a África vulnerável à invasão
colonial. No rastro da destruição de rebanhos e pastagens ficou uma paisagem coberta por capim e arbustos
e infestada pela mosca tsé-tsé. Esse cenário foi interpretado pelos europeus como a paisagem original africana,
com animais selvagens e povos primitivos.
O vírus da peste bovina, natural das estepes da Ásia
Central, espalhava-se pela Europa periodicamente. Mas
era desconhecido na África ao sul do Saara, provavelmente porque os camelos, únicos animais a cruzar o deserto, não eram suscetíveis a ele.
Em 1887, porém, a doença apareceu na Eritréia, no local da invasão italiana. Levou cinco anos para chegar até
o Atlântico. Em dez, alcançou a África do Sul. "Para as
populações pastorais, foi devastador. O índice de mortalidade do gado superava os 90%", diz John Rowe, historiador da Universidade Northwestern (EUA). Um ancião da tribo masai, na África Oriental, relatou que os
cadáveres "eram tantos e tão próximos uns dos outros
que os abutres esqueceram como voar".
A pandemia é considerada a maior calamidade natural da África. "Nunca antes tinha acontecido de o gado
morrer em números tão altos (...). Dificilmente poderíamos exagerar a extensão da devastação", escreveu
Frederick Lugard, capitão do exército britânico que
percorreu rotas de caravanas no Quênia em 1890.
Catástrofe
A peste bovina atinge apenas animais
fissípedes (que têm os cascos fendidos). Indiretamente,
porém, a peste que chegou à África devastou a população humana. Não havia mais gado para criar. Os agricultores não tinham bois para puxar arados ou empurrar as rodas d'água que irrigavam os campos. Doenças
nativas, como varíola, cólera e tifo, e males trazidos pelos europeus vitimavam as populações esfomeadas. Nenhum pesquisador moderno calculou quantas pessoas
morreram como consequência indireta da peste bovina, mas relatos da época revelam a escala da catástrofe.
"Em todo lugar as pessoas estavam emaciadas, quase
mortas de fome, a pele coberta por doenças", escreveu
Lugard. "Não tinham outra coisa para substituir o leite e
a carne, sua alimentação natural." Em alguns lugares, a
epidemia coincidiu com períodos de seca. Entre 1888 e
1892, acredita-se que cerca de um terço da população da
Etiópia -vários milhões de pessoas- tenha morrido
pelo efeito conjunto da peste bovina e da seca.
Na década de 1970, John Ford, que dirigiu uma organização de pesquisa sobre tripanossomíase no leste africano, conduziu um estudo detalhado sobre o impacto
da peste bovina numa região a oeste do lago Vitória, na
África Central. Os registros de dois distritos típicos, Bukoba e Biharamulo, mostram que a população local de
gado caiu de cerca de 400 mil cabeças em 1891 para 20
mil no ano seguinte. A fome atingiu várias populações,
como os tutsis (em Ruanda e no Burundi), que viviam
quase inteiramente à base de leite e de sangue.
Os mais atingidos provavelmente foram os masais, no
Quênia. Seu folclore fala da "enkidaaroto", ou destruição, de 1891. A maior parte de seu gado morreu. Os masais mergulharam em guerras, disputando o gado sobrevivente. Esmolavam carne às caravanas passageiras.
O austríaco Oskar Baumann, que percorreu a Tanzânia
em 1891, calculou que dois terços dos masais morreram.
"A peste bovina aniquilou quase instantaneamente a
riqueza da África tropical", conta o historiador John
Reader. "Os aristocratas pecuaristas foram à falência.
Onde os rebanhos chegavam às dezenas de milhares de
cabeças, só algumas dezenas de animais sobreviveram."
O botânico britânico Scott Elliot viajou para a região
do lago Vitória três anos após a chegada da peste bovina. Ele relatou que as guerras e os saques de gado haviam produzido a destruição completa da comunidade.
"A terra é completamente desabitada", descreveu.
No norte da Nigéria, os fulanis, "depois de perder
quase todo o seu gado, perderam a razão", escreveu
Ford. "Muitos tiraram suas próprias vidas. Alguns vagavam pelos matagais, chamando por cabeças de gado
imaginárias." Muitas dessas sociedades nunca mais recuperaram seus números anteriores, muito menos a riqueza e o poder que tinham.
A peste bovina ofereceu o país de bandeja à "corrida
européia pela África", nos últimos anos do século 19. Na
sua esteira, alemães e britânicos conseguiram dominar
a Tanzânia e o Quênia praticamente sem lutar. No sul
da África, os hereros sucumbiram diante dos colonizadores alemães e os zulus migraram para as minas de ouro de Witwatersrand, ajudando a criar o brutal abismo
entre brancos e negros que deu origem ao apartheid.
Lugard observou que a peste bovina, sob alguns aspectos, favoreceu o empreendimento. "Por poderosas e
guerreiras que fossem as tribos criadoras de gado, seu
orgulho foi humilhado e nosso avanço foi facilitado por
essa terrível praga. Em nenhum outro lugar o advento
do homem branco tem sido tão pacífico quanto aqui."
Doença do sono
A doença do gado abriu caminho
para a mosca tsé-tsé, que até hoje perde apenas para a
Aids como obstáculo ao desenvolvimento africano. A
mosca tsé-tsé vive entre animais selvagens em vegetação arbustiva tropical de planícies. Ela transmite a
doença do sono -um tipo de tripanossomíase letal para o gado e para os humanos (outro tipo de tripanossomíase é a doença de Chagas, da América do Sul). De início, a peste bovina foi negativa para as moscas tsé-tsé,
pois matava seus hospedeiros. Mas, em pouco tempo, a
epidemia criou um ambiente no qual as moscas puderam retornar com força redobrada.
A mosca tsé-tsé gosta de vegetação extensa e farta, na
qual seus ovos podem ser depositados. Antes da peste, o
gado freava as moscas, pois pastava o capim e impedia
que arbustos e árvores atingissem mais que alguns centímetros de altura. Sem animais herbívoros, a vegetação
cresce rapidamente. "Em uma ou duas estações, as pastagens viram capinzais com árvores e sombreados matagais de arbustos, com condições perfeitas para a expansão da mosca tsé-tsé", diz Reader.
Depois de passada a epidemia de peste bovina, a população de animais selvagens cresceu mais rapidamente que o gado, voltando a gerar hospedeiros para a mosca tsé-tsé. As moscas e a doença do sono impediram humanos e gado de refrear o crescimento da mata. Numa
paisagem propícia, a tsé-tsé se espalhou rapidamente.
Especialmente na África Ocidental, áreas de planalto
antes livres de tsé-tsé, onde grandes populações viviam
do gado, em pouco tempo viraram bosques e savanas
infestados pela mosca. No sul da África, a tsé-tsé, que
quase sumira dos vales do Zambezi e do Limpopo no
meio da década de 1890, ganhou força a partir de mais
ou menos 1904 e voltou a dominar sua área antiga.
A doença do sono era desconhecida na África Oriental até a peste bovina. Mas, após sua chegada, no início
do século 20, causou milhões de mortes, fazendo com
que grandes extensões de terra fossem abandonadas
aos animais selvagens e à tsé-tsé, conta Keith Sones, diretor da consultoria StockWatch, com sede em Nairóbi.
A peste bovina encabeçou uma revolução ambiental
contra as pessoas e o gado -e a favor dos animais selvagens. Todo ano, a doença do sono infecta cerca de 500
mil pessoas, das quais aproximadamente 100 mil morrem. A tsé-tsé ainda é um grande obstáculo ao desenvolvimento de regiões inteiras que, de outro modo, seriam terreno ideal para o gado.
Essas áreas são virtualmente proibidas tanto para os humanos quanto para o gado, conta John McDermott, do Ilri (sigla para Instituto Internacional de Pesquisas com Gado), em
Nairóbi, que estudou a doença em Uganda. Ambientalistas
já qualificaram a doença do sono como "a mais eficiente
guarda-caça da África".
Quando europeus se deslocaram em massa para a África,
há um século, a paisagem de mata baixa, infestada pela tsé-tsé, recém-esvaziada de humanos e gado e repleta de animais selvagens, tornou-se para eles o arquétipo da África
"em estado natural". Não é por acaso que a idéia de transformar grandes extensões de savana vazia em reservas de animais selvagens, primeiro para caça e depois para conservação, tenha surgido mais ou menos nessa época.
"Os europeus supuseram que a paisagem encontrada era
o que a África sempre havia sido. Acharam que precisava ser
protegida e começaram a criar leis para manter as pessoas
fora dessas áreas, muitas das quais hoje são reservas de animais selvagens infestadas de tsé-tsé", explica Reader.
As décadas que se seguiram à pandemia da peste bovina
foram os grandes anos dos safáris na África. A "orgia de caçadas" impressionou as gerações seguintes. Julian Huxley,
diretor da Unesco e fundador da
World Wildlife Fund (atual WWF,
sigla em inglês para Fundo Mundial
para a Natureza) no início dos anos
60, descreveu as planícies da África
Oriental como "um setor sobrevivente do rico mundo natural como
era antes da ascensão do homem
moderno".
Essa idéia era acompanhada por
outro equívoco sobre as savanas
africanas, diz Holly Dublin, assessora de conservação do WWF e autora
de um estudo sobre a transformação
ambiental da Reserva Nacional Masai Mara, no Quênia. Na época, aceitava-se como verdade a idéia de que
todos os sistemas avançam em direção a uma vegetação "de clímax".
Supondo que os arbustos que viam
compunham o ambiente intocado
das savanas, os preservacionistas
concluíram que essa era a vegetação
"de clímax" da região. Assim, criaram os grandes parques nacionais
da África, como o Serengueti. "Não
perceberam que, 40 anos antes, essas
áreas tinham sido pastagens abertas", diz Dublin.
Paisagem dinâmica
Está cada
vez mais claro que o conceito de vegetação de clímax não explica a evolução ambiental das savanas africanas. "Foi apenas em meados da década de 1980 que começamos a perceber que a savana era muito mais
dinâmica", afirma Dublin. "Ela envolve transformações maciças no
prazo de uma ou duas décadas, alternando-se entre bosques
e pastagens", diz.
Esse sistema natural de transformações envolvia animais
selvagens, gado e incêndios ocasionais. "Os criadores de gado vêm cuidando de seus rebanhos em harmonia com os
animais selvagens há milhares de anos", diz Robin Reid,
ecólogo de sistemas no Ilri.
O resultado final era um mosaico de habitats espalhado
pelas planícies, em constante transformação. A epidemia de
peste bovina transtornou esse sistema, privilegiando a savana em detrimento das pastagens abertas. Ao excluir o gado
de áreas extensas, os ambientalistas coloniais e seus sucessores mantiveram esse estado.
Hoje, em boa parte da África, há dois ecossistemas criados
e separados pelos homens: áreas dominadas por agricultura
e criação de gado, onde a savana e a tsé-tsé estão contidas, e
áreas dominadas pela visão peculiar que o Ocidente tem da
África "selvagem". A verdade é que a paisagem africana real,
antes da colonização, era muito mais semelhante ao primeiro tipo de área do que ao segundo.
Texto originalmente publicado na revista "New Scientist"
Tradução de Clara Allain.
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