São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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+ cultura
A arte biológica usa a tecnologia para relacionar a estética com a lógica dos seres vivos
Os novos artistas selvagens

José Wagner Garcia
especial para a Folha

Todas as recentes descobertas das ciências biológicas que envolvem novas possibilidades de manipulação da natureza viva, tais como, engenharia genética, clonagens, biotecnologias e afins, têm suscitado grande inquietação de ordem ética. Porém, além disso, esse conflito entre um sentimento de poder e o receio diante de algo grandioso insere-se com precisão no conceito de juízo estético do sublime kantiano. Algo que nos atinge e provoca um sentimento da razão. Nesse contexto parece coerente uma expansão ou um esforço do pensamento artístico também nessa direção, quando os ideais de admirabilidade inseridos no processo da evolução como um todo, repercutem em todas as áreas da inteligência humana. A arte desenvolve tecnologias próprias, e o trabalho com as tecnologias "não-artísticas", como, por exemplo, na arte biológica, é uma demanda dessa hibridização entre as linguagens vivas codificadas (DNA) e a tecnologia dos meios usuais, como, por exemplo, a poesia na era da televisão. Arte biológica significa a emergência de um novo segmento estético, como resultado, dentre outros fatores, da própria complexificação da cultura contemporânea. Uma arte biológica, portanto, embora transmita uma qualidade de sentimento muito instigante para a imaginação, ainda não se constitui como um conceito estabelecido no cenário das artes visuais. A biologia é o universo das coisas vivas, existentes, o mundo objetivo. O universo das artes é o universo ficcional, da representação. Aspectos específicos e especiais caracterizam esses dois mundos que estão sendo postos em contato nessa nova proposta estética. E cada qual corresponde e responde a pontos ou núcleos dentro da crise maior que atinge tanto a representação quanto os objetos dessa representação. De certa forma, pode-se levantar a hipótese de que, em conjunto, esses dois universos de elaboração possam indicar alguma saída ou evolução no processo total dessa crise do conhecimento ou mesmo das formas de conhecimento. Dentre os segmentos mais criadores e criativos da ação natural e humana estão, respectivamente, a biologia e a arte. A natureza tem o mundo biológico como sua expressão mais geradora de novos eventos. E, de forma equivalente, as artes são, entre as ações da inteligência humana, as mais livres, criadoras e espontâneas em seus objetivos e realizações. Uma arte biológica, portanto, tem suas características estéticas específicas, pois, ao estabelecer uma relação entre a estética e a lógica dos sistemas vivos, integra a relação mais ampla entre arte e ciências da natureza; mas tendo, por outro lado, a especificidade de trabalhar com os mais altos graus de complexidade, inteligência e plasticidade e, portanto, de processos criativos que se encontram tanto na unidade do pensamento artístico quanto nos processos biológicos. Para exemplificar, entre os vários caminhos estéticos possíveis da arte biológica realizados nas últimas décadas, escolhemos quatro artistas cujos trabalhos lidam com quatro aspectos diferentes da materialidade viva:

In vivo - Na escala sistêmica do organismo

O francês Hubert Duprat vem, desde os anos 80, utilizando insetos para construir suas "esculturas". Removendo casulos de larva de mosca de seu habitat natural e substituindo por materiais preciosos, o artista leva o inseto a produzir jóias utilizando seu próprio processo metabólico.

In vitro - Intervenção utilizando tecnologias da engenharia genética

O trabalho do norte-americano George Gessert desenvolve a hibridização de orquídeas como forma de arte. Desde os anos 70 ele vem cruzando artificialmente plantas, concentrando-se nas orquídeas nativas da Califórnia e do Oregon. Nessa ação discute questões estéticas e éticas que envolvem a utilização do DNA como forma de arte.

In silico - Vida artificial tendo como suporte

o ambiente do computador O norte-americano Karl Sims é um artista que se utiliza de um software de programação genética para evoluir artificialmente criaturas no computador, tendo como critério de seleção a estética. Seu último projeto, intitulado Galápagos, é uma evolução darwiniana interativa de organismos virtuais. Na instalação, 12 computadores simulam o crescimento e o comportamento de uma população de formas animadas abstratas, apresentando-as em 12 telas dispostas em arco. Os participantes selecionam esteticamente cada organismo e permanecem diante das telas, dotadas de sensores que disparam o processo evolutivo dos organismos selecionados. Como esse processo evolucionário de reprodução e seleção continua, mais e mais organismos esteticamente evoluídos podem emergir.

In signo - A zoologia do imaginário

O francês Louis Bec é um dos raros casos de artistas visionários que condensam em seu trabalho perspectivas filosóficas, estéticas e científicas. É um zoólogo de formação, criou nos anos 80, na França, o Instituto Científico de Pesquisa Paranaturalista. Como "zoólogo do imaginário", concebeu, nos anos 80, com o filósofo Vilém Flusser, o projeto Vampyrotheuthis Infernalis, que basicamente consiste na criação de "organismos ficcionais".

Padrões complexos

A manipulação dos códigos matriciais na natureza nos coloca em meio a ela, produzindo-a, e não como seus sujeitos constituidores, mas dando-lhe sentido e significado. Nesse contexto, estamos "em natureza". Trata-se de perceber que não há "natureza" no sentido clássico do termo, mas padrões complexos de matéria, em relação aos quais não faz mais sentido falar em fronteira epistemológica entre mente e matéria.
Portanto não partimos de considerações subjetivas sobre o mundo, mas começamos a ouvir a própria "fala complexa da natureza", reconhecendo o "objeto-mundo" como sistema inteligente.
Estamos aprendendo a desenhar genes para fins estéticos, da mesma forma que a evolução desenhou o vôo dos pássaros, a inteligência da auto-replicação de um vírus etc... É a ação do livre, do perdulário e do acaso sobre a lei comandando o espetáculo estético da evolução. A possibilidade de o artista interferir na evolução para fazer arte cria novas bases ontológicas, nas quais a inteligência do homem passa a manipular as matrizes naturais, lançando mão do "estar" para "ser" a própria natureza.
As últimas considerações apontam para as possíveis ações admiráveis que os "novos artistas selvagens" poderão estabelecer nesse impasse inicialmente ético sobre a manipulação do vivo, em detrimento de projetos artísticos que se constituem na camada superficial dessas questões. Em outras palavras, a aproximação entre a arte e os códigos matriciais da natureza subsume um "ataque" ontológico, no qual a mundividência do artista é colocada na sua condição originária no ato da criação, pegando carona em alguns milhões de anos da alta tecnologia oferecida pela evolução -a força criadora da natureza aliada com a força criativa do artista.


José Wagner Garcia é arquiteto e designer genético. Foi pesquisador do Centro Avançado de Estudos Visuais do MIT (Massachussets Institute of Technology) e deve lançar em breve o livro "Estética Evolucionária".


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