São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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O cinema francês atual parece reencontrar as grandes formas e os grandes temas tomados de empréstimo à tradição romanesca
O cinema e a carne da história

Jacques Rancière

Haverá uma nova tendência no cinema francês? Acusaram-no muitas vezes, nesses últimos tempos, de ser "egocêntrico", de se comprazer com comédias de costumes e de sociedade, feitas de pequenas notações sobre as mutações imperceptíveis de um microcosmo social, em benefício de uma pequena burguesia intelectual que nele contemplava com narcisismo seus modos de ser, de falar e de agir. De repente ele parece tomar distância, abandonar as histórias de empresários tomados pela dúvida, de professores de filosofia presas dos desejos de suas estudantes ou de casais que se desfazem e se reformam, para reencontrar as grandes formas e os grandes temas tomados de empréstimo à tradição romanesca e à representação dos momentos fortes da história nacional. Testemunhas disso são três filmes realizados recentemente por três cineastas emblemáticos de uma certa tradição do cinema francês autoral, herdeira da Nouvelle Vague. "Les Destinées Sentimentales" (Os Destinos Sentimentais), de Olivier Assayas, retoma a tradição das histórias de família e de amor contra o pano de fundo das reviravoltas do tempo, ilustradas particularmente pelo Visconti do "Gattopardo". A província profunda, a grandeza e a decadência da indústria de porcelana e a Primeira Guerra Mundial servem de tela de fundo para uma história de amor tirada de um romance de Jacques Chardonne, emblemática da literatura dos anos 30. "Saint Cyr" (São Ciro), de Patricia Mazuy, faz reviver a instituição que Madame de Maintenon fundou nos anos 1680 para a educação de jovens pobres da nobreza. Enfim, "Sade", de Benoît Jacquot, imagina um episódio privilegiado da vida do marquês: sua detenção numa casa de saúde para aristocratas protegidos no tempo do Terror. Será uma conjunção circunstancial ou o índice de um "retorno" equívoco à tradição? Alguns já falam, a propósito dessa volta a filmes de costumes, de um "novo academicismo". Como se, apartando-se das histórias de família e de sociedade à Rohmer ou à Rivette, o cinema francês negasse também o legado da modernidade narrativa e cinematográfica. E certamente existe algo de emblemático em "Les Destinées Sentimentales" que alinha as "cenas a fazer" e desfila seus heróis e heroínas numa paisagem de cartão-postal da belle époque: baile no castelo, vindimas, idílio suíço, cenas de trabalho na fábrica e manifestação operária, hospitais da Grande Guerra. Mas o símbolo está talvez ainda mais na própria ficção. Um filho de industrial da porcelana que escolhera a pobreza, a vocação de pastor e depois a solidão acaba por ceder ao apelo da família e retoma a fábrica paterna, onde se esmera, porém, em fazer de seus serviços de mesa obras-primas da arte, à antiga. Aí se veria de bom grado a parábola de um cinema herdeiro da Nouvelle Vague, renunciando à austeridade de Godard e ao intimismo de Rohmer para manter, dentro da própria moldura da indústria cinematográfica mundializada, a tradição artesanal do cinema autoral.

Retorno vazio
Contudo não é o gosto pelas belas imagens e pelas fotografias amareladas que inspira esse recurso à história. Não é também o cuidado de fugir das materialidades do presente rumo aos esplendores de um mundo desaparecido. O retorno à história opõe-se raramente às exigências, estéticas e políticas, do presente. Nos anos 70, o cinema francês já conhecera tal enlevo. Na época era claro o que estava politicamente em jogo. No dia seguinte a 68, a esquerda contestada e os esquerdistas contestadores batiam-se pelo legado dos trabalhos, das penas e dos combates do povo. Ao mesmo tempo, faziam furor as obras de historiadores ou etnólogos consagradas a tais vidas anônimas, cujo renovado peso de materialidade cotidiana se opunha aos fastos da grande história, fosse monárquica ou revolucionária.
Na época da ordem consensual e da mundialização, um tal expediente parece estar bem longe. O que se reclama da história não é sustentar tal ou qual causa presente. Entre os patrões e os operários da fábrica de porcelana, os aristocratas da prisão dourada de Picpus e os revolucionários de 1794, a amante do Rei Sol e as jovens pobres que ela toma como reféns de seus sonhos pedagógicos, esses filmes não nos pedem para escolher. Antes, devotam-se a aproximar seus destinos aproximando primeiro seus corpos. Em "Sade", os corpos dos guilhotinados lançados à vala comum invadem pouco a pouco o gramado dos aristocratas sob custódia da casa de Picpus, antes que as próprias cabeças dos guilhotinados nele tombem. Em "Saint Cyr", Madame de Maintenon deixa-se mergulhar a cabeça em sua banheira por uma de suas protegidas rebeldes.
Não se trata de enaltecer a revolta nem de chamar nossa atenção para a precariedade do poder. Se há uma política de representação, é, quando muito, a de tornar o poder visível, materialmente próximo de quem ele sujeita, em oposição a esse poder que se dissimula hoje atrás das fachadas das instituições internacionais ou dos arcanos do mercado mundial.
Assim, o recurso ao passado não é sinônimo de gosto pelos álbuns de imagens e pelos esplendores de antanho. Desde que os campeões da "nova história" opuseram as histórias dos anônimos e da vida material às histórias das batalhas e dos tratados, a história, pelo contrário, tem por função resgatar ao presente a presença, o sangue e a carne. A era de ouro que ela invoca não é aquela de pompas régias, de lutas heróicas ou de paixões perdidas. É antes uma era em que os pensamentos se faziam imediatamente carne, em que todas as coisas materiais eram raras e preciosas, em que a vida e a morte eram ao mesmo tempo mais brutais e mais cerimoniosas e em que os corpos estavam mais próximos uns dos outros. Mas não se trata mais, como há 30 anos, de resgatar a carne da história e o sangue do povo aos programas dos partidos. É por si próprio que o cinema os reclama hoje. A hora em que o poder mundial desaparece da vista dos corpos é também, de fato, aquela em que todos os tipos de profetas anunciam a grande catástrofe do real e da imagem: o real viraria um simulacro, a imagem sumiria no reino da comunicação industrial, do número e do virtual. Pouco importa aqui julgar a validade dessas crenças. O certo é que elas agem, que criam a mania de um mundo onde a imagem, tendo perdido sua distância em relação ao real, sumiria ao mesmo tempo que ele.

Falatório de galinheiro
É daí que tiram suas forças essas ficções, que querem dar ao presente do cinema a carne da história. Mas se trata justamente da carne da imagem, e não da carne representada. Ainda que "Saint Cyr" comece com alguns meneios entre Luís 14 e Madame de Maintenon, seu efeito está em outra parte e pode se resumir quase inteiramente a uma única sequência, a da apresentação das jovens de nobres despossuídos que a instituição se dispõe a formar. Em vez das esperadas cortesias, é um falatório de galinheiro que se faz ouvir e obriga esse filme franco-francês às legendas: essas filhas de nobres, de fato, falam o mesmo patoá que as filhas do campo. Se o cenário conta o processo de "civilização" dessas provincianas, o próprio filme busca o efeito inverso: infundir estranheza, selvageria em nossas imagens, infundindo exotismo a esses corpos falantes.
E essa carne reencontrada, essa proximidade de corpos não tem nada a ver com alguma exibição pornográfica. "Sade" é significativo nesse propósito: os espectadores se decepcionarão se esperarem ver ilustrados alguns dos "120 Dias de Sodoma". O filme narra a sedução de uma adolescente, irmã da Eugênia, de "A Filosofia na Alcova". Mas a câmara elide a passagem ao ato. E a própria filosofia que lhe ensina ele, a não-separação do corpo e da alma, parecerá bem-comportada a seus leitores e mais reveladora do desejo de carne do cinema que do do sedutor. A proximidade que interessa ao cineasta é efetivamente de outra ordem. É antes de tudo aquela de todos os corpos mascarados de aristocratas que o sucesso revolucionário encerra num lugar fechado, que uma outra proximidade invade: a dos corpos atulhados nas charretes do tribunal revolucionário e nas valas comuns.
Mas é sobretudo a proximidade das palavras aos corpos e dos corpos de ficção ao corpo da imagem. A luta "intelectual" do sedutor e da donzela de boa família difere no filme das orgias que ela acompanhava nos livros de Sade. Mas é que ela constitui um erotismo mais adequado ao cinema que a filmagem em close das penetrações que valeram recentemente ao filme "Baise-Moi" (Beije-me) os açoites da censura. De fato, ele é tratado por um uso espetacular do campo-contracampo em close, muitas vezes centrado somente nos rostos. "Saint Cyr" usa igualmente essa figura que, de algum modo, faz aderir a palavra ao corpo que a profere como ao que a suscita, a recebe e a reenvia.
As figuras cinematográficas, como as ficções, têm uma história, feita de avanços e retrocessos. Nos anos 50, André Bazin opôs à tradição hollywoodiana do campo-contracampo a profundidade do campo e o plano-sequência, de que Orson Welles e Rossellini eram os heróis. Ao ilusionismo da narração clássica, o plano-sequência opunha a marcha de uma verdade que o tempo e a paciência da câmara deviam fazer surgir nos rostos dos seres filmados. É talvez essa fé fenomenológica nas virtudes do visível que se alcançou hoje. Tal como o retorno à história é antes de tudo uma busca de corpos, o recurso a figuras "clássicas" da narração é talvez uma maneira de constatar o privilégio do visível, de emprestar à palavra o cuidado de dar corpo às imagens. Apesar do que dizem os profetas da midiologia, o destino das imagens decididamente não é linear.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.


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