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O cinema francês atual parece reencontrar as grandes formas
e os grandes temas tomados de empréstimo à tradição romanesca
O cinema e a carne da história
Jacques Rancière
Haverá uma nova tendência no cinema francês?
Acusaram-no muitas vezes, nesses últimos
tempos, de ser "egocêntrico", de se comprazer
com comédias de costumes e de sociedade,
feitas de pequenas notações sobre as mutações imperceptíveis de um microcosmo social, em benefício de
uma pequena burguesia intelectual que nele contemplava com narcisismo seus modos de ser, de falar e de
agir.
De repente ele parece tomar distância, abandonar as
histórias de empresários tomados pela dúvida, de professores de filosofia presas dos desejos de suas estudantes ou de casais que se desfazem e se reformam, para
reencontrar as grandes formas e os grandes temas tomados de empréstimo à tradição romanesca e à representação dos momentos fortes da história nacional.
Testemunhas disso são três filmes realizados recentemente por três cineastas emblemáticos de uma certa
tradição do cinema francês autoral, herdeira da Nouvelle Vague.
"Les Destinées Sentimentales" (Os Destinos Sentimentais), de Olivier Assayas, retoma a tradição das histórias de família e de amor contra o pano de fundo das
reviravoltas do tempo, ilustradas particularmente pelo
Visconti do "Gattopardo". A província profunda, a
grandeza e a decadência da indústria de porcelana e a
Primeira Guerra Mundial servem de tela de fundo para
uma história de amor tirada de um romance de Jacques
Chardonne, emblemática da literatura dos anos 30.
"Saint Cyr" (São Ciro), de Patricia Mazuy, faz reviver a
instituição que Madame de Maintenon fundou nos
anos 1680 para a educação de jovens pobres da nobreza.
Enfim, "Sade", de Benoît Jacquot, imagina um episódio
privilegiado da vida do marquês: sua detenção numa
casa de saúde para aristocratas protegidos no tempo do
Terror.
Será uma conjunção circunstancial ou o índice de um
"retorno" equívoco à tradição? Alguns já falam, a propósito dessa volta a filmes de costumes, de um "novo
academicismo". Como se, apartando-se das histórias de
família e de sociedade à Rohmer ou à Rivette, o cinema
francês negasse também o legado da modernidade narrativa e cinematográfica.
E certamente existe algo de emblemático em "Les
Destinées Sentimentales" que alinha as "cenas a fazer" e
desfila seus heróis e heroínas numa paisagem de cartão-postal da belle époque: baile no castelo, vindimas, idílio
suíço, cenas de trabalho na fábrica e manifestação operária, hospitais da Grande Guerra. Mas o símbolo está
talvez ainda mais na própria ficção.
Um filho de industrial da porcelana que escolhera a
pobreza, a vocação de pastor e depois a solidão acaba
por ceder ao apelo da família e retoma a fábrica paterna,
onde se esmera, porém, em fazer de seus serviços de
mesa obras-primas da arte, à antiga. Aí se veria de bom
grado a parábola de um cinema herdeiro da Nouvelle
Vague, renunciando à austeridade de Godard e ao intimismo de Rohmer para manter, dentro da própria moldura da indústria cinematográfica mundializada, a tradição artesanal do cinema autoral.
Retorno vazio
Contudo não é o gosto pelas belas
imagens e pelas fotografias amareladas que inspira esse
recurso à história. Não é também o cuidado de fugir das
materialidades do presente rumo aos esplendores de
um mundo desaparecido. O retorno à história opõe-se
raramente às exigências, estéticas e políticas, do presente. Nos anos 70, o cinema francês já conhecera tal enlevo. Na época era claro o que estava politicamente em jogo. No dia seguinte a 68, a esquerda contestada e os esquerdistas contestadores batiam-se pelo legado dos trabalhos, das penas e dos combates do povo. Ao mesmo
tempo, faziam furor as obras de historiadores ou etnólogos consagradas a tais vidas anônimas, cujo renovado
peso de materialidade cotidiana se opunha aos fastos da
grande história, fosse monárquica ou revolucionária.
Na época da ordem consensual e da mundialização,
um tal expediente parece estar bem longe. O que se reclama da história não é sustentar tal ou qual causa presente. Entre os patrões e os operários da fábrica de porcelana, os aristocratas da prisão dourada de Picpus e os
revolucionários de 1794, a amante do Rei Sol e as jovens
pobres que ela toma como reféns de seus sonhos pedagógicos, esses filmes não nos pedem para escolher. Antes, devotam-se a aproximar seus destinos aproximando primeiro seus corpos. Em "Sade", os corpos dos guilhotinados lançados à vala comum invadem pouco a
pouco o gramado dos aristocratas sob custódia da casa
de Picpus, antes que as próprias cabeças dos guilhotinados nele tombem. Em "Saint Cyr", Madame de Maintenon deixa-se mergulhar a cabeça em sua banheira por
uma de suas protegidas rebeldes.
Não se trata de enaltecer a revolta nem de chamar
nossa atenção para a precariedade do poder. Se há uma
política de representação, é, quando muito, a de tornar
o poder visível, materialmente próximo de quem ele sujeita, em oposição a esse poder que se dissimula hoje
atrás das fachadas das instituições internacionais ou
dos arcanos do mercado mundial.
Assim, o recurso ao passado não é sinônimo de gosto
pelos álbuns de imagens e pelos esplendores de antanho. Desde que os campeões da "nova história" opuseram as histórias dos anônimos e da vida material às histórias das batalhas e dos tratados, a história, pelo contrário, tem por função resgatar ao presente a presença, o
sangue e a carne. A era de ouro que ela invoca não é
aquela de pompas régias, de lutas heróicas ou de paixões perdidas. É antes uma era em que os pensamentos
se faziam imediatamente carne, em que todas as coisas
materiais eram raras e preciosas, em que a vida e a morte eram ao mesmo tempo mais brutais e mais cerimoniosas e em que os corpos estavam mais próximos uns
dos outros. Mas não se trata mais, como há 30 anos, de
resgatar a carne da história e o sangue do povo aos programas dos partidos. É por si próprio que o cinema os
reclama hoje.
A hora em que o poder mundial desaparece da vista
dos corpos é também, de fato, aquela em que todos os
tipos de profetas anunciam a grande catástrofe do real e
da imagem: o real viraria um simulacro, a imagem sumiria no reino da comunicação industrial, do número e
do virtual. Pouco importa aqui julgar a validade dessas
crenças. O certo é que elas agem, que criam a mania de
um mundo onde a imagem, tendo perdido sua distância em relação ao real, sumiria ao mesmo tempo que ele.
Falatório de galinheiro
É daí que tiram suas forças essas ficções, que querem dar ao presente do cinema
a carne da história. Mas se trata justamente da carne da
imagem, e não da carne representada. Ainda que "Saint
Cyr" comece com alguns meneios entre Luís 14 e Madame de Maintenon, seu efeito está em outra parte e pode
se resumir quase inteiramente a uma única sequência, a
da apresentação das jovens de nobres despossuídos que
a instituição se dispõe a formar. Em vez das esperadas
cortesias, é um falatório de galinheiro que se faz ouvir e
obriga esse filme franco-francês às legendas: essas filhas
de nobres, de fato, falam o mesmo patoá que as filhas do
campo. Se o cenário conta o processo de "civilização"
dessas provincianas, o próprio filme busca o efeito inverso: infundir estranheza, selvageria em nossas imagens, infundindo exotismo a esses corpos falantes.
E essa carne reencontrada, essa proximidade de corpos não tem nada a ver com alguma exibição pornográfica. "Sade" é significativo nesse propósito: os espectadores se decepcionarão se esperarem ver ilustrados alguns dos "120 Dias de Sodoma". O filme narra a sedução de uma adolescente, irmã da Eugênia, de "A Filosofia na Alcova". Mas a câmara elide a passagem ao ato. E
a própria filosofia que lhe ensina ele, a não-separação
do corpo e da alma, parecerá bem-comportada a seus
leitores e mais reveladora do desejo de carne do cinema
que do do sedutor. A proximidade que interessa ao cineasta é efetivamente de outra ordem. É antes de tudo
aquela de todos os corpos mascarados de aristocratas
que o sucesso revolucionário encerra num lugar fechado, que uma outra proximidade invade: a dos corpos
atulhados nas charretes do tribunal revolucionário e
nas valas comuns.
Mas é sobretudo a proximidade das palavras aos corpos e dos corpos de ficção ao corpo da imagem. A luta
"intelectual" do sedutor e da donzela de boa família difere no filme das orgias que ela acompanhava nos livros
de Sade. Mas é que ela constitui um erotismo mais adequado ao cinema que a filmagem em close das penetrações que valeram recentemente ao filme "Baise-Moi"
(Beije-me) os açoites da censura. De fato, ele é tratado
por um uso espetacular do campo-contracampo em
close, muitas vezes centrado somente nos rostos. "Saint
Cyr" usa igualmente essa figura que, de algum modo,
faz aderir a palavra ao corpo que a profere como ao que
a suscita, a recebe e a reenvia.
As figuras cinematográficas, como as ficções, têm
uma história, feita de avanços e retrocessos. Nos anos
50, André Bazin opôs à tradição hollywoodiana do campo-contracampo a profundidade do campo e o plano-sequência, de que Orson Welles e Rossellini eram os heróis. Ao ilusionismo da narração clássica, o plano-sequência opunha a marcha de uma verdade que o tempo
e a paciência da câmara deviam fazer surgir nos rostos
dos seres filmados. É talvez essa fé fenomenológica nas
virtudes do visível que se alcançou hoje. Tal como o retorno à história é antes de tudo uma busca de corpos, o
recurso a figuras "clássicas" da narração é talvez uma
maneira de constatar o privilégio do visível, de emprestar à palavra o cuidado de dar corpo às imagens. Apesar
do que dizem os profetas da midiologia, o destino das
imagens decididamente não é linear.
Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e
autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros.
Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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