São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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+ história

Bombas pensantes

"Diários de Kamikazes" analisa as motivações dos pilotos suicidas japoneses na 2ª Guerra

DAVID PILLING

Kamikaze significa "vento divino". A palavra foi usada pela primeira vez para descrever o tufão que destruiu em 1281 a frota de Kublai Khan, salvando o Japão da invasão mongol.
Os kamikazes de 1945 tiveram menos sucesso. Os pilotos que se tornaram bombas humanas foram incapazes de proteger seu país da invasão, tampouco o imperador -cujo nome, dizia-se, era pronunciado pelos aviadores antes de morrer- da derrota e humilhação.
Para muitos ocidentais, os kamikazes são protótipos dos homens-bomba modernos, fanáticos dispostos a matar a si próprios e aos inimigos por uma causa maior. Para alguns no Japão, os kamikazes ainda são idealizados como puros defensores do espírito japonês.
Emiko Ohnuki-Tierney, uma professora norte-americana, não aceita isso. Para ela, que é autora de "Kamikaze Diaries -Reflections of Japanese Student Soldiers" [Diários de Kamikazes - Reflexões dos Estudantes Soldados Japoneses, University of Chicago Press, 232 págs., 16 libras, R$ 65], os kamikazes, que eram principalmente "voluntários" das universidades de elite, eram almas sensíveis enviadas à morte por um governo militar vilão.
Ela descobre jovens soldados não-fanáticos, mas eruditos, meditativos, muitas vezes liberais, tentando entender o significado da vida à sombra da morte iminente.
Ela traduz e interpreta os diários de seis estudantes. O de Norimitsu Takushima, por exemplo, mostra como um devoto do romantismo, ardorosamente contrário ao florescente nacionalismo japonês, se transforma em alguém pronto para morrer, "combatendo para alcançar a harmonia deste universo".
Takushima presta exame para ser contador da marinha não-combatente, mas é registrado como piloto qualificado. Com a aproximação da morte, debate-se para compreender seu destino de "morrer como uma folha de árvore enrugada".
Outro piloto se compara a um sashimi humano, "uma carpa sobre a tábua de cortar". O diário de Takushima demonstra, como os de outros pilotos, uma surpreendente gama de leituras. Ele devorou, muitas vezes no original, obras de Gide, Rimbaud, Keats, Hobbes, Marx, Nietzsche e outros pensadores que pudessem ajudá-lo a encontrar sentido em um mundo em desintegração.
Em 1940 ele escreve com certa pompa: "A idéia de que alguém é patriota e, portanto, se sacrificaria é um pensamento para as massas imbecis... Eu defendo o contato e o intercâmbio livres entre os povos do mundo". Em 1944, ele diz sobre sua morte iminente: "Estou contente por fornecer motivos bons e belos para meu ato -nosso sacrifício".
Para ele e para os outros pilotos, a estética de um Japão idealizado começa a se infiltrar na idéia de uma morte bela.

Defesa martelada
Ohnuki-Tierney presta um serviço valioso ao mergulhar, além do estereótipo, nas mentes desses estudantes assustados e pensativos.
Ocasionalmente, porém, o livro parece mais uma tese de doutorado em que a defesa repetitiva de seus heróis condenados atrapalha sua própria eloqüência. Por exemplo, há um certo alarde sobre sua ampla leitura, como se isso os tornasse menos merecedores da chacina que outros.
A autora também se esforça demais para distanciar os kamikazes dos terroristas suicidas. Certamente, como ela indica, eles atacaram alvos militares, e não civis. Eles também não engoliam de boa vontade a ideologia do culto ao imperador. Eram sobretudo soldados enviados em missões fatais, como milhões de outros homens enviados para matar e serem mortos nas guerras.
Mas alguns pilotos kamikazes têm uma semelhança mais que ligeira com os homens-bomba, vítimas da propaganda, iludidos a aceitar a morte como mártires. Nos próximos anos, os diários de jihadistas também poderão fornecer visões interessantes dos violentos conflitos ideológicos de hoje.


Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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