São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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Depois do dilúvio

Considerada a obra-prima de Spike Lee, "Quando as Barragens Se Romperam", com quatro horas de duração e depoimentos de mais de cem pessoas, retrata a agonia e o ressurgimento de Nova Orleans

ALLISON SAMUELS

Spike Lee se orgulha de suas raízes nova-iorquinas -ele vive pelos Yankees [equipe de beisebol], morre pelos Knicks [equipe de basquete] e sangra por qualquer coisa relacionada ao Brooklyn-, mas nos últimos 12 meses seu coração tem vivido em Nova Orleans. Para produzir "When the Levees Broke - A Requiem in Four Acts" [Quando as Barragens Se Romperam -Um Réquiem em Quatro Atos], seu novo documentário de quatro horas sobre o furacão Katrina -para a rede de TV HBO-, Lee, 49, fez nove visitas à região da costa do golfo do México e entrevistou mais de cem pessoas, entre as quais o prefeito de Nova Orleans, o governador da Louisiana, Sean Penn, engenheiros, historiadores, jornalistas, apresentadores de rádio e até mesmo o sujeito que viu o vice-presidente posando para fotógrafos na cidade, depois do furacão, e disse "vá se f., senhor Cheney".
Mas a voz que os telespectadores mais recordarão é a de uma sobrevivente do Lower Ninth Ward, o bairro mais devastado pelo desastre, uma mulher chamada Phyllis Montana LeBlanc, que exibe de maneira especialmente vibrante o espírito combativo pelo qual os moradores de Nova Orleans são conhecidos.

Outra história
No devastador filme de Lee, LeBlanc é presença freqüente e freqüentemente hilariante, uma espécie de feroz e solitário coro grego que ainda não conseguiu se conformar com o fato de que, por quase uma semana, seu país simplesmente considerou que ela e seus vizinhos estivessem mortos e nada fez para ajudá-los.
"Fiz duas perguntas a Spike quando nos conhecemos", diz LeBlanc, sentada em uma cadeira no gramado diante de um dos trailers fornecidos pelo governo, como moradia provisória, aos desabrigados de Nova Orleans, recebido só quatro meses após a solicitação.
"Primeiro eu perguntei se ele ia contar toda a história e deixar claro que nem todos os negros da cidade eram pobres, ignorantes e saqueadores. E depois perguntei se eu poderia dizer palavrões." Ela ri. "Quando ele respondeu sim às duas questões, eu disse: "Opa, então negócio fechado"."
"Quando as Barragens Se Romperam" inclui uso freqüente de palavras de baixo calão, especialmente se você compartilha da opinião da maioria dos moradores da costa do Golfo do México e considera que Fema (Agência Federal de Administração de Emergências norte-americana) é, para todos os efeitos, equivalente a um palavrão.
Mas a decepção, e não a fúria, é a emoção dominante no documentário de US$ 2 milhões [R$ 4,3 milhões] que Lee dirigiu e será exibido nos EUA em duas partes, nos dias 21 e 22 de agosto, e depois reprisado na íntegra em 29 de agosto, dia em que o Katrina varreu a Louisiana [não há previsão de a HBO passar o filme no Brasil].

A coisa certa
Lee está mais velho e é mais sábio do que o cineasta que dirigiu "Faça a Coisa Certa", e o resultado é possivelmente o trabalho mais essencial em seus 20 anos de carreira.
A primeira parte trata da chegada da tempestade; a segunda narra o fracasso dos serviços de emergência; a terceira acompanha os problemas de uma comunidade abandonada tentando recuperar aquilo que perdeu; e a quarta trata dos esforços hesitantes e improvisados para recomeçar.
Mas imagens e idéias ecoam em cada um dos atos, como uma composição musical em forma de fuga.
A voz de Lee raramente é ouvida; ele permite que o lamento dos metais -como que tontos de dor- da trilha sonora composta por Terence Blanchard fale em seu nome (Blanchard, que colaborou com Lee em 13 filmes, incluído o documentário, nasceu em Nova Orleans. Em uma das cenas mais comoventes do trabalho, o compositor visita, acompanhado da mãe idosa, as ruínas da casa em que viveu na infância).
Os negros são maioria entre as vítimas do Katrina, mas Lee não fez de seu novo filme uma polêmica racial.
Alguns espectadores ficarão surpresos ao constatar que Lee considera a tragédia um retrato nacional definido mais em termos de classe social do que de cor da pele. Para ele, o que existe em comum entre a maior parte das vítimas é o fato de que pouco tinham quando o furacão chegou, e nada restou depois que ele se foi.
No dia em que o Katrina começou seu ataque a Nova Orleans, Lee estava participando de um festival de cinema em Veneza -cidade italiana que, como Nova Orleans, está afundando- e se recusou a deixar o quarto do hotel.


Lixo e destroços
"Fiquei lá, de olhos fixos na televisão", disse ele em maio, enquanto visitava Nova Orleans à procura de postos de votação para filmar durante o segundo turno das eleições para a prefeitura da cidade. "Eu não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo nos EUA. Foi um daqueles momentos que você sabe que retornará no futuro, com as pessoas perguntando onde você estava no dia do Katrina."
Lee decidiu instantaneamente que realizaria um documentário sobre a catástrofe e por isso procurou a HBO, com quem já havia trabalhado em dois documentários passados: "4 Little Girls" [Quatro Menininhas], sobre o ataque que matou quatro meninas em um atentado a bomba contra uma igreja freqüentada por fiéis negros, em 1963, e "Jim Brown -All American" [Jim Brown -Todo Americano], biografia de um dos melhores jogadores de futebol americano.


"Eu não esperava encontrar o que vi quando cheguei a Nova Orleans; parecia com o que, suponho, fosse Hiroshima após a 2ª Guerra"


A HBO lhe ofereceu verba de US$ 1 milhão [R$ 2,13 milhões] para um filme de duas horas, mas a duração logo se alongou para três e depois quatro horas, com aumento concomitante do orçamento. "Jamais produzimos um documentário de quatro horas", disse Sheila Nevins, presidente da divisão de documentários e programação familiar da HBO, "mas não era difícil perceber que o tema requeria mais tempo".
No final de setembro, Lee fez sua primeira viagem a Nova Orleans e ficou chocado, porque as imagens televisivas a que havia assistido sobre o desastre não o prepararam de maneira alguma para o que ele encontrou na realidade. "Parecia com o que, suponho, fosse Hiroshima após a Segunda Guerra Mundial", disse, enquanto seu carro percorria ruas ainda recobertas de lixo e destroços. "Eu não sabia o que esperar quando cheguei, mas não esperava encontrar aquilo que vi, disso tenho certeza."
A primeira parada dele foi no gabinete do prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, que enfrentava problemas políticos e cuja condução da crise variou da paixão à inépcia.
"A situação de Nagin não era boa", diz Lee hoje. "Muita gente dizia que se tratava de um caso semelhante ao de Nova York e comparava o desempenho dele com a forma pela qual [o então prefeito nova-iorquino Rudolph] Giuliani cuidou do 11 de Setembro. Mas não há como comparar as duas situações. A causa de uma delas era a ação humana, e a da outra, não."

O sistema falhou
Depois de um ano de estudo dos complexos problemas relacionados às falhas dos serviços de emergência nas semanas que se seguiram ao Katrina, Lee se esforça, no filme, para não atribuir responsabilidades e culpas de maneira burocrática. Ele parece compartilhar da opinião dos moradores de Nova Orleans: todo o sistema falhou.
Ainda assim, o governo Bush não escapa a críticas duras -especialmente a secretária de Estado, Condoleezza Rice, cuja visita a Manhattan para comprar sapatos enquanto Nova Orleans se afogava é relatada em detalhes vívidos. Lee diz que passou meses procurando a mulher que abordou Rice na loja Ferragamo e a criticou duramente por sua insensibilidade.
"Fiz tudo o que podia para encontrá-la, falei sobre ela para a imprensa, na esperança de que ela lesse alguma coisa ou alguém a informasse", diz, "mas não acredito que ela desejasse ser localizada" (Lee brincou, dizendo que a mulher provavelmente estava presa na baía de Guantánamo).


Corriam rumores de que o sistema de barragens fora deliberadamente dinamitado com a intenção de preservar os bairros mais ricos da cidade


No lugar dela, o reverendo Al Sharpton, militante das causas negras, e o crítico social e escritor Michael Eric Dyson se revezam em ataques contra Rice. "Eu sabia que o que tenho a dizer sobre esse governo chegaria ao mundo por meio de Spike", afirmou Sharpton. "Muitas vezes, a mídia convencional corta as declarações negativas sobre a Casa Branca. Esse documentário compensará as ocasiões em que isso ocorre."
A seqüência mais provocante do filme não envolve acusações específicas. Na parte dois, Lee se concentra nas afirmações, que ganharam alarmante popularidade em Nova Orleans, de que o sistema de barragens foi deliberadamente dinamitado com a intenção de preservar os bairros mais ricos da cidade, desviando a inundação para as áreas mais miseráveis.
Diversas pessoas que vivem perto das barragens dizem no filme ter ouvido ruidosas explosões em meio à tempestade. Os engenheiros insistem em que os ruídos foram causados pelo colapso natural das barragens. Lee se recusa a escolher um partido na controvérsia.
"Não digo que seja verdade, não digo que não é", afirma. "O que tenho a dizer é que muitas pessoas que passaram pelo Katrina acreditam nisso, e o fato não deveria ser ignorado. Dada a história dos negros neste país, da escravidão às experiências conduzidas por médicos do governo com pacientes negros de sífilis em Tuskegee [No Alabama], a idéia não parece absurda" (especialmente se levarmos em conta que isso de fato já aconteceu, na grande inundação do Mississippi, em 1927).

Doente dos nervos
Na tela, Lee dedica justa atenção aos nomes mais conhecidos -astros pop como Kanye West e ativistas como Sharpton. Pouco depois do furacão, Sean Penn foi para Nova Orleans, alugou um barco e começou a procurar sobreviventes.
O ator aparece rapidamente no filme, olhando de esguelha para a câmera, fumando com uma pose de descuidada arrogância e provando que é possível admirar um gesto e não admirar quem o pratica. Outras pessoas conhecidas não esperaram por um convite de Lee.
No dia da eleição, em maio, enquanto o diretor filmava a campanha de Nagin em uma rua movimentada, o reverendo Jesse Jackson apareceu do nada, em um utilitário preto. "Ele deve ter farejado as câmeras", brincou um dos membros da equipe, em voz baixa, causando risadas em todo o grupo, inclusive Lee.
Mas, em termos gerais, Lee faz por garantir que "Quando as Barragens Se Romperam" pertença aos combativos cidadãos comuns que sobreviveram ao desastre em Nova Orleans, como Phyllis Montana LeBlanc -pessoas que merecem destino melhor do que o rótulo de "refugiados" em seu próprio país. Para eles, o documentário não acabou.
LeBlanc causa muitas risadas, no filme, mas na vida real ainda entra em pânico sempre que começa a garoar. Quando cai um temporal, ela corre pela rua para o trailer de uma amiga e tranca a porta até que passe. Ela gostaria de tomar alguma coisa para os nervos, mas isso exigiria entrar na fila às três da manhã, para uma consulta com um especialista em saúde mental da prefeitura.
Para ela, o filme de Lee foi mais do que uma chance de contar sua história ao mundo. Foi como uma terapia. "Para ser honesta, não estou certa do que eu teria feito se Spike não tivesse aparecido na hora em que apareceu", diz.
"Tive um colapso nervoso logo depois do Katrina e estava lutando a cada dia para evitar que ele se repetisse. Mas falar sobre o que aconteceu com alguém que eu sei que se importa comigo e com as pessoas que sofreram o que sofremos de certa forma preservou minha sanidade. E estou certa de que não sou a única."

Este texto saiu na "Newsweek".
Tradução de Paulo Migliacci.


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