São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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Droga de vida

Influenciado por Wilde e Stevenson, Irvine Welsh volta à boa forma em novo romance sobre o submundo da sociedade escocesa

MELISSA MCCLEMENTS

Em 1993, Irvine Welsh sacudiu o mundo literário com a torrente de obscenidades, violência escatológica e hedonismo movido a drogas de "Trainspotting" (Rocco) -seu romance sobre um grupo de viciados em heroína de Edimburgo, mais tarde transformado no filme "cult" estrelado por Ewan McGregor. Seu sucesso mundial fez Welsh se tornar o escriba da geração química -um autor que trouxe para a superfície a subcultura das drogas dos anos 90.
Welsh seguiu sua brilhante estréia com uma série de sucessos: a coletânea de contos "The Acid House" [A Casa do Ácido, 1994]; seu segundo romance, "Marabou Stork Nightmares"; e três romances em um volume, "Ecstasy - Three Tales of Chemical Romance" [Ecstasy - Três Contos de Romance Químico, 1996].
Mas essa última coletânea, com seu título pesado, parece quase uma autoparódia e marcou o início de um declínio da força do autor. "Filth" [Podridão, 1998], a história de um policial sociopata, e "Glue" [Cola, 2001], sobre quatro meninos que crescem num conjunto habitacional, foram insossos.
Parecia que a proeza de Welsh estava minguando conforme chegava ao fim a era da dance music, à qual estava intimamente associado.
Mas felizmente havia mais na obra de Welsh do que pílulas, emoções e bastões luminosos. Em 2002, "Porno" (Rocco) -que retoma os personagens de "Trainspotting"- anunciou um retorno à forma, e seu último romance, "The Bedroom Secrets of the Master Chefs" [Segredos de Alcova dos Mestres Cozinheiros, ed. Jonathan Cape, 400 págs., 10,99 libras, R$ 45] brilha com o dinamismo, o humor negro e a ousadia imaginativa de Welsh em seus melhores momentos.
A história apresenta o alcoólatra e mulherengo Danny Skinner e seu arquiinimigo, Brian Kibby -um entusiasta de modelos de trens e de caminhadas na natureza.
O título é enganador: os chefs-celebridades e suas aventuras sexuais têm papel secundário na narrativa. Skinner e Kibby têm 20 e poucos anos e trabalham como fiscais de restaurantes no departamento de saúde ambiental da Prefeitura de Edimburgo, onde Skinner se irrita constantemente com o servilismo de Kibby para com seu chefe, Bob Foy.

Maldição
Certa noite, em uma bebedeira desenfreada, Skinner amaldiçoa Kibby. Mais tarde, seu rival aparece com um vírus misterioso, enquanto ele mesmo pára de sofrer os efeitos posteriores de suas habituais noitadas de bebidas e drogas.
Skinner chega à percepção de que seu alter ego está suportando as repercussões físicas de seu próprio mau comportamento. Desfrutando dessa bizarra inversão dos fatos, ele submete seu colega a uma série incessante de ressacas, com um pouco de violência futebolística incluída em boa medida.
É somente quando Kibby precisa sofrer um transplante de fígado que Skinner começa a assumir a responsabilidade por seus destinos entrecruzados.
Ao contrário dos outros romances de Welsh, neste atuam evidentes influências literárias. As duas principais são até citadas no texto, como leituras favoritas do pai de Kibby, Keith.
"O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde", de Robert Louis Stevenson, é a mais óbvia, com os personagens polarizados do hedonista e egoísta Skinner e o bonzinho Kibby se misturando em um só. O outro é "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde. O infeliz Kibby é uma versão viva do quadro no sótão que suporta todo o sofrimento no lugar de Dorian.
Como sempre, a imaginação sombriamente febril de Welsh criou algumas cenas que não são para corações delicados -especialmente uma cena de sexo muito visual com uma mulher velha, quase no final do livro. O desejo do autor de chocar com o máximo de detalhes repugnantes e fluidos corporais pode parecer púbere -mas seu humor mordaz e a pura vibração de sua escrita mais que compensam essa tendência.
Com seus retratos da classe trabalhadora escocesa, da violência e da dependência de álcool e drogas e os temas da exclusão social e de pais ausentes, "Segredos de Alcova dos Mestres Cozinheiros" não representa um afastamento radical de Welsh. Mas o humor e a segurança criativa garantem que ele continua sendo um dos autores atuais mais estimulantes.


Este texto foi publicado no "Financial Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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