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AUTORES
Rapidez das transformações globais tornam obsoletos os costumes, a política e a ciência
A desmedida do mundo
ANTONIO NEGRI
especial para a Folha
A vontade de "medir" parece
ter sempre estado na base do pensamento ocidental. Observando
bem, o problema da medida foi
sempre central, não só na lógica e
nas ciências exatas, mas também
na política, na economia e na ética. A vida civil é o desenredar-se
de uma medida, e é a medida que
dá à justiça a sua imagem. Apesar
disso, uma certa "desmedida"
intervém, confundindo as idéias e
as civilizações. Quando isso acontece na história, as idéias se desnorteiam.
Na civilização ocidental podemos sem dificuldade registrar alguns momentos em que a irrupção da medida teve efeitos dramáticos. Basta lembrar quando alguém começou a dizer que a relação entre a Terra e os céus era incomensurável (aceita pela maioria, essa nova imagem dos céus esteve na base da invenção da modernidade); ou ainda quando,
apenas há um século e meio, a
consciência de que as medidas do
salário e das necessidades impostas pelo capitalismo eram mesquinhas penetrou as massas produtivas, provocando, na base da desmedida das necessidades proletárias, um século de revolução. É o
caso de perguntar se, na passagem
do moderno para o pós-moderno,
isto é, na fase histórica em que vivemos, nós mesmos não estamos
cotidianamente experimentando
um novo descarte entre medida e
desmedida Äum descarte de dimensões inusitadas.
A questão é proposta por um livro, agora publicado na Itália, de
um escritor suíço de ampla experiência internacional, Christian
Marazzi. O título, "E il Denaro
Va... Esodo e Rivoluzione dei Mercati Finanziari" (E Lá Se Vai o Dinheiro... Êxodo e Revolução dos
Mercados Financeiros, Turim,
Bollati Boringhieri, 1998), não deve confundir: não se trata de um
livro específico (o que também ele é);
não é simplesmente uma análise
da globalização dos mercados financeiros. A substância da argumentação consiste antes em colocar a questão (e em recusar algumas respostas) relativa ao problema da crise da medida econômica
(ética e política) na passagem do
moderno ao pós-moderno.
A tese do livro pode ser assim resumida. A mudança da organização do trabalho (além do taylorismo), da forma-salário (além do
fordismo) e da política econômica
(além do keynesianismo) é o resultado de uma revolução dos processos de valorização, que encontra sua base na transformação do
trabalho: este, por sua vez, tem
novas qualidades comunicativas e
relacionais, que lhe imprimem
uma altíssima produtividade.
Diante dessa radical mutação
que ataca as raízes -as dimensões
da potência da produtividade-,
diante dessa desmedida produtividade do trabalho, governos e instituições financeiras continuam a
aplicar velhas unidades de medida
e a calcular sobre elas. Só um
exemplo: diante de uma expansão
onívora da base produtiva, incluindo-se cada setor da sociedade
na construção da valorização,
continua-se a assumir a restrição
da base industrial fordista como
elemento fundamental, e assim se
faz da ideologia do "fim do trabalho" um falso fundamento de medição.
Paradoxalmente, só os mercados
financeiros (acrescenta Marazzi)
seguem o trabalho em seu êxodo
da velha base industrial, em que o
taylorismo, o fordismo e o keynesianismo (para não falar do imaginário das teorias neoclássicas) o
confinavam, antecipando e prefigurando valores que correspondem mais precisamente às novas
medidas sociais da produtividade.
Daí as crises que não acabam
mais, pois uma arqueológica medição do trabalho continua a ser
imposta ao excesso da produtividade social do pós-moderno. Por
outro lado, existem hoje as condições para novas políticas de salário
e políticas de redistribuição dos
resultados da base produtiva que
aumentou: Marazzi as explora.
Mas não é nisso que queremos
nos deter agora (convidamos
quem tenha maior interesse nesses
temas a ler o belo livro de Marazzi); queremos sim retornar ao
questionamento sobre o choque
entre medida e desmedida em
nossa época histórica. Ora, que esse choque se dá de maneira evidente não é apenas verificado pela
vicissitude da economia política,
mas emerge irresistivelmente, em
inúmeros outros âmbitos da experiência comum. Mais do que o dinheiro, são as ciências, a ética, o
próprio costume que "lá se
vão..." Ävão para além das medidas que a tradição (hoje conservada e novamente interpretada pelo
neoliberalismo) tenta contraditoriamente impor outra vez.
O mal-estar é enorme: sentimo-nos todos "fora de medida"
perante o conjunto de regras e a
ordem que nos são impostos. E temos a sensação de que o real ultrapassou as instituições e as formas
de vida em que estamos inseridos.
Isso vale para as instituições políticas, em que a máquina da globalização propõe comportamentos e impõe regras que vão além
das restritas dimensões nacionais
da nossa percepção da cidadania;
para as novas regras éticas que impõem, por exemplo, relações de
interdependência social (da "vida
ativa" em geral) que desconjuntam a moral individualista herdada da educação tradicional; ou
ainda pela ética da família e da reprodução familiar, nas quais os
costumes estão largamente ultrapassados pelas possibilidades das
ciências médicas e, em breve, pela
engenharia genética. Esses são
exemplos elementares do nosso
incômodo de hoje. O futuro conflita abertamente com nosso presente, e sua desmedida é evidente.
Dizem que uma sociedade bem
organizada deveria enfrentar esses
desafios. Mas de que maneira? Em
que sentido? Aqui o problema se
põe principalmente para quem
quer reduzir essa desmedida do
futuro a uma passagem contingente e que, portanto, quer reduzir a medida das inovações que essa apresenta. É a "regra do leopardo": é preciso que tudo mude para que nada mude (1), em cuja
aplicação excelem sobretudo as
sociedades católicas e latinas (ultimamente, porém, as sociedades
protestantes anglo-saxônicas também não diferem muito nessa tarefa de neutralização do novo).
Mas perguntemo-nos: o que
aconteceria se essa desmedida fosse irrecuperável? Se ela representasse uma ordem de valores que
não pudesse ser mantida nos parâmetros do velho controle? Marazzi, seguindo as transfigurações e as
funções reveladoras do capital financeiro, aí reconhece a base de
uma mutação do trabalho que,
fundando-se nas relações linguísticas, põe o comum como base
produtiva, extremamente expansiva: com isso alude a uma nova
potência social irrecuperável na
velha ordem. Pode ser uma ilusão.
Ou não. Em todo caso, é irresponsável esperar o desastre para que
esses problemas sejam colocados.
Nota da Redação
1. O autor faz referência ao romance de
Tommasi di Lampedusa "O Leopardo"
(1957).
Antonio Negri é cientista social italiano, autor
de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na
Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.
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