São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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AUTORES
Rapidez das transformações globais tornam obsoletos os costumes, a política e a ciência
A desmedida do mundo

ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

A vontade de "medir" parece ter sempre estado na base do pensamento ocidental. Observando bem, o problema da medida foi sempre central, não só na lógica e nas ciências exatas, mas também na política, na economia e na ética. A vida civil é o desenredar-se de uma medida, e é a medida que dá à justiça a sua imagem. Apesar disso, uma certa "desmedida" intervém, confundindo as idéias e as civilizações. Quando isso acontece na história, as idéias se desnorteiam.
Na civilização ocidental podemos sem dificuldade registrar alguns momentos em que a irrupção da medida teve efeitos dramáticos. Basta lembrar quando alguém começou a dizer que a relação entre a Terra e os céus era incomensurável (aceita pela maioria, essa nova imagem dos céus esteve na base da invenção da modernidade); ou ainda quando, apenas há um século e meio, a consciência de que as medidas do salário e das necessidades impostas pelo capitalismo eram mesquinhas penetrou as massas produtivas, provocando, na base da desmedida das necessidades proletárias, um século de revolução. É o caso de perguntar se, na passagem do moderno para o pós-moderno, isto é, na fase histórica em que vivemos, nós mesmos não estamos cotidianamente experimentando um novo descarte entre medida e desmedida Äum descarte de dimensões inusitadas.
A questão é proposta por um livro, agora publicado na Itália, de um escritor suíço de ampla experiência internacional, Christian Marazzi. O título, "E il Denaro Va... Esodo e Rivoluzione dei Mercati Finanziari" (E Lá Se Vai o Dinheiro... Êxodo e Revolução dos Mercados Financeiros, Turim, Bollati Boringhieri, 1998), não deve confundir: não se trata de um livro específico (o que também ele é); não é simplesmente uma análise da globalização dos mercados financeiros. A substância da argumentação consiste antes em colocar a questão (e em recusar algumas respostas) relativa ao problema da crise da medida econômica (ética e política) na passagem do moderno ao pós-moderno.
A tese do livro pode ser assim resumida. A mudança da organização do trabalho (além do taylorismo), da forma-salário (além do fordismo) e da política econômica (além do keynesianismo) é o resultado de uma revolução dos processos de valorização, que encontra sua base na transformação do trabalho: este, por sua vez, tem novas qualidades comunicativas e relacionais, que lhe imprimem uma altíssima produtividade.
Diante dessa radical mutação que ataca as raízes -as dimensões da potência da produtividade-, diante dessa desmedida produtividade do trabalho, governos e instituições financeiras continuam a aplicar velhas unidades de medida e a calcular sobre elas. Só um exemplo: diante de uma expansão onívora da base produtiva, incluindo-se cada setor da sociedade na construção da valorização, continua-se a assumir a restrição da base industrial fordista como elemento fundamental, e assim se faz da ideologia do "fim do trabalho" um falso fundamento de medição.
Paradoxalmente, só os mercados financeiros (acrescenta Marazzi) seguem o trabalho em seu êxodo da velha base industrial, em que o taylorismo, o fordismo e o keynesianismo (para não falar do imaginário das teorias neoclássicas) o confinavam, antecipando e prefigurando valores que correspondem mais precisamente às novas medidas sociais da produtividade. Daí as crises que não acabam mais, pois uma arqueológica medição do trabalho continua a ser imposta ao excesso da produtividade social do pós-moderno. Por outro lado, existem hoje as condições para novas políticas de salário e políticas de redistribuição dos resultados da base produtiva que aumentou: Marazzi as explora.
Mas não é nisso que queremos nos deter agora (convidamos quem tenha maior interesse nesses temas a ler o belo livro de Marazzi); queremos sim retornar ao questionamento sobre o choque entre medida e desmedida em nossa época histórica. Ora, que esse choque se dá de maneira evidente não é apenas verificado pela vicissitude da economia política, mas emerge irresistivelmente, em inúmeros outros âmbitos da experiência comum. Mais do que o dinheiro, são as ciências, a ética, o próprio costume que "lá se vão..." Ävão para além das medidas que a tradição (hoje conservada e novamente interpretada pelo neoliberalismo) tenta contraditoriamente impor outra vez.
O mal-estar é enorme: sentimo-nos todos "fora de medida" perante o conjunto de regras e a ordem que nos são impostos. E temos a sensação de que o real ultrapassou as instituições e as formas de vida em que estamos inseridos.
Isso vale para as instituições políticas, em que a máquina da globalização propõe comportamentos e impõe regras que vão além das restritas dimensões nacionais da nossa percepção da cidadania; para as novas regras éticas que impõem, por exemplo, relações de interdependência social (da "vida ativa" em geral) que desconjuntam a moral individualista herdada da educação tradicional; ou ainda pela ética da família e da reprodução familiar, nas quais os costumes estão largamente ultrapassados pelas possibilidades das ciências médicas e, em breve, pela engenharia genética. Esses são exemplos elementares do nosso incômodo de hoje. O futuro conflita abertamente com nosso presente, e sua desmedida é evidente.
Dizem que uma sociedade bem organizada deveria enfrentar esses desafios. Mas de que maneira? Em que sentido? Aqui o problema se põe principalmente para quem quer reduzir essa desmedida do futuro a uma passagem contingente e que, portanto, quer reduzir a medida das inovações que essa apresenta. É a "regra do leopardo": é preciso que tudo mude para que nada mude (1), em cuja aplicação excelem sobretudo as sociedades católicas e latinas (ultimamente, porém, as sociedades protestantes anglo-saxônicas também não diferem muito nessa tarefa de neutralização do novo).
Mas perguntemo-nos: o que aconteceria se essa desmedida fosse irrecuperável? Se ela representasse uma ordem de valores que não pudesse ser mantida nos parâmetros do velho controle? Marazzi, seguindo as transfigurações e as funções reveladoras do capital financeiro, aí reconhece a base de uma mutação do trabalho que, fundando-se nas relações linguísticas, põe o comum como base produtiva, extremamente expansiva: com isso alude a uma nova potência social irrecuperável na velha ordem. Pode ser uma ilusão. Ou não. Em todo caso, é irresponsável esperar o desastre para que esses problemas sejam colocados.


Nota da Redação
1. O autor faz referência ao romance de Tommasi di Lampedusa "O Leopardo" (1957).

Antonio Negri é cientista social italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.




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