São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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ADULTESCÊNCIA
Neologismo surgido na Inglaterra expressa a permanência dos valores adolescentes na vida adulta com charme linguístico e pertinência
A sedução dos jovens

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

A imprensa de moda e comportamento cunha com frequência novas palavras. Afinal, ela descreve uma realidade que muda rapidamente e também registra termos inventados pelos próprios atores da vida social.
Das palavras que assim nascem e morrem a cada semana, algumas sobreviventes se impõem e chegam até as portas dos dicionários.
É o caso de adultescência (adultescente), inventada pela imprensa no ano passado, já incorporada a um glossário e quase adotada pelo "New Oxford Dictionary of English" (leia na pág. 5-5). O sucesso de um neologismo depende de seu charme linguístico e de sua pertinência. Quanto a charme, adultescência está bem-servida. Mais do que construção deliberada, parece uma espécie de lapso ou de chiste -contraindo as palavras adulto, adolescente e sobretudo adolescer (que, além de remoçar, significa atingir a adolescência). De tal forma que o adultescente é um adulto que se faz de adolescente, quem sabe para remoçar, mas também é um adulto que tenta (e consegue) atingir sua própria idade: a maturidade.
Resta decidir se a invenção é pertinente.
O "Oxford" projetava definir o adultescente como a pessoa adulta (particularmente de meia-idade) que mantém um estilo de vida próprio de adolescentes.
Parece que os exemplos não faltam. Tornou-se quase lugar-comum observar que adultos dos anos 80 e 90 (ou seja, os "baby-boomers" chegados aos 40 anos) adotam facilmente modas, comportamentos e estados de espírito adolescentes. Aparece assim uma galeria de retratos: são os carecas de rabinho e patins, os flácidos tatuados, os avôs surfe-praianos e por aí vai indefinidamente. Mas, além das diferentes adolescências que estes adultos parecem caricaturar, resta a pergunta: por que imitar a adolescência e qual a sua sedução para o adulto moderno?
De qualquer forma, para que a adolescência seduza os adultos é necessário primeiro que ela exista. Só recentemente ela se tornou uma idéia forte na nossa cultura. O conceito de um momento crucial e crítico da vida, entre a infância e a idade adulta, se afirma no fim do século passado. A adolescência é vista como um momento difícil, arriscado, de preparação e acesso ao exercício da sexualidade e da plena autonomia social. Ela é concebida (por exemplo, na obra canônica "Adolescence", de Stanley Hall, 1904) como o corolário psicológico e social de uma crise biológico-hormonal de crescimento.
As coisas mudam quando a antropóloga Margaret Mead publica, em 1928, "Coming of Age in Samoa" (Crescendo em Samoa), com o intento específico de mostrar que os tempos da vida não são ciclos naturais ou biológicos, mas culturais. Mead mostra que a adolescência nas Ilhas Samoa mal merece ser considerada um momento específico da vida. Ou seja, a adolescência como nós parecemos concebê-la não é a tradução psicológica obrigatória das tempestades hormonais da puberdade. "O estresse (da adolescência)" -ela afirmava- "está em nossa cultura, não nas mudanças físicas pelas quais passam as crianças".
Tornava-se então possível e necessário se perguntar por que, logo em nossa cultura, a adolescência se constituiria numa época proverbialmente difícil e crucial. A resposta de Mead vale ainda hoje. Em resumo, ela dizia: em uma sociedade aberta como a nossa -onde a função social de cada um não é decidida de antemão- a adolescência é um momento de grande intensidade dramática, por ser o tempo da possibilidade (e necessidade) de preparar e fazer escolhas decisivas para a vida futura.
A adolescência como época diferenciada da vida seria assim um corolário da liberdade moderna. Como nossa nascença não decide o que viremos a ser, resta batalhar para alguma felicidade futura. A infância se estende assim em um tempo menos protegido, no qual a expectativa dos pais não se contenta mais com nosso sorriso de criança, mas exige esforços e decisões que prometam algum êxito da vida adulta.
Esta moratória além da infância (como Erikson chamava a adolescência) ganha uma autonomia surpreendente. Tempo de experimentação com possíveis identidades sociais, de crítica do existente, de sonho e de preparação (escola ou aprendizado), a adolescência se torna uma época culturalmente distinta e sofisticada.
Aqui, o mais importante: ela se torna inevitavelmente o ideal da vida adulta, pois é o tempo da liberdade de escolher -de uma certa forma, o símbolo da modernidade. Por isso, em uma sociedade moderna, o adolescente -seja qual for a sua escolha cultural- é sempre invejável, por definição.
Nos anos 50 e 60 um descontentamento bem particular atravessou o Ocidente. As classes médias, embora prosperando, se preocuparam com a ameaça de sua progressiva uniformidade: a dita massificação. Era como se os cidadãos do Ocidente receassem uma volta sub-reptícia da sociedade tradicional, em que o campo das escolhas e dos possíveis se reduziria, em que a vida seria a mesma para todos e prevista de antemão. A reação foi justamente uma valorização da adolescência como imagem e garantia de liberdade, como tempo de livre escolha, de acesso aberto a uma diversidade de identidades possíveis.
Nosso ideal educativo passou a prezar a independência do jovem mais do que sua eventual obediência. Em suma, a época e a cultura precisavam de rebeldia. Desde então a adolescência invadiu a cena social. Sua duração cresceu violentamente. A escola obrigatória e aconselhada empurra o fim da adolescência para os 30 anos.
Por outro lado, o aumento da expectativa de vida propõe uma segunda adolescência, após a dita vida ativa. Em um passado recente, a vida terminava mais ou menos quando acabava a tarefa de educar os filhos. Hoje, a terceira idade obriga de novo a escolher, a renovar o contrato de nossa cultura inventando um outro possível. A aposentadoria (do trabalho e dos deveres parentais), longa demais para ser um tempo de garagem na frente do cemitério, nos confronta com uma nova adolescência. Olhem os presidentes norte-americanos: que fará Clinton depois da presidência? Festejará, como Bush, aniversários pulando de pára-quedas?
Mas de fato a adolescência impõe sua forma a cada instante de nossa vida. Sobretudo a partir dos anos 70 (o famoso livro "Passages", de Gail Sheel, é de 1976), a própria vida adulta -este tempo entre os 30 e a aposentadoria, que deveria ser o momento não adolescente, maduro de nossas vidas- começou a ser pensada como sucessão de uma série de crises de meia-idade. Ou seja, como obrigação permanente de se reinventar, de continuar sendo adolescente. O adolescente portanto é o herói para todas as estações. Aliás, o que define o adolescente não é mais sua idade. Se Leonardo DiCaprio (e não John Wayne ou Cary Grant) é o herói contemporâneo, não é por causa de sua idade ou de sua beleza de efebo. DiCaprio em "Titanic" e Matt Damon em "Good Will Hunting" são heróis não por serem jovens, mas por estarem suspensos e flutuarem no campo aberto dos possíveis. De braços abertos para o futuro, erguidos na proa do navio, eles estão adolescentes.
Estar adolescente é um traço normal da vida adulta moderna. É uma maneira de afirmar a possibilidade de ainda vir a ser outro.
Deste ponto de vista, pouco importa se a adolescência idealizada e perseguida é a nossa mesma, a de nossas crianças ou de nossos netos. Pouco importam os traços da cultura adolescente que podemos adotar. Pois, por meio destas preferências variadas, idealizar a adolescência é um gesto celebrador de nossa própria cultura, uma maneira de tecer o elogio da liberdade.
Difícil para todos. Para os adolescentes, que não sabem mais como ser rebeldes, pois a rebeldia é um valor estabelecido. Para os adultos, pois -pela mesma razão-, como podem um dia desistir de ser rebeldes, ou seja, adolescentes? Resta-nos, em vez de crescer, seguir adultescendo.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail:ccalligari@aol.com



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