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ADULTESCÊNCIA
"Nos dias de hoje, a cultura se diluiu em entretenimento e publicidade; a juventude, a rebeldia, a autenticidade são traduzidas em imagens que se podem comprar e vestir"
O grande motim
NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha
"Somente o creme Barbalho/
Tornará todo grisalho/ Vosso cabelo juvenil;/ Garantindo-lhe o
respeito/ De um ar sisudo e senil/
Em cargos de grande efeito!" Toda uma linha de outros produtos
se propunha, no início do século, a
atender a grande demanda pelo
envelhecimento precoce. Tônicos
para encorpar e ganhar peso, corantes para barbas e bigodes ralos,
óculos e monóculos de vidros
grossos e até uma sinistra pomada
para amarelar dentes e unhas! Isso
sem contar todo o repertório de
recursos destinados a manifestar
veneranda austeridade: suíças,
cãs, casacas, cartolas, bengalas,
cebolões, charutos, anéis de cabochão, polainas e comendas. Um
vasto arsenal, cujo efeito cumulativo deveria somar a mais avançada idade possível para o portador.
A regra era sempre mentir para
mais, muito mais!
Parece bizarria ou perversão,
mas era um imperativo social. Na
sociedade de arrivistas da belle
époque, a cena pública foi invadida por uma legião de "recém-enriquecidos", os beneficiários dos
efeitos somados da revolução
científico-tecnológica de fins do
século, da expansão imperialista e
da Grande Depressão. Na pressa
de substituir as elites senhoriais,
na correria pelo assalto dos cargos
e posições, na ganância pela multiplicação de suas posses e capitais, na sanha para transformar
em poder e privilégios a sua força
econômica, era preciso disfarçar
tanto a obscuridade da sua origem, quanto o caráter repentino
de sua arribação. Era preciso recobrir-se de uma pátina que simulasse estirpe, tradição e autoridade.
Na ausência da aura do tempo,
apelava-se, como era bem o caso,
para a arte da simulação e a truculência do esnobismo. O mercado
logo percebeu que o artigo em
maior demanda era o pastiche do
ar senhoril. Novas fortunas se fizeram, do dia para a noite, vendendo pacotes de velhice instantânea.
Como nesse mundo patriarcal e
machista não se supunha que a
mulher tivesse sequer visibilidade
pública, seu destino era acompanhar o padrão estabelecido pelos
varões. Daí, no caso delas também, todo um complicado acervo
de enchimentos, anquinhas, nádegas e seios de borracha, espartilhos, camadas sucessivas de combinações, anáguas e saiotes, forros, estofos, rendas e musselinas,
coroado pelos cabelos presos e enrodilhados em pericotes, cobertos
pelo véu ou por um chapéu que
ocultava o rosto sob a gaze fina.
Como se esperava que as mulheres
casassem muito cedo, de preferência com homens muito mais velhos, deveriam, assim que consorciadas, assumir ares de matronas.
Ainda que ficassem solteiras por
mais tempo, deveriam investir numa aparência senhorial, tanto para evitar a pecha degradante da
"solteirona", quanto para não
serem tomadas por "raparigas".
A primeira mudança dramática
nesse cenário veio com o cinema.
Ou, mais precisamente, com David Wark Griffith. Ele inventou o
close-up, e o close-up tornou a juventude um imperativo. Ampliado na tela gigante e todo iluminado, o rosto tinha que ser jovem.
Intensificando os efeitos da luz, ele
vislumbrou a mágica essencial do
cinema, seu poder de espiritualizar as imagens, de atribuir uma
aura numinosa, transformando
suas lindas adolescentes em anjos
irradiantes. Um desenvolvimento
posterior dos estúdios, a arte ilusionista da maquiagem, lhes permitiu fazer atrizes adultas parecerem jovens. A era das estrelas fazia
a sua aparição epifânica, hipnotizando as imaginações e difundindo o sex-appeal. A revolução passou num instante das telas para as
prateleiras das perfumarias e daí
para as gavetas e bolsas de todas as
mulheres. O mundo nunca mais
seria o mesmo.
Ainda assim, até o fim da Segunda Guerra, o padrão dominante é
o dos adultos de aparência jovial.
Cintilam o glamour, o charme, a
sedução das "femmes fatales",
um universo de desejos e traições,
mas um mundo de gente madura,
que conhece os códigos e distingue
sem problemas o bem e o mal. Se
optam pelo erro, é por contingência ou perversão, nunca por ignorância ou ingenuidade. Seus dramas envolvem emoções complicadas e dilemas morais de envergadura trágica. Podia-se rir ou chorar com eles, amá-los ou odiá-los,
identificar-se com eles ou rejeitá-
los, porque nas voltas e reviravoltas de suas ações eles representavam um mundo que era aquele de
todo mundo. Sendo adultos e jovens, eles representavam uma sociedade segura de seus valores e
confiante na sua capacidade de
construir o futuro, segundo suas
mais caras convicções.
A grande mudança veio depois
da Guerra. As condições do recrutamento, a extensão e duração do
conflito e os entraves à readaptação à vida civil tiveram um enorme impacto sobre a estrutura familiar, que repercutiu na geração
seguinte. Ao mesmo tempo, o
boom da prosperidade no
pós-guerra provou ser altamente
seletivo. Era possível a todo jovem
conseguir um emprego, mas as
universidades, os altos cargos, os
melhores salários, os investimentos garantidos, as informações
privilegiadas, a parte do leão, enfim, estavam reservados para as
famílias dominantes ou os grupos
organizados. A terra da oportunidade prometia mais do que conseguia cumprir. Às margens da
grande festa consumista iam ficando os desprezados de sempre:
os brancos sem acesso à educação,
os negros, os índios, os latinos e as
legiões de imigrantes flagelados
pelo furacão da guerra. Foi dessa
horda de renegados que partiu a
reação. Se a sociedade filistéia os
segregava, eles tomaram a iniciativa da secessão unilateral e passaram a viver num mundo só seu. E
esse mundo ficava debaixo do tapete para onde a América tinha
varrido tudo o que ela odiava, temia ou abominava.
O ano chave foi 1956. Durante a
exibição dos filmes "Blackboard
Jungle" e "Rock Around the
Clock", os jovens por toda parte
se punham a dançar sobre as poltronas até arrebentarem os cinemas. Estavam respondendo aos
apelos instintuais emanados de
músicos negros, como Chuck
Berry, Bo Diddley e Little Richard,
ou de vozes emergindo da sucata
do "white trash" sulista, como
Elvis Presley, Gene Vincent e Eddie Cochrane. Poetas boêmios
com nomes esdrúxulos de imigrantes não integrados -Kerouac, Corso, Ferlinghetti, Ginsberg- tomavam de assalto a recém-aberta Route 66, procurando
nos aldeamentos indígenas, nos
guetos e nos prostíbulos a verdadeira América. Na Broadway, Jerome Robbins estreava o bombástico "West Side Story", unindo a
tradição cubista dos Ballets Russes
ao "jive" e "jitterbugging" dos
guetos negros e ao "Hot
Rhythm" dos Zoot Suiters chicanos. Era a fusão da tradição anarquista com o "dirty dancing" e o
"indecent shouting". Para os jovens era a insurreição contra a hipocrisia, a desigualdade e a estupidez consumista. Para os guardiães
da ordem eram o paganismo, a delinquência e as trevas. Elvis foi
queimado em efígie por todo o território. Era a guerra civil e o fim do
consenso cultural.
Esse motim alcançou um pico
em 1968, com a "freak generation" e a resistência à guerra do
Vietnã, e se consumou num espasmo com o gesto punk de 76. Quando Andy Warhol equiparou, nas
suas séries de serigrafias gigantes
de 63 a 67, a garrafa de coca-cola,
Marlon Brando, as notas de dólar,
Mao Tsé-tung, a lata de sopa, os
fugitivos mais procurados, o
drops furado, a bomba atômica,
sua própria mãe e Elvis Presley, a
mensagem estava clara. A extinção
de um quadro fixo e consensual de
valores implodiu a possibilidade
de quaisquer nexos coerentes e hegemônicos de significação.
No contexto da expansão das comunicações, a imagem se libertou
dos sentidos. A cultura se diluiu
em entretenimento e publicidade.
A juventude, a rebeldia, a autenticidade são traduzidas em imagens
que se podem comprar e vestir.
Assim também a seriedade, a
compostura e a empáfia. O melhor
portanto é compor um bocadinho
de cada uma, como a receita ideal
para a admiração e o sucesso.
Adultescente: o melhor dos dois
mundos, sem mais compromissos
além da nota fiscal.
Nicolau Sevcenko é professor de história da
cultura no Departamento de História da USP,
autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras).
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