São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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ADULTESCÊNCIA
"Nos dias de hoje, a cultura se diluiu em entretenimento e publicidade; a juventude, a rebeldia, a autenticidade são traduzidas em imagens que se podem comprar e vestir"
O grande motim

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

"Somente o creme Barbalho/ Tornará todo grisalho/ Vosso cabelo juvenil;/ Garantindo-lhe o respeito/ De um ar sisudo e senil/ Em cargos de grande efeito!" Toda uma linha de outros produtos se propunha, no início do século, a atender a grande demanda pelo envelhecimento precoce. Tônicos para encorpar e ganhar peso, corantes para barbas e bigodes ralos, óculos e monóculos de vidros grossos e até uma sinistra pomada para amarelar dentes e unhas! Isso sem contar todo o repertório de recursos destinados a manifestar veneranda austeridade: suíças, cãs, casacas, cartolas, bengalas, cebolões, charutos, anéis de cabochão, polainas e comendas. Um vasto arsenal, cujo efeito cumulativo deveria somar a mais avançada idade possível para o portador. A regra era sempre mentir para mais, muito mais!
Parece bizarria ou perversão, mas era um imperativo social. Na sociedade de arrivistas da belle époque, a cena pública foi invadida por uma legião de "recém-enriquecidos", os beneficiários dos efeitos somados da revolução científico-tecnológica de fins do século, da expansão imperialista e da Grande Depressão. Na pressa de substituir as elites senhoriais, na correria pelo assalto dos cargos e posições, na ganância pela multiplicação de suas posses e capitais, na sanha para transformar em poder e privilégios a sua força econômica, era preciso disfarçar tanto a obscuridade da sua origem, quanto o caráter repentino de sua arribação. Era preciso recobrir-se de uma pátina que simulasse estirpe, tradição e autoridade. Na ausência da aura do tempo, apelava-se, como era bem o caso, para a arte da simulação e a truculência do esnobismo. O mercado logo percebeu que o artigo em maior demanda era o pastiche do ar senhoril. Novas fortunas se fizeram, do dia para a noite, vendendo pacotes de velhice instantânea.
Como nesse mundo patriarcal e machista não se supunha que a mulher tivesse sequer visibilidade pública, seu destino era acompanhar o padrão estabelecido pelos varões. Daí, no caso delas também, todo um complicado acervo de enchimentos, anquinhas, nádegas e seios de borracha, espartilhos, camadas sucessivas de combinações, anáguas e saiotes, forros, estofos, rendas e musselinas, coroado pelos cabelos presos e enrodilhados em pericotes, cobertos pelo véu ou por um chapéu que ocultava o rosto sob a gaze fina. Como se esperava que as mulheres casassem muito cedo, de preferência com homens muito mais velhos, deveriam, assim que consorciadas, assumir ares de matronas. Ainda que ficassem solteiras por mais tempo, deveriam investir numa aparência senhorial, tanto para evitar a pecha degradante da "solteirona", quanto para não serem tomadas por "raparigas".
A primeira mudança dramática nesse cenário veio com o cinema. Ou, mais precisamente, com David Wark Griffith. Ele inventou o close-up, e o close-up tornou a juventude um imperativo. Ampliado na tela gigante e todo iluminado, o rosto tinha que ser jovem. Intensificando os efeitos da luz, ele vislumbrou a mágica essencial do cinema, seu poder de espiritualizar as imagens, de atribuir uma aura numinosa, transformando suas lindas adolescentes em anjos irradiantes. Um desenvolvimento posterior dos estúdios, a arte ilusionista da maquiagem, lhes permitiu fazer atrizes adultas parecerem jovens. A era das estrelas fazia a sua aparição epifânica, hipnotizando as imaginações e difundindo o sex-appeal. A revolução passou num instante das telas para as prateleiras das perfumarias e daí para as gavetas e bolsas de todas as mulheres. O mundo nunca mais seria o mesmo.
Ainda assim, até o fim da Segunda Guerra, o padrão dominante é o dos adultos de aparência jovial. Cintilam o glamour, o charme, a sedução das "femmes fatales", um universo de desejos e traições, mas um mundo de gente madura, que conhece os códigos e distingue sem problemas o bem e o mal. Se optam pelo erro, é por contingência ou perversão, nunca por ignorância ou ingenuidade. Seus dramas envolvem emoções complicadas e dilemas morais de envergadura trágica. Podia-se rir ou chorar com eles, amá-los ou odiá-los, identificar-se com eles ou rejeitá- los, porque nas voltas e reviravoltas de suas ações eles representavam um mundo que era aquele de todo mundo. Sendo adultos e jovens, eles representavam uma sociedade segura de seus valores e confiante na sua capacidade de construir o futuro, segundo suas mais caras convicções.
A grande mudança veio depois da Guerra. As condições do recrutamento, a extensão e duração do conflito e os entraves à readaptação à vida civil tiveram um enorme impacto sobre a estrutura familiar, que repercutiu na geração seguinte. Ao mesmo tempo, o boom da prosperidade no pós-guerra provou ser altamente seletivo. Era possível a todo jovem conseguir um emprego, mas as universidades, os altos cargos, os melhores salários, os investimentos garantidos, as informações privilegiadas, a parte do leão, enfim, estavam reservados para as famílias dominantes ou os grupos organizados. A terra da oportunidade prometia mais do que conseguia cumprir. Às margens da grande festa consumista iam ficando os desprezados de sempre: os brancos sem acesso à educação, os negros, os índios, os latinos e as legiões de imigrantes flagelados pelo furacão da guerra. Foi dessa horda de renegados que partiu a reação. Se a sociedade filistéia os segregava, eles tomaram a iniciativa da secessão unilateral e passaram a viver num mundo só seu. E esse mundo ficava debaixo do tapete para onde a América tinha varrido tudo o que ela odiava, temia ou abominava.
O ano chave foi 1956. Durante a exibição dos filmes "Blackboard Jungle" e "Rock Around the Clock", os jovens por toda parte se punham a dançar sobre as poltronas até arrebentarem os cinemas. Estavam respondendo aos apelos instintuais emanados de músicos negros, como Chuck Berry, Bo Diddley e Little Richard, ou de vozes emergindo da sucata do "white trash" sulista, como Elvis Presley, Gene Vincent e Eddie Cochrane. Poetas boêmios com nomes esdrúxulos de imigrantes não integrados -Kerouac, Corso, Ferlinghetti, Ginsberg- tomavam de assalto a recém-aberta Route 66, procurando nos aldeamentos indígenas, nos guetos e nos prostíbulos a verdadeira América. Na Broadway, Jerome Robbins estreava o bombástico "West Side Story", unindo a tradição cubista dos Ballets Russes ao "jive" e "jitterbugging" dos guetos negros e ao "Hot Rhythm" dos Zoot Suiters chicanos. Era a fusão da tradição anarquista com o "dirty dancing" e o "indecent shouting". Para os jovens era a insurreição contra a hipocrisia, a desigualdade e a estupidez consumista. Para os guardiães da ordem eram o paganismo, a delinquência e as trevas. Elvis foi queimado em efígie por todo o território. Era a guerra civil e o fim do consenso cultural.
Esse motim alcançou um pico em 1968, com a "freak generation" e a resistência à guerra do Vietnã, e se consumou num espasmo com o gesto punk de 76. Quando Andy Warhol equiparou, nas suas séries de serigrafias gigantes de 63 a 67, a garrafa de coca-cola, Marlon Brando, as notas de dólar, Mao Tsé-tung, a lata de sopa, os fugitivos mais procurados, o drops furado, a bomba atômica, sua própria mãe e Elvis Presley, a mensagem estava clara. A extinção de um quadro fixo e consensual de valores implodiu a possibilidade de quaisquer nexos coerentes e hegemônicos de significação.
No contexto da expansão das comunicações, a imagem se libertou dos sentidos. A cultura se diluiu em entretenimento e publicidade. A juventude, a rebeldia, a autenticidade são traduzidas em imagens que se podem comprar e vestir. Assim também a seriedade, a compostura e a empáfia. O melhor portanto é compor um bocadinho de cada uma, como a receita ideal para a admiração e o sucesso. Adultescente: o melhor dos dois mundos, sem mais compromissos além da nota fiscal.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura no Departamento de História da USP,
autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras).



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