São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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ADULTESCÊNCIA
Certas pessoas podem não se ter saído bem dos conflitos que caracterizam a adolescência; talvez seja a elas que se destine o neologismo adultescência
Identidades vacilantes

Reuters - 2.out.1997
Modelo durante desfile do estilista britânico Alexander McQueen


RENATO MEZAN
especial para a Folha

O sonho da eterna juventude, que se conta entre os mais antigos da humanidade, vem sendo perseguido com especial afinco nestas últimas décadas. Maiores cuidados com o corpo e com a saúde juntam-se ao uso de roupas mais leves e alegres e à incitação a comportamentos mais espontâneos: tanto na prática social quanto no discurso dos meios de comunicação, "manter-se jovem" é a palavra de ordem do nosso tempo. E este convite, quase um imperativo, associa-se à forte ênfase colocada por estas mesmas instâncias sobre a adolescência: as fronteiras entre estas duas épocas da vida se tornam cada vez mais tênues.
A adolescência é uma categoria constituída por diferentes determinações, de natureza biológica (puberdade), social e também psicológica. Foi nos meados do século 19 que se passou a falar nos adolescentes como um grupo específico, diferente das "crianças" e dos "adultos". Quanto à psicologia, datam da virada do século os primeiros trabalhos a focalizar especificamente esta problemática, por exemplo o livro de Pierre Mendousse "L'Âme de l'Adolescent" (1909). Na literatura, o herói adolescente já tinha sua figura, traçada pela sede de pureza, pela recusa dos valores "adultos" (associados à hipocrisia), pelas dores da passagem à maturidade... Frédéric, o protagonista da "Educação Sentimental" de Flaubert (1864), é um entre muitos exemplos neste sentido.
A este quadro, a psicanálise nascente vem acrescentar o ingrediente fundamental da sexualidade. Nos "Três Ensaios para uma Teoria Sexual" (1905), Freud define as mudanças que a puberdade traz à sexualidade infantil: unificam-se as pulsões parciais sob o primado da genitalidade, e é preciso desligar-se dos objetos edipianos da infância para "escolher" um novo objeto, não-incestuoso. Embora tenha escrito ocasionalmente sobre o tema (por exemplo, em 1913, um curto texto sobre a "Psicologia do Colegial"), Freud não considerava a adolescência uma entidade em si, como o fez com a noção de infantil. Sabe-se que a psicanálise atribuía -e continua atribuindo- grande importância ao infantil, que sobrevive no inconsciente do adulto e contribui decisivamente para organizar a vida psíquica deste último: "Reencontrar a criança no adulto" é uma das tarefas da terapia analítica. Mas não se pode dizer o mesmo da adolescência: ao menos, não na obra de Freud.
Por outro lado, nas minutas das reuniões científicas entre Freud e seus companheiros da Sociedade Psicanalítica de Viena, fala-se muito na puberdade, especialmente em conexão com a masturbação. Freud enfatiza com frequência que as fantasias masturbatórias desta época referem-se na verdade à masturbação infantil e às figuras edipianas. É a fixação a estas imagens, e não a ação de se masturbar, que pode ter efeitos patológicos.
Posteriormente, com o trabalho de outros analistas, a problemática da adolescência entra em conexão com a teoria do narcisismo: o "quem sou eu?" do adolescente passa a ser visto como sinal de um rearranjo das identificações. Esta reorganização é bastante dolorosa e complicada, mas deve se resolver com a consolidação do sistema identificatório que assinala a entrada na "maturidade". O conflito se dá, tipicamente, entre as aspirações à autonomia e as tendências que visam a manter o estado de dependência frente aos pais. As reivindicações, as provocações, o radicalismo -que caracterizam a psique do "aborrecente"- são na verdade um protesto contra a dependência e uma tentativa de a manter intacta, na medida em que ela parece ser a garantia de que o amor dos pais não me será retirado "se eu crescer".
Tudo indica que existe um "trabalho da adolescência" (1), assim como se pode falar de um "trabalho do luto". A adolescência não é uma sucessão de crises passageiras que deprimem e irritam tanto o sujeito quanto os seus próximos: é antes um processo estruturante que afeta o conjunto da vida psíquica, tanto na área da auto-imagem quanto na esfera das relações. Ele envolve a admissão e a elaboração de perdas significativas (o estatuto de criança, o corpo infantil, certas modalidades de relação com o outro), a aquisição de defesas novas e eventualmente mais plásticas, a integração de novas identificações, o acesso a novas modalidades de vínculo com os pares (de geração e de gênero) e com os diferentes (novamente, em termos de geração e de gênero). Todo este processo de ruptura e de recomposições culmina, normalmente, com a estabilização relativa que caracteriza a entrada na fase adulta.
Não é fácil conviver com adolescentes, porque sua insegurança (derivada dos processos inconscientes em ação) os incita a atitudes que visam a reafirmar uma identidade oscilante: a intensidade das idealizações, bem como o horror às "falsas soluções", os conduzem a uma atitude de "tudo ou nada" que frequentemente incrementa a dependência com os próprios meios que deveriam servir para diminuí-la. O adolescente provoca sem cessar, e esta provocação pode conduzir os adultos a atitudes repressivas. Mas, como Winnicott observa com muita agudeza, "a ameaça representada pela adolescência se dirige àquela parte de nós que, na verdade, não a pôde viver; isto faz com que detestemos aqueles que podem vivenciar tal passagem" (2).
É esta ameaça que, a meu ver, subjaz às representações penitentemente negativas da adolescência. Elas vão desde o bordão "o adolescente é um vagabundo nato" (Duprat, meados do século 19) até a idéia de que "o apetite sexual do adolescente o conduz à violência, à brutalidade, até ao sadismo; ele aprecia o estupro e o sangue" (Durkheim); também é frequente a associação entre adolescência e delinquência, ou entre adolescência e homossexualidade. Em nossos dias, difundiu-se a noção de que ela é uma invenção da indústria para estimular o consumo. Todas estas representações se estruturam em torno das idéias de "perigo" e de "doença", mas na verdade, assim como existe a criança em nós, também existe o "adolescente em nós".
Ora: se a adolescência é (em nossa cultura) um conjunto de processos psíquicos indispensável à estruturação da psique adulta, certas pessoas podem não se ter saído bem dos conflitos que os caracterizam; talvez seja a elas que se dirige o neologismo quase admitido no dicionário Oxford -a adultescência.
O psicanalista diria: não são os comportamentos exteriores que definem a adultescência. Estes comportamentos e atitudes, por mais que soem estridentes ou exóticos, indicam apenas que os conflitos próprios à adolescência não foram bem resolvidos e persistem na fase "adulta". Isto não significa, é claro, que toda exigência utópica seja patológica; há motivos para que um adulto sinta revolta ou indignação, ou para que se efetuem questionamentos radicais do estabelecido. A diferença está na dinâmica que sustenta cada comportamento. Se, sob as aparências, é ainda a autoridade das imagos edipianas que está sendo combatida; se, por meio dos desafios lançados à situação interna de dependência, percebe-se que inconscientemente é ela que precisa ser preservada a qualquer custo; se a questão é calçar uma identidade vacilante com insígnias e ações que pareçam reconhecer o outro, mas na verdade o negam -se esta é a constelação inconsciente, então se pode dizer que a adolescência não terminou, por mais que o corpo e a carteira de identidade digam -com todas as letras e rugas- o contrário.

Notas:
1. Cf. Annie Birraux, "De la Crise au Processus", in: "L'Adolescence dans l'Histoire de la Psychanalyse", Paris, Editions C.I.L.A., 1996, págs. 189-205;
2. D.W. Winnicott, "L'Adolescence" (1962), in: "De la Pédiatrie à la Psychanalyse", Paris, Payot, 1969, pág. 266.


Renato Mezan é psicanalista e autor, entre outros, de "Figuras da Teoria Psicanalítica" (Edusp/Escuta) e "Escrever a Clínica" (Casa do Psicólogo).



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