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PONTO DE FUGA
O anjo embriagado
JORGE COLI
especial para a Folha
Ozu acompanhou, filme por
filme, as transformações trazidas pela modernidade ao Japão
desde os anos de 1930. Era um
olhar analítico sobre o quotidiano, fincado no momento
contemporâneo. Mizoguchi
concentrou-se em trajetórias,
em périplos, em labirintos onde os fios são femininos,
Ariadne intuindo mundos sobrenaturais e metafísicos por
meio de angústias e misérias.
Uchida foi o grande épico do
Japão. Seu cinema pôde misturar-se com a história em imagens enérgicas: "A Espada
Diabólica", estupenda saga de
três filmes, confronta indivíduo e sociedade convulsa, dentro da qual heroísmo e pulsão
criminosa são duas faces da
mesma moeda. Diante deles,
Kurosawa pareceu o menos
profundamente "japonês" e
um Ocidente em busca de autenticidades o contrapôs a Mizoguchi, muito mais nipônico.
Ora, uma das grandezas de
Kurosawa foi a de ter condensado, sem disfarces, um cruzamento incessante entre culturas, ignorando qualquer idéia
de "identidade", sempre redutora e perigosa, embriagado
como era de generosidade humana e universal. Esta ausência de disfarces, aliás, induz a
revisões: Uchida é incompreensível sem Victor Hugo;
Mizoguchi serviu-se de Maupassant para "Os Contos da
Lua Vaga" (e Haquira Osakabe pôde fazer uma admirável
leitura cristã desse cineasta);
Ozu depende das relações progressivas da sociedade japonesa com o Ocidente para modelar sua poética. O culturalmente "autêntico" nada tem de
verdadeiro: ele é apenas um
exotismo convincente.
IMPULSOS - Identidades
culturais ou nacionais têm-se
proposto como inimigas da
chamada globalização. Mas os
dois extremos possuem algo
em comum. A hegemonia que
elimina todas as diferenças sobre nosso planeta exclui, por
suposto, o outro. Os nacionalismos, por sua vez, reduzem
as diferenças a uma identificação oferecida por uma imaginária essência comum, seja ela
cultural, racial, linguística, ou
o que se quiser inventar. Trata-se da confirmação do mesmo e da expulsão do outro. Em
certos casos, a hegemonia global tolera diferenças residuais e
as identidades culturais toleram a presença indesejável do
diferente. Tolerância é odiosa
atitude, que elimina o desejo
do diverso. Desejar o outro, dirigir-se a ele, é buscar afinidades onde elas não parecem estar, fugir da pureza imóvel.
"Dersu Uzala", de Kurosawa,
fruto de uma miscigenação
cultural, discorre sobre modos
delicados e complexos desse
desejo pelo outro.
OUT OF THE EAST - Lafcadio Hearn, escritor greco-anglo-americano, aderiu inteiramente, no final do século passado, à cultura japonesa. Recolheu contos da tradição oral ou
esquecidos em alfarrábios.
Buscou compreender a "alma" de um Japão que se ocidentalizava, paradoxo de um
desenraizado fabricando uma
identidade. Sublinhou, para os
próprios japoneses, as certezas
de um caráter, de uma resistência e de uma superioridade.
Kobayashi fez um filme soberbo a partir de seu livro "Kwaidan". Salvo erro, não há traduções de Hearn no Brasil.
COSI È, SE VI PARE - Kurosawa acreditava no bem, nos
sentimentos bons, e não acreditava na verdade. "Rashômon" é uma demonstração
que leva Pirandello até ao
além-túmulo, fazendo falar
um morto cuja versão dos
acontecimentos é apenas mais
uma, entre tantas. Pouco importam os fatos: o que vale é o
modo de contá-los.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com
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