São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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PONTO DE FUGA

O anjo embriagado

JORGE COLI
especial para a Folha

Ozu acompanhou, filme por filme, as transformações trazidas pela modernidade ao Japão desde os anos de 1930. Era um olhar analítico sobre o quotidiano, fincado no momento contemporâneo. Mizoguchi concentrou-se em trajetórias, em périplos, em labirintos onde os fios são femininos, Ariadne intuindo mundos sobrenaturais e metafísicos por meio de angústias e misérias. Uchida foi o grande épico do Japão. Seu cinema pôde misturar-se com a história em imagens enérgicas: "A Espada Diabólica", estupenda saga de três filmes, confronta indivíduo e sociedade convulsa, dentro da qual heroísmo e pulsão criminosa são duas faces da mesma moeda. Diante deles, Kurosawa pareceu o menos profundamente "japonês" e um Ocidente em busca de autenticidades o contrapôs a Mizoguchi, muito mais nipônico.
Ora, uma das grandezas de Kurosawa foi a de ter condensado, sem disfarces, um cruzamento incessante entre culturas, ignorando qualquer idéia de "identidade", sempre redutora e perigosa, embriagado como era de generosidade humana e universal. Esta ausência de disfarces, aliás, induz a revisões: Uchida é incompreensível sem Victor Hugo; Mizoguchi serviu-se de Maupassant para "Os Contos da Lua Vaga" (e Haquira Osakabe pôde fazer uma admirável leitura cristã desse cineasta); Ozu depende das relações progressivas da sociedade japonesa com o Ocidente para modelar sua poética. O culturalmente "autêntico" nada tem de verdadeiro: ele é apenas um exotismo convincente.

IMPULSOS - Identidades culturais ou nacionais têm-se proposto como inimigas da chamada globalização. Mas os dois extremos possuem algo em comum. A hegemonia que elimina todas as diferenças sobre nosso planeta exclui, por suposto, o outro. Os nacionalismos, por sua vez, reduzem as diferenças a uma identificação oferecida por uma imaginária essência comum, seja ela cultural, racial, linguística, ou o que se quiser inventar. Trata-se da confirmação do mesmo e da expulsão do outro. Em certos casos, a hegemonia global tolera diferenças residuais e as identidades culturais toleram a presença indesejável do diferente. Tolerância é odiosa atitude, que elimina o desejo do diverso. Desejar o outro, dirigir-se a ele, é buscar afinidades onde elas não parecem estar, fugir da pureza imóvel. "Dersu Uzala", de Kurosawa, fruto de uma miscigenação cultural, discorre sobre modos delicados e complexos desse desejo pelo outro.

OUT OF THE EAST - Lafcadio Hearn, escritor greco-anglo-americano, aderiu inteiramente, no final do século passado, à cultura japonesa. Recolheu contos da tradição oral ou esquecidos em alfarrábios. Buscou compreender a "alma" de um Japão que se ocidentalizava, paradoxo de um desenraizado fabricando uma identidade. Sublinhou, para os próprios japoneses, as certezas de um caráter, de uma resistência e de uma superioridade. Kobayashi fez um filme soberbo a partir de seu livro "Kwaidan". Salvo erro, não há traduções de Hearn no Brasil.

COSI È, SE VI PARE - Kurosawa acreditava no bem, nos sentimentos bons, e não acreditava na verdade. "Rashômon" é uma demonstração que leva Pirandello até ao além-túmulo, fazendo falar um morto cuja versão dos acontecimentos é apenas mais uma, entre tantas. Pouco importam os fatos: o que vale é o modo de contá-los.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com



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