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CINEMA
Atividade crítica sobre obra de Godard atraiu Glauber Rocha para a cidade nos anos 60
Glauber e Godard em BH
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Dois dos melhores intelectuais
vinculados ao cinema mineiro,
Geraldo Veloso e Ronaldo Noronha, ambos mais ou menos com
53 anos, moradores de Belo Horizonte, concederam-me algumas
horas de agradável e inteligente
conversa sobre a estética cinematográfica em Minas, que se configurou desde os finais da década de
50, com a geração Complemento e
a "Revista de Cinema".
É curioso constatar como a paixão cinematográfica e a reflexão
sobre cinema continuam firmes
em Belo Horizonte ainda hoje.
Mais do que um mistério, trata-se
de uma tradição viva, conforme
pude verificar conversando com
Geraldo Veloso e Ronaldo Noronha, que foram amigos e discípulos de Maurício Gomes Leite, o
crítico, o cineasta, o jornalista,
que fez a cabeça de muita gente
boa no cinema junto com o seu irmão Ricardo Gomes Leite.
Nascido em Montes Claros,
mesma cidade de Darcy Ribeiro,
Maurício Gomes Leite morreu em
Paris. Segundo Ronaldo Noronha,
morreu amargurado, sozinho,
sem mulher e sem amigos. Maurício Gomes Leite, durante a década
de 50, escrevia na "Revista de Cinema", que é mais ou menos
equivalente ao "Cahiers du Cinema". Foi um dos primeiros críticos a escrever com rigor e entusiasmo sobre Jean-Luc Godard e o
seu filme "Acossado", de 1959,
baseado numa história escrita por
François Truffaut e música de Mozart.
No início da década de 60, Godard em Paris fazia dois filmes por
ano. Em Belo Horizonte o godardiano Maurício Gomes Leite, escrevendo artigos e ensaios, engendra outros godardianos, dentre os
quais se destaca o crítico Ronaldo
Noronha em meio à militância cinéfila responsável pelo fato de cada filme do cineasta franco-suíço
permanecer de cinco a seis semanas em cartaz. Eis o fenômeno da
Belo Horizonte cinematográfica,
se pensarmos que hoje em dia um
filme de Godard não fica nem sequer uma semana em cartaz nos
cinemas de São Paulo.
Simultaneamente à recepção de
Godard, o cineasta Glauber Rocha
quase na mesma época sai de Salvador com destino a Belo Horizonte para conhecer os críticos
mineiros que escreviam na "Revista de Cinema". Possivelmente
Glauber Rocha foi a Belo Horizonte com intuito de conhecer Maurício Gomes Leite, ainda que não
saibamos qual o clima psicológico
do encontro entre o baiano e o mineiro no final da década de 50.
Dois estilos diferentes de cultura:
Bahia e Minas. A época era de JK e
da pós-Pampulha de Oscar Niemeyer em Belo Horizonte.
O crítico de artes plásticas Frederico Morais, da chamada geração Complemento, contou-me
que na década de 50 a conexão Belo Horizonte/Salvador era muito
mais intensa do que a mantida
com Rio e São Paulo. O fato é que
Glauber Rocha não permaneceu
em Belo Horizonte, indo lançar o
Cinema Novo no Rio de Janeiro.
Para o cinemanovista da primeira
geração Gustavo Dahl, o temperamento de Glauber Rocha na época
(Minas era a teoria do cinema; Bahia a práxis cinematográfica) chocou-se com o etos "inglês" do
mineiro, embora o cinema de
Glauber seja mais ligado ao vaqueiro sertanejo do que ao candomblé litorâneo.
A mesma coisa dirá o cineasta
Geraldo Veloso sobre o pessoal da
"Revista de Cinema", que esnobou a visita de Glauber em Belo
Horizonte, achando que ele era
louco, messiânico, meio malvestido, sem esquecer o detalhe fundamental de que Geraldo Veloso e
Ronaldo Noronha consideraram o
crítico Maurício Gomes Leite a
mediação mineira entre Glauber e
Godard.
Em 1964, Maurício Gomes Leite
escreveu sobre "Deus e o Diabo
na Terra do Sol". Até hoje faz parte da memória cinematográfica de
Belo Horizonte o dia em que esse
filme de Glauber dividiu, durante
a exibição, a platéia no cinema:
uns vaiavam, outros aplaudiam
freneticamente.
Em 1978 haveria outra inesquecível passagem de Glauber por Belo Horizonte, vindo de Brasília,
hospedando-se no hotel Normandy, reunindo-se com alguns
intelectuais e gente do partidão,
discorrendo sobre a necessidade
de despertar o nacionalismo no
Exército brasileiro, porque a contradição mais importante não era
a luta de classes no plano interno,
e sim a inserção terceiro-mundista
do Brasil e as armadilhas neo-imperialistas.
É por isso que ainda hoje faz sentido a pergunta de Geraldo Veloso
e Ronaldo Noronha: por que
Glauber teria pousado em Belo
Horizonte a fim de convocar os intelectuais da cidade para a discussão sobre o nacionalismo pró-Exército e a favor do Terceiro Mundo?
Nessa época, segunda metade da
década de 70, é publicado o romanceiro "Riverão Sussuarana",
no qual deparamos com a bela frase enigmática sobre a energia dos
mineiros: "Minas é por cima de
Tóquio". A terra "Geo Center" é
a base da narrativa barroca à Guimarães Rosa de "Riverão Sussuarana": "E se a gente continua cavando além do petróleo, do ouro,
do chumbo, da prata, do uranyum, chegamos no Japão e Minas
Gerais é por cima de Tóquio".
Esta abordagem energética do
nacionalismo que aparece em
"Riverão" ("petróleo sanguinário") retoma o sol do filme "Deus
e o Diabo" e se estende até "A
Idade da Terra", um filme impregnado do cosmo pré-socrático.
Em Glauber o termo nacionalismo
remete sempre à questão colonial,
de modo que, em seu diálogo
mantido com Godard, este também não deixa às vezes de ser considerado um colonizador do cinema latino-americano, não obstante a admiração profunda de Glauber pelo diretor de "Acossado".
Tal sentimento ambivalente explica-se pela efusiva acolhida que a
linguagem de Godard teve entre o
pessoal de cinema.
Afinal, Glauber Rocha queria ser
o cineasta mais amado dos cineastas brasileiros.
Como diz Ronaldo Noronha Äe
o diz de modo sério e convincenteÄ, a pátria de Godard é Belo
Horizonte!
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed.
Espaço e Tempo), entre outros.
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