São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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CINEMA
Atividade crítica sobre obra de Godard atraiu Glauber Rocha para a cidade nos anos 60
Glauber e Godard em BH

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Dois dos melhores intelectuais vinculados ao cinema mineiro, Geraldo Veloso e Ronaldo Noronha, ambos mais ou menos com 53 anos, moradores de Belo Horizonte, concederam-me algumas horas de agradável e inteligente conversa sobre a estética cinematográfica em Minas, que se configurou desde os finais da década de 50, com a geração Complemento e a "Revista de Cinema".
É curioso constatar como a paixão cinematográfica e a reflexão sobre cinema continuam firmes em Belo Horizonte ainda hoje. Mais do que um mistério, trata-se de uma tradição viva, conforme pude verificar conversando com Geraldo Veloso e Ronaldo Noronha, que foram amigos e discípulos de Maurício Gomes Leite, o crítico, o cineasta, o jornalista, que fez a cabeça de muita gente boa no cinema junto com o seu irmão Ricardo Gomes Leite.
Nascido em Montes Claros, mesma cidade de Darcy Ribeiro, Maurício Gomes Leite morreu em Paris. Segundo Ronaldo Noronha, morreu amargurado, sozinho, sem mulher e sem amigos. Maurício Gomes Leite, durante a década de 50, escrevia na "Revista de Cinema", que é mais ou menos equivalente ao "Cahiers du Cinema". Foi um dos primeiros críticos a escrever com rigor e entusiasmo sobre Jean-Luc Godard e o seu filme "Acossado", de 1959, baseado numa história escrita por François Truffaut e música de Mozart.
No início da década de 60, Godard em Paris fazia dois filmes por ano. Em Belo Horizonte o godardiano Maurício Gomes Leite, escrevendo artigos e ensaios, engendra outros godardianos, dentre os quais se destaca o crítico Ronaldo Noronha em meio à militância cinéfila responsável pelo fato de cada filme do cineasta franco-suíço permanecer de cinco a seis semanas em cartaz. Eis o fenômeno da Belo Horizonte cinematográfica, se pensarmos que hoje em dia um filme de Godard não fica nem sequer uma semana em cartaz nos cinemas de São Paulo.
Simultaneamente à recepção de Godard, o cineasta Glauber Rocha quase na mesma época sai de Salvador com destino a Belo Horizonte para conhecer os críticos mineiros que escreviam na "Revista de Cinema". Possivelmente Glauber Rocha foi a Belo Horizonte com intuito de conhecer Maurício Gomes Leite, ainda que não saibamos qual o clima psicológico do encontro entre o baiano e o mineiro no final da década de 50. Dois estilos diferentes de cultura: Bahia e Minas. A época era de JK e da pós-Pampulha de Oscar Niemeyer em Belo Horizonte.
O crítico de artes plásticas Frederico Morais, da chamada geração Complemento, contou-me que na década de 50 a conexão Belo Horizonte/Salvador era muito mais intensa do que a mantida com Rio e São Paulo. O fato é que Glauber Rocha não permaneceu em Belo Horizonte, indo lançar o Cinema Novo no Rio de Janeiro. Para o cinemanovista da primeira geração Gustavo Dahl, o temperamento de Glauber Rocha na época (Minas era a teoria do cinema; Bahia a práxis cinematográfica) chocou-se com o etos "inglês" do mineiro, embora o cinema de Glauber seja mais ligado ao vaqueiro sertanejo do que ao candomblé litorâneo.
A mesma coisa dirá o cineasta Geraldo Veloso sobre o pessoal da "Revista de Cinema", que esnobou a visita de Glauber em Belo Horizonte, achando que ele era louco, messiânico, meio malvestido, sem esquecer o detalhe fundamental de que Geraldo Veloso e Ronaldo Noronha consideraram o crítico Maurício Gomes Leite a mediação mineira entre Glauber e Godard.
Em 1964, Maurício Gomes Leite escreveu sobre "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Até hoje faz parte da memória cinematográfica de Belo Horizonte o dia em que esse filme de Glauber dividiu, durante a exibição, a platéia no cinema: uns vaiavam, outros aplaudiam freneticamente.
Em 1978 haveria outra inesquecível passagem de Glauber por Belo Horizonte, vindo de Brasília, hospedando-se no hotel Normandy, reunindo-se com alguns intelectuais e gente do partidão, discorrendo sobre a necessidade de despertar o nacionalismo no Exército brasileiro, porque a contradição mais importante não era a luta de classes no plano interno, e sim a inserção terceiro-mundista do Brasil e as armadilhas neo-imperialistas.
É por isso que ainda hoje faz sentido a pergunta de Geraldo Veloso e Ronaldo Noronha: por que Glauber teria pousado em Belo Horizonte a fim de convocar os intelectuais da cidade para a discussão sobre o nacionalismo pró-Exército e a favor do Terceiro Mundo?
Nessa época, segunda metade da década de 70, é publicado o romanceiro "Riverão Sussuarana", no qual deparamos com a bela frase enigmática sobre a energia dos mineiros: "Minas é por cima de Tóquio". A terra "Geo Center" é a base da narrativa barroca à Guimarães Rosa de "Riverão Sussuarana": "E se a gente continua cavando além do petróleo, do ouro, do chumbo, da prata, do uranyum, chegamos no Japão e Minas Gerais é por cima de Tóquio".
Esta abordagem energética do nacionalismo que aparece em "Riverão" ("petróleo sanguinário") retoma o sol do filme "Deus e o Diabo" e se estende até "A Idade da Terra", um filme impregnado do cosmo pré-socrático. Em Glauber o termo nacionalismo remete sempre à questão colonial, de modo que, em seu diálogo mantido com Godard, este também não deixa às vezes de ser considerado um colonizador do cinema latino-americano, não obstante a admiração profunda de Glauber pelo diretor de "Acossado". Tal sentimento ambivalente explica-se pela efusiva acolhida que a linguagem de Godard teve entre o pessoal de cinema.
Afinal, Glauber Rocha queria ser o cineasta mais amado dos cineastas brasileiros.
Como diz Ronaldo Noronha Äe o diz de modo sério e convincenteÄ, a pátria de Godard é Belo Horizonte!


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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