São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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Ruínas do microondas

Fabrice Coffrini - 21.mai.2002/France Presse
Bonecos de brinquedo são colocados sobre os corpos justapostos de dois artistas durante a exposição "Living Exhibition", em Neuenburg (Suíça)



Autor de "Comida - Uma História", o professor da Universidade de Londres diz que a obsessão moderna por dietas contraria a história da evolução da humanidade, enfraquece as ligações sociais e leva o indivíduo à solidão


por Felipe Fernandez-Armesto

A gordura pode ser fatal. A obesidade é o grande bicho-papão atual da saúde. As doenças cardíacas e a diabetes tipo 2 [que acomete adultos] surgem em razão da gordura. O perigo causa perplexidade porque é paradoxal. Afinal, vivemos na cultura mais conscientizada e obcecada por dietas da história do mundo. Pensamos em magreza, mas engordamos. Trata-se de mais do que uma peculiaridade cultural -é algo que se opõe à tendência geral da evolução humana. Não é de hoje que nossa espécie se sai muito melhor do que qualquer outro animal terrestre quando o assunto é absorver gordura. Por que isso deu errado, agora?
As explicações mais frequentemente oferecidas pelos especialistas são todas carregadas de viés ideológico. Alguns atribuem a culpa ao capitalismo, que nos teria alimentado à força com açúcar e amido, ou, então, à industrialização e urbanização, que teriam afastado milhões de pessoas da comida saudável. Para outros, fazer regime engorda à medida que perturba o bom funcionamento do metabolismo e encoraja a alimentação baseada em tendências. Alguns culpam a pobreza, outros, a abundância.
Algumas dessas explicações estão equivocadas, e as outras são insuficientes. A gordura é, de fato, um sintoma de perturbações mais profundas em nossos hábitos alimentares. É o sinal externo e visível de um desastre social profundo: o declínio da refeição. Se quisermos derrotar essa ameaça, teremos que encará-la de frente.

Lares sem cozinhas
As refeições feitas em horários certos fazem parte dos rituais mais antigos da humanidade. Os efeitos sociabilizantes do comer em grupo ajudam a nos humanizar. Os pequenos vínculos que unem as famílias são forjados à mesa. A estabilidade de nossos lares provavelmente depende mais de mantermos horários certos para fazermos as refeições em conjunto do que da fidelidade sexual ou do respeito filial. Hoje essa estabilidade corre perigo. A comida está sendo dessocializada. O fim das refeições regulares implica dias desestruturados e apetites indisciplinados.
A solidão da pessoa que consome fast food é incivilizadora. Nas famílias regidas pelo microondas, a vida familiar se fragmenta. O fim do preparo das refeições em casa é algo que foi previsto com tristeza e, ao mesmo tempo, ardentemente desejado. O movimento contrário à cozinha caseira começou há cem anos, sem muita força, entre os socialistas que queriam libertar as mulheres da cozinha e substituir a família pela comunidade mais ampla.
Em 1887, Edward Bellamy [escritor norte-americano (1850-1898), autor do romance utópico "Daqui a Cem Anos - Revendo o Futuro", publicado no Brasil pela ed. Record] imaginou um paraíso composto de lares sem cozinhas. Os trabalhadores encomendariam seus jantares de cardápios impressos em jornais e os comeriam em palácios populares. Vinte anos mais tarde, Charlotte Perkins [escritora feminista norte-americana (1860-1935)] queria transformar a culinária numa atividade "científica": na prática, eliminá-la da vida da maioria das pessoas, enquanto profissionais trabalhando em fábricas produtoras de refeições manteriam os níveis energéticos do mundo trabalhador. Teria sido insuportavelmente enfadonho -afinal, a comida institucional nunca conseguiu superar a comida caseira. Mas, pelo menos, foi concebido com nobreza de espírito, tendo em vista efeitos socializadores.
Agora o capitalismo conseguiu fazer o que o socialismo não foi capaz. Estamos enfrentando uma versão de pesadelo da visão de Perkins: uma distopia na qual a culinária rendeu-se à chamada "conveniência", em que o desmembramento das famílias começa pela geladeira. Os pontos de alimentação imaginados por Bellamy se concretizaram, mas são pontos de venda de fast food fornecida por empresas privadas, e a comida que servem é uma alimentação padronizada e uniforme.


A pandemia da obesidade coincidiu com o declínio da refeição "formal"; um novo tipo de desnutrição surgiu em cena, baseado no excesso de lipídios letais e dietas mortíferas


Os cozinheiros científicos previstos por Perkins são encontrados nas fábricas de alimentos processados, enchendo embalagens descartáveis com gororoba descaracterizada. As pessoas ainda comem em casa, mas os horários das refeições foram fragmentados: diferentes membros da famílias escolhem pratos diferentes para consumir em horários diferentes.
As pessoas já não aprendem a cozinhar em casa. Elas precisam de uma Delia [Smith, chef inglesa, que tem programa de TV e vários best-sellers sobre culinária] para lhes mostrar como preparar um ovo quente ou recebem instruções de Nigella [Lawson, personalidade da culinária britânica], no programa "How to Eat" [Como Comer]. Os horários das refeições foram modificados para adaptar-se aos novos horários de trabalho.
No Reino Unido e nos EUA, as refeições em horários regulares estão desaparecendo da vida das pessoas durante os dias úteis da semana. O almoço desapareceu, dando espaço ao hábito de "pastar" ou comer aos poucos durante períodos prolongados. As pessoas comem ao mesmo tempo em que fazem outras coisas, desviando seus olhares das outras pessoas. Elas fazem lanches na rua, espalhando lixo pelo caminho, poluição olfativa e migalhas que servirão de alimento para ratos. Os funcionários de escritórios saem em busca de sanduíches impessoais, agarram pratos prontos de prateleiras refrigeradas e os consomem às pressas, sozinhos. Antes de sair de casa pela manhã, elas não tomam o café da manhã na companhia de seus entes queridos.
O café da manhã em família é algo que as rotinas sobrecarregadas acabaram por excluir do cotidiano das pessoas. À noite, pode não haver refeição para ser dividida com os familiares -ou, se houver, pode faltar com quem compartilhá-la. Os filhos de pais que trabalham até tarde voltam para casa sozinhos e, esfomeados, devoram macarrão instantâneo ou feijão comido diretamente da lata.

Evolução pré-social
O forno de microondas é um fator de erosão social. Com a ajuda dessa máquina, as pessoas podem facilmente aquecer qualquer prato pronto que estiver à mão. Não é necessário fazer nenhuma consulta ao gosto das outras pessoas da casa. Nenhuma mãe nem pai podem decidir em nome da família inteira. Ninguém na família precisa dobrar-se às decisões de ninguém. Essa nova maneira de se alimentar inverte a revolução culinária que transformou a alimentação num ato sociável e ameaça nos fazer retroceder para uma fase de evolução pré-social.
Parte do resultado da sociedade que se alimenta de lanches é o prejuízo à saúde, à medida que as desordens alimentares se multiplicam. As pessoas distanciadas da camaradagem e da disciplina da mesa comum passam fome ou comem demais, até alcançarem níveis extremos de magreza ou obesidade.
A pandemia da obesidade coincidiu com o declínio da refeição "formal". Um novo tipo de desnutrição surgiu em cena, baseado no excesso de lipídios letais e dietas mortíferas. Ao mesmo tempo em que difundem a gordura, os novos hábitos alimentares multiplicam os micróbios. Quando os alimentos são produzidos em massa, um erro é capaz de intoxicar muitas pessoas. A cada vez que alimentos pré-prontos são descongelados ou que pratos resfriados são aquecidos, é aberto um nicho ecológico para a infestação microbiana.
O movimento em favor dos alimentos crus não constitui alternativa saudável. Os defensores dos alimentos crus parecem preferir os ruminantes aos humanos. Isso é psicologicamente insalubre, por mais saudáveis que possam ser os brotos de feijão: é o primitivismo romântico aliado à ansiedade ecológica. Os urbanóides modernos saem para o restaurante de alimentos crus buscando serem readmitidos no Éden. Quando a elite afro-americana abandona os pratos ricos em lipídios que fazem parte da tradição culinária do sul dos Estados Unidos -couve refogada em banha de porco, pé de porco com feijão-fradinho- em favor dos legumes crus da nova "soul food", a perda de centímetros abdominais se faz acompanhar por um sacrifício cultural. O movimento em favor dos alimentos crus não é uma solução, mas parte do perigo, à medida que divide as famílias segundo gostos e dietas.
Assim, parece que as refeições em família, feitas em horários regulares, são uma tradição que acabou para sempre. Entretanto o futuro geralmente revela ser surpreendentemente semelhante ao passado. Estamos vivendo um desvio temporário, não uma mudança de rumo. A cozinha caseira vai voltar à tona porque é inseparável da humanidade, e o futuro sem ela seria impossível. A alimentação comunitária é essencial à vida social, e vamos acabar por valorizá-la ainda mais em razão da ameaça atual.
É praticamente certo que haverá uma reação em favor da volta dos hábitos alimentares tradicionais, à medida que a moda for se convertendo em saudade e que forem se acumulando as provas dos efeitos nocivos do comer às pressas. Os publicitários já começam a criar uma nova aura sentimental em torno das refeições feitas em família. Alguns alimentos "de conveniência" podem ser adaptados para ser compatíveis com os valores familiares: o tempo de preparo menor pode possibilitar a adoção de horários fixos para as refeições.

Festa amorosa
A volta à mesa de jantar parece ser inevitável porque, como disse Carlyle [Thomas Carlyle, escritor escocês (1795-1881)" certa vez, "a alma é uma espécie de estômago, e a comunhão espiritual é um comer juntos". Parece que somos incapazes de ser sociáveis sem a presença de alimentos. Para as pessoas que apreciam a presença umas das outras, cada refeição é uma festa amorosa. Comemos para entrar em comunhão com nossos deuses. A mesa de jantar discretamente iluminada é nosso ponto de encontro romântico favorito. Alianças diplomáticas são forjadas em banquetes de Estado. Negócios são fechados em almoços de negócios. Os encontros familiares ainda se dão na hora das refeições. O lar é um lugar que tem cheiro de comida sendo preparada.
Se quisermos que nossos relacionamentos dêem certo, teremos que voltar a comer juntos. E, nesse caminho, vamos derrotar a obesidade. Se pararmos de comer constantemente ao longo do dia, vamos parar de comer demais.

Felipe Fernandez-Armesto é historiador e professor da Universidade de Londres. É autor de, entre outros livros, "Milênio" (ed. Record) e "Food - A History" (ed. Macmillan, Inglaterra). Este texto foi publicado no jornal "The Guardian".
Tradução de Clara Allain.


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