São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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De autoria controversa, "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" traria as receitas do gênio renascentista

PALAVRAS ESTRANHAS, TEMPEROS TROCADOS

Gabriel Bolaffi
especial para a Folha

Por mais que Leonardo da Vinci (1452-1519) tenha sido um gênio de mil e uma capacidades -e foi-, passou para a história como pintor, e assim nós o conhecemos. Desenhou inúmeras invenções, entre as quais uma bomba d'água mecânica, um helicóptero, um avião e muitas mais, mas praticamente nenhuma pôde ser experimentada. Publicou o seu famoso "Tratado da Pintura" e também escreveu e desenhou diversos manuscritos, sobre anatomia, sobre o vôo dos pássaros, sobre mecânica e outros mais.
Mas hoje, mesmo que esteja havendo, de uma década para cá, um certo aumento do interesse por Da Vinci, o homem comum ainda o conhece como o pintor da "Gioconda", de "A Última Ceia", de uma "Pietá" e das demais obras que pintou para os seus patrocinadores.
À primeira vista não deveria surpreender o livro de receitas "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" (adaptação e organização de E. Barreiros, 126 págs., R$ 20, ed. Record), atribuído a Da Vinci. Afinal não parece lógico que um gênio dotado de tantas capacidades criativas apreciasse a boa mesa e os modos de aprimorá-la? Contudo, não tendo jamais sido exibido o seu manuscrito original (que integraria o "Codex Romanoff"), as origens do livro são obscuras.
A atual versão impressa origina-se de um texto datilografado que seria a cópia de originais que estariam no museu Hermitage, em São Petersburgo (Rússia). Mas a direção do museu nega a existência de tais manuscritos!
Mas não é só por isso que "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" sabem a comida requentada.
O "Codex Romanoff" não é datado e não se sabe quando teria sido escrito, mas Leonardo morreu em 1519, apenas 27 anos após a descoberta da América. Não teria dado tempo para que tantos ingredientes americanos já estivessem difundidos na Europa e na Itália, como o texto sugere. Nomes de alimentos muitas vezes aparecem trocados ou mesmo errados em muitos textos renascentistas, e, mesmo no presente, há confusões entre línguas.
O milheto, no século 16, foi algumas vezes confundido com o milho, e no presente a chicória, em inglês, é chamada de endívia! Ocorre que do milheto não se faz polenta e, por mais que a difusão do milho tivesse sido rápida -alcançaria a China no final do século 16-, não houve tempo para o preparo de pratos elaborados como a polenta, e ainda por cima a polenta frita, tão frequente nas receitas do livro.
Finalmente, num item da seção "Sobre como se devem dispor à mesa os convidados doentes", há nos manuscritos uma referência aos sifilíticos. Mas esse vocábulo foi cunhado a partir de 1530, data na qual o médico, astrônomo e poeta Gerolamo Francastoro escreveu seu poema "Syphilus", provavelmente depois de 1698.
Ainda assim, embora de autenticidade duvidosa, este livro será interessante para os curiosos sobre a comida da Renascença, posto que as receitas que contém, conquanto não escritas do modo habitual aos mestres cozinheiros da época, são fiéis à comida do tempo.


Gabriel Bolaffi é professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor de "A Saga da Comida" (ed. Record).


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