São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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O Brasil transatlântico


Inserção nas rotas comerciais a partir da segunda metade do século 16 deixaria marcas permanentes no desenvolvimento histórico do país


Kenneth Maxwell

O mais recente trabalho do professor Luiz Felipe Alencastro ["O Trato dos Viventes", Cia. das Letras] chamou a atenção para a importância do espaço do Atlântico Sul que abrange os litorais do Brasil e da África em qualquer explicação histórica sobre a evolução do primeiro período colonial no Brasil.
Anteriormente, Pierre Verger e João José Reis documentaram a importância da conexão entre a Bahia e a África Ocidental, e Charles Boxer, Manolo Florentino e Joseph Miller, entre o Rio de Janeiro e Angola. Mas o Brasil dos primeiros tempos e sua evolução econômica também foram influenciados por desenvolvimentos noutros pontos do Atlântico, assim como em territórios americanos controlados pela Espanha, especialmente as regiões produtoras de prata no México e no grande vice-reinado do Peru.
O fim do isolamento entre as Américas do Norte e do Sul e Europa, África e Ásia foi uma das consequências mais drásticas do estabelecimento e da consolidação do domínio espanhol e português no Novo Mundo. E isso teve um impacto imediato sobre o comércio internacional e as perspectivas de colonização.
Na década de 1570, a prata produzida em Zacatecas e Potosí ajudou a suprir a grande demanda na Europa e na Ásia para cunhagem de moedas, comércio e decoração. O aumento da produção de prata mexicana e peruana nos planaltos continentais da América espanhola teve um impacto imediato sobre os sistemas de comércio e navegação no Atlântico, que haviam evoluído nas últimas décadas do século 15.
Entre 1500 e 1550 o ouro dominou os carregamentos do Caribe para a Europa. Mas já em 1531 as importações de prata em Sevilha superaram o ouro em peso, e em 1561 as importações de prata superaram o ouro em valor. Embora os metais preciosos constituíssem a maior porcentagem do valor das cargas do Novo Mundo, produtos como cochonila, seda, tabaco, índigo e couros se tornaram componentes cada vez mais importantes do comércio da América espanhola com a Europa.

Comércio bilateral
Em troca vinha uma grande variedade de produtos europeus: vinhos, quase todos da região de Sevilha, azeite de oliva e uvas-passas da Andaluzia, assim como tecidos de Castela e Flandres, papel e livros. Além disso, havia uma maior demanda por ferro espanhol, que era embarcado em bruto e trabalhado no México e no Peru. Principalmente vinha mercúrio, indispensável no processo de extração de prata.
Esses produtos eram embarcados em grandes quantidades. A frota de 1597 para a Nova Espanha, por exemplo, carregava 22.050 barris de vinho, 14.120 arrobas de azeite, 14.101 quintais de ferro bruto. A frota de 1600 transportou 3.393 quintais de mercúrio. O comércio entre Sevilha e a América espanhola, portanto, logo se tornou um intercâmbio de produtos nos dois sentidos, dominado por cargas volumosas e valiosas.
Em consequência da consolidação do controle espanhol sobre os territórios do México e do Peru, as ilhas do Caribe foram gradualmente substituídas como núcleos ocidentais de comércio transatlântico. Até 1525, "Caribe" e "Índias" foram virtualmente sinônimos. No final da década de 1530, porém, segundo cálculos dos historiadores franceses Pierre e Huguette Chaunu, a porcentagem do tráfego da Espanha para as ilhas havia caído para 34,8% do total. Navios para a Tierra Firme -termo que abrangia o território principal da América do Sul, mas referia-se principalmente ao comércio com o Peru, que foi efetuado através do porto de Nombre de Dios, no istmo do Panamá- representavam então 38,6%; e Vera Cruz, o porto da Nova Espanha (México), respondia por cerca de 26,6%.
O aumento do volumoso intercâmbio de matérias-primas, além disso, exigia navios maiores, e o valor das cargas trouxe consigo uma ênfase na segurança. A partir de 1559 houve um entendimento tácito entre a França e a Espanha de que, além de uma linha a oeste das ilhas Canárias e ao sul do trópico de Câncer, as potências européias não eram necessariamente restritas pelos padrões de conduta que governavam suas relações na Europa. Como se dizia, "não haveria paz além da linha".
A vantagem do acordo era que os europeus podiam se atacar reciprocamente no Novo Mundo, enquanto ficavam livres da necessidade de declarar guerra entre si na Europa. A desvantagem para os espanhóis foi que isso tornou a defesa imperial uma preocupação primordial nas Américas.

As rotas marítimas
A reação dos espanhóis a essa situação foi instituir um sistema de comboios armados. Uma averia (imposto de comboio) foi imposta aos produtos transportados de e para as Índias já em 1521, com o fim de financiar a construção e o suporte de navios de guerra para proteger as principais rotas atlânticas espanholas e escoltar os mercadores, e em 1565 um sistema de frotas assumiu forma regular.
Os trajetos e a duração das viagens eram governados pelas condições naturais predominantes. Os navios precisavam sair do golfo do México antes da temporada de furacões e afastar-se da costa de Cuba no início do verão. Em geral, no período entre 1550 e 1650, os navios tendiam a deixar a Nova Espanha entre abril e maio e Tierra Firme entre maio e junho; eles convergiam para Havana, que em meados do século substituiu Santo Domingo como principal porto de encontro no Caribe. Aqui as frotas se reuniam e abasteciam-se de água e suprimentos para a viagem à Espanha.
Partindo da Europa, a frota para Vera Cruz deixava San Lucar (o porto de Sevilha) entre maio e junho. A frota que se dirigia para o porto de Nombre de Dios, no istmo geralmente conhecido como Galeones, partia em meados de abril. A travessia durava de cinco a seis semanas em média, e, depois de descarregar, os navios se retiravam para passar o inverno no porto fortificado e abrigado de Cartagena, na costa norte da América do Sul.
O número de naves que chegaram a Vera Cruz variou entre uma média de 33,6 na década de 1681-1690 a 43,9 na década de 1611-1620, e, em Nombre de Dios, 27,3 e 20 nos mesmos períodos. Com o tempo, os navios envolvidos no comércio entre Sevilha e o Novo Mundo aumentaram sua tonelagem de uma média de 240 na década de 1550 para 400 na de 1600.
A defesa das frotas no Novo Mundo era complicada pelo fato de os pontos de desembarque, Vera Cruz e Nombre de Dios, serem separados por uma distância considerável dos fortes militares destinados para protegê-los, em Havana e Cartagena. Nombre de Dios e Vera Cruz tinham sérias desvantagens como portos de atracação permanentes. Ambos eram infestados pela febre e careciam de defesas naturais, assim como de acesso fácil a suprimentos e água potável. A transferência do terminal no istmo de Nombre de Dios para Puerto Bello, em 1598, trouxe pequena melhoria. Em 1637, Thomas Gage chamou Puerto Bello de "cova aberta". O abastecimento das frotas espanholas que voltavam à Europa dependia portanto cada vez mais de Havana.

As trilhas de terra
As rotas terrestres não eram menos precárias. A trilha de mulas acidentada que atravessava o istmo do Panamá entre o Caribe e o Pacífico era vulnerável a ataques estrangeiros. Índios hostis e bandos de escravos fugitivos vagavam pela região. No entanto foi por essas trilhas e através desses portos inseguros que 50% a 60% do valor do comércio entre a América espanhola e a Europa passou entre 1540 e meados do século 17.
Com pouco mais de cem quilômetros, o estreito istmo do Panamá possuía o maior porto atlântico do Novo Mundo e o segundo maior no Pacífico. E da defesa e do funcionamento adequados dessa ligação precária dependia a remessa para a Espanha da prata e, em consequência, todo o complexo dos mercados financeiros europeus, das fortunas nacionais e privadas baseadas no sistema comercial atlântico, assim como a prata necessária para os portugueses em seu comércio asiático. O istmo do Panamá, portanto, tinha uma enorme importância estratégica e política, fato reconhecido pela Espanha e por seus inimigos. Navios privados franceses tomaram e incendiaram Cartagena e Havana em 1559. Sir Francis Drake saqueou Cartagena em 1585. A Espanha se empenhou a partir de então para garantir que seus pontos fortes fossem tão inexpugnáveis quanto possível. As frotas espanholas e a transferência de metais preciosos do México e do Peru para a Espanha incluíam apenas alguns setores da conexão comercial que constituía o sistema atlântico no século 16.

Devastação
A cidade-fortaleza de Cartagena, por exemplo, embora fosse central para a defesa dos comboios, também era o principal ponto de escoamento de uma região que cobre a atual Colômbia e se estende ao extremo norte dos Andes. Cartagena era ligada por mar e pelos rios Magdalena e Cauca ao interior. Canoas com remadores índios transportavam passageiros e cargas rio acima até Zaragoza, onde tropas de mulas faziam a ligação entre o rio e Bogotá ou Antioquia. Depois da conquista dessa região no final da década de 1530, que os espanhóis chamaram de Nova Granada, a área tornou-se o centro da produção de ouro na América espanhola.




O interesse português pela produção de açúcar datava do século 15, com a disseminação da cana nas ilhas atlânticas



Nos vales tropicais o impacto do trabalho nos garimpos e da doença devastou as populações indígenas. Cartagena, consequentemente, se tornou o principal porto de atracação para navios negreiros que partiam da África, e Antioquia passou a ter possivelmente a maior concentração de escravos africanos na América espanhola.
O que parece ter ocorrido, no entanto, em consequência do crescimento dos complexos de mineração de prata nos planaltos continentais e do desenvolvimento do sistema de frotas armadas no Atlântico, foi uma certa especialização segundo linhas de vantagem comparativa dentro do sistema comercial atlântico que havia evoluído ao longo do meio século anterior.
Isso, por sua vez, teve grandes consequências para os arquipélagos do Atlântico que tinham sido incorporados anteriormente ao complexo açúcar-escravo afro-atlântico no final do século 15. Empreendedores nas ilhas atlânticas, como Canárias, Tenerife e Açores, achavam cada vez mais rentável passar do açúcar ao contrabando, à reexportação de produtos franceses e ingleses ou ao cultivo de produtos agrícolas como trigo e uvas. A produção de açúcar nas ilhas do golfo da Guiné, além disso, fora seriamente perturbada pelas revoltas escravas em São Tomé. E a produção de açúcar no Caribe, que atingira seu apogeu na década de 1530, também enfrentava problemas.

Restrições espanholas
Alguns produtos de alto valor, como cochonila, continuaram sendo componentes importantes do comércio atlântico espanhol, e Cuba tornou-se uma fonte de carne e couro devido à importância de Havana como depósito de suprimentos para os galeões que rumavam para a Europa. Mas o desenvolvimento do sistema de frotas espanhol foi na verdade muito prejudicial à indústria do açúcar em Hispaniola. Em 1544, os espanhóis proibiram que navios com menos de cem toneladas participassem do comércio entre o Caribe e a Europa.
A maior parte dos navios de açúcar, porém, era pequena e veloz, e a demora do sistema de frotas era altamente desvantajosa para os comerciantes de açúcar, que queriam levar seus produtos ao mercado na Europa o mais rapidamente possível para obter o maior retorno.
O beneficiário das dificuldades dos produtores espanhóis no Caribe foi o Brasil, onde os portugueses donos de engenhos e de navios não sofreram as restrições do sistema de frotas, e cujo acesso à Europa era mais favorável que o das ilhas caribenhas. O primeiro engenho de açúcar no Brasil teria se estabelecido em São Vicente, no sul do Brasil, na década de 1530. O capitalista flamengo Erasmus Schetz teve um engenho que funcionou ali em 1540. Mas depois de 1570 a produção de açúcar brasileira obteve uma importante vantagem comparativa nos mercados europeus de que não havia desfrutado antes, e a partir de 1570 ocorreu uma espetacular expansão da produção de açúcar no Nordeste do Brasil, especialmente em Pernambuco.
Entre 1570 e 1610, o número de engenhos de açúcar ao norte da foz do rio São Francisco aumentou de 24 para 140. Na região central, especialmente na Bahia, de 31 engenhos, em 1570, o número cresceu para 50 em 1610. E ao sul de Porto Seguro, onde houvera cinco engenhos funcionando em 1570, havia 40 em 1610.
O interesse português pela produção de açúcar datava, é claro, da introdução com êxito da cana nas ilhas atlânticas durante o século 15, e os produtores brasileiros puderam aproveitar as redes de distribuição e a aceitação do consumidor conquistada pelo açúcar das ilhas atlânticas portuguesas.

Interpenetração
Mas a partir da década de 1570 os padrões comerciais no Atlântico refletiram as transformações que haviam ocorrido tanto na América espanhola quanto no Brasil desde a chegada dos europeus. A prata dominava o setor espanhol; o açúcar, o português. As conexões entre os dois setores eram mais íntimas do que poderia parecer a princípio, e pelo menos parte do motivo para o sucesso do Brasil depois de 1570 foram as restrições institucionais sob as quais trabalhavam seus concorrentes no Caribe.
Além disso, havia muita interpenetração entre as rotas comerciais. O comércio de escravos, principalmente, ligava as áreas dominadas pelos espanhóis às portuguesas, já que os escravos africanos, obtidos nas regiões litorâneas da África controladas por Portugal, continuavam em demanda em toda a América espanhola, especialmente nas minas de ouro de Buritica, em Nova Granada. Mas o resultado geral dos novos desenvolvimentos foi incorporar o Brasil firmemente ao sistema afro-atlântico que havia surgido no século anterior nos arquipélagos do Atlântico e no Caribe e fixar no território português na América do Sul instituições sociais, raciais e econômicas que deixariam marcas permanentes no desenvolvimento histórico do Brasil.

Kenneth Maxwell é historiador inglês e um dos principais brasilianistas da atualidade. É autor de "A Devassa da Devassa" e "Marquês de Pombal -Paradoxo do Iluminismo" (ambos pela ed. Paz e Terra). Escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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