São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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Piadas de comunistas


Ambiciosos, "Comunidade", de Hardt e Negri, e "Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa", de Zizek, oscilam entre a paródia e a frivolidade

Kevin Zhao - 19.ago.09/Reuters
Soldados participam de ensaio para espetáculo musical da celebração dos 60 anos da República Popular da China, em Pequim

JOHN GRAY

Uma das ideologias mais desacreditadas da história está voltando à tona -não como força política, mas como commodity no mercado. Não mais restrita a reuniões deprimentes de trotskistas envelhecidos ou a discussões longas e entediantes em seminários acadêmicos, o comunismo foi reinventado como uma espécie de número de cabaré intelectual.
O maior erro do século 20 foi promovido a entretenimento sofisticado, com um neobolchevismo da moda prometendo ao consumidor "blasé" uma experiência instigante de convivência com ideias proibidas.
"Commonwealth" [Comunidade] é o último de uma trilogia de livros coescrita pelo professor norte-americano de literatura Michael Hardt e por Antonio Negri, acadêmico e ativista político italiano preso em 1979 por alegado envolvimento no sequestro e assassinato do ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro.
Essas acusações foram arquivadas, mas outras levaram Negri a passar anos no exílio e na prisão. O primeiro volume da trilogia, "Império" (2000), causou sensação no mundo editorial e foi saudado como versão nova e radical da teoria marxista.
Na verdade, o livro devia mais às teorias superficiais de globalização que estavam em voga na época.
De acordo com Hardt e Negri, um novo sistema internacional havia emergido: uma cosmópole sem fronteiras, na qual os Estados soberanos tinham se tornado obsoletos.
É uma visão que lembra a fantasia de Thomas Friedman sobre o mundo plano apresentada em "O Lexus e a Oliveira" [ed. Objetiva], lançado no mesmo ano que "Império".
Como Friedman, Hardt e Negri igualaram a globalização à americanização e em nenhum momento imaginaram que o processo pudesse tropeçar ou parar.
A governança supranacional que estava tomando forma era a Revolução Americana, em letras maiúsculas. Um novo proletariado multicultural estava sendo formado em todo o mundo, argumentaram em "Multidão - Guerra e Democracia na Era do Império" (2004), com o poder de tornar realidade o sonho de comunismo de Marx.

Monty Python
Último volume da trilogia, "Comunidade" [ainda sem previsão de lançamento no Brasil] acrescenta muito pouco aos anteriores.
Há algumas seções que supostamente tratam da queda da hegemonia americana, mas nada que fale de seu impacto real, que é o de recriar um mundo descentralizado de várias grandes potências que competem entre si, mais ou menos como faziam as grandes potências no final do século 19.
O estilo continua a ser um misto de jargão estrangulado e discurso de enaltecimento que provoca arrepios.
"A noção de vir a ser social", nos informam os autores, "sugere a possibilidade de deixar a antimodernidade do indigenismo, partindo na direção da altermodernidade indígena".
Passando de obscuridade intra-acadêmica para poesia ruim, no final do livro eles escrevem: "O processo de instituir a felicidade será constantemente acompanhado de risos...
Enquanto estamos instituindo a felicidade, nosso riso é tão puro quanto a água".
É teoria radical no idioma do Monty Python. Os dilemas dolorosos da política são varridos para longe, e tudo o que resta é baboseira do tipo que visa a fazer o leitor se sentir bem, disfarçada de análise neomarxista.

Esquerda moderada
É um alívio passar dessa relação de noções superficiais e excessivamente simplificadas para "First as Tragedy, Then as Farce" [Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa, a ser lançado no Brasil no segundo semestre de 2010 pela Boitempo], de Slavoj Zizek.
Apesar de todas as suas falhas, este livro deixa claro que a revolução necessariamente envolve doses grandes de sofrimento e coerção.
Filósofo, teórico psicanalítico e crítico de cinema, o esloveno Zizek virou presença constante e irritante no establishment de esquerda, um provocador prolífico cujo objetivo principal parece ser confundir seus leitores mais ingênuos.
Ao longo do livro, seu alvo não é a direita, mas a esquerda "soft", democrática, reformista, que imagina que as metas igualitárias do comunismo possam ser alcançadas por meios liberais, não repressivos.
Zizek trata essa visão com desprezo causticante, escrevendo em tom inequívoco que "um dos mantras da esquerda pós-moderna é que devemos deixar para trás de uma vez por todas o "paradigma jacobino-leninista" do poder ditatorial centralizado".
"Mas talvez tenha chegado a hora de virar esse mantra do avesso. Hoje, mais que nunca, devemos insistir sobre a eterna "Ideia do Comunismo" -justiça igualitária implacável, terror disciplinário, voluntarismo político e confiança no povo".
Em outras palavras, a ditadura é indispensável para o projeto comunista. Coerção e terror aplicados às massas não são desvios de uma visão humanitária impostos por líderes tirânicos que atuam em condições atrasadas.
Lênin e Stálin foram genuínos mestres da estratégia revolucionária que sabiam que suas metas jamais seriam alcançadas sem o terror organizado.
Nisto, mesmo que em nada mais, Zizek tem razão inquestionável. No mundo real, as revoluções comunistas não são concretizadas por meio do discurso -elas requerem pelotões de fuzilamento, polícias secretas e gulags.
Mas isso é o mais perto que Zizek chega das realidades da revolução. Ele passa por cima do fato de que em nenhum lugar o terror sistemático realizou as metas utópicas do comunismo e que, em vez disso, criou formas novas e piores de tirania, ao mesmo tempo dizimando milhões de pessoas.

Terror e alegria
Quando é aplicado às condições contemporâneas, seu alardeado leninismo é cômico. "Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa" difere dos argumentos excessivamente simplificados apresentados pelos autores de "Comunidade" sobretudo em razão do entusiasmo alegre com que Zizek defende a necessidade do terror.
Mas, como Hardt e Negri, Zizek não consegue identificar nenhuma força social que deseje o comunismo de fato.
Apesar de toda sua insistência sobre o pragmatismo implacável -"Se você conseguir chegar ao poder, agarre-o", ele declarou em entrevista num dia desses-, ele está o mais longe que se pode imaginar de qualquer coisa que possa ser descrita como política séria.
A frivolidade essencial desse leninismo atrasado é um indício que aponta para as verdadeiras razões do reavivamento do pensamento esquerdista radical no momento atual.
A crise financeira global deixou muitas pessoas assustadas e confusas. Confrontadas com os fracassos do capitalismo, elas buscam alternativas -e aqui o próprio capitalismo aparece como salvação.
Uma característica do hipercapitalismo dos anos recentes é o fato de abolir a memória histórica. Hoje, para a maioria das pessoas, a miséria e a decadência do comunismo são coisas tão distantes delas quanto a vida sob o sistema feudal.
Quando Zizek e outros como ele defendem o comunismo -"a hipótese comunista", como a chamam-, eles podem passar por cima do fato de que a hipótese já se mostrou falsa inúmeras vezes, em dezenas de países diferentes, e podem fazê-lo porque sua plateia nada sabe sobre o passado.
Vem daí a atração exercida pelas obras de Zizek, que estão sendo consumidas avidamente por jovens em boa parte da Europa e mais além dela.
Quer seja no discurso constrangedor de Hardt e Negri ou no leninismo paródico de Zizek, o reavivamento intelectual do comunismo pode ser mais bem compreendido em termos da capacidade do capitalismo de produzir espetáculos compensatórios.
O comunismo dos tempos atuais, enfeitado pela mídia, guarda tão pouca relação com a vida real quanto a "TV realidade" -talvez ainda menos.
Mas, precisamente por sua irrealidade, o espetáculo neobolchevique tem uma função definida a cumprir na sociedade contemporânea.
O cabaré cômico do comunismo do século 21 cumpre a função que sempre foi do entretenimento. Desvia a atenção daqueles que o acompanham, impedindo-os de refletir sobre seus próprios problemas, que, secretamente, desconfiam que talvez sejam insolúveis.


JOHN GRAY é filósofo inglês e professor aposentado da London School of Economics. É autor de "Missa Negra" e "Al Qaeda e o Que Significa Ser Moderno" (ed. Record).
Este texto foi publicado no "Independent".
Tradução de Clara Allain.

COMMONWEALTH
Autores: Michael Hardt e Antonio Negri
Editora: Harvard University Press (EUA)
Quanto: US$ 35 (R$ 60, 434 págs.)

FIRST AS TRAGEDY, THEN AS FARCE
Autor: Slavoj Zizek
Editora: Verso Books (Reino Unido)
Quanto: 7,99 (R$ 23, 168 págs.)


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