São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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POLÍTICA
Gore Vidal descreve como as vigilâncias eletrônica e política de combate às drogas e ao terrorismo estão pondo em risco os direitos constitucionais dos americanos
A guerra interna

GORE VIDAL
especial para a "Vanity Fair"

A maioria dos americanos de certa idade consegue recordar exatamente onde estava e o que estava fazendo no dia 20 de outubro de 1964, quando foi divulgada a notícia da morte de Herbert Hoover (1874-1964, 31º presidente dos EUA, entre 1929-33). O coração e a mente da nação pararam. Mas quantos se recordam de quando e como tomaram consciência, pela primeira vez, da revogação de alguma das dez emendas à Constituição?
Para mim, foi em 1960, numa festa em Beverly Hills, que recebi a má notícia do ator alegre por natureza Cary Grant. Ele acabara de vir de Nova York. Contou que pegara sua passagem num balcão da companhia aérea no aeroporto de Idlewild, de estilo magicamente antiquado, cujo próprio nome refletia nossa condição (em inglês, "idle" significa ocioso, e "wild", selvagem).
"Havia estas garotas lindas atrás do balcão, e estavam felicíssimas em me ajudar, ou pelo menos foi o que disseram. Assinei alguns autógrafos. Pedi a uma das moças que me desse minhas passagens. De repente ela ficou muito séria. "O senhor tem algum documento de identificação?', perguntou." (Alguns amigos bem informados me disseram que a "premissa" dessa história é, no momento, a base de uma série de comerciais de TV do cartão de crédito Visa, que eu não vi.) Eu estaria exagerando se dissesse que senti um friozinho na espinha naquela noite em Beverly Hills, anos atrás. Na verdade, achamos graça, apenas. Mas, por um instante, me perguntei se o futuro não teria pisado de leve sobre nossa vala comum.
Curiosamente, foi mais uma vez Cary Grant quem me deu, com a leveza de sempre, a notícia de que a própria privacidade vive suspensa por um fio tênue. "Um amigo que está em Londres me ligou hoje de manhã", disse. Era 4 de junho de 1963. "Geralmente usamos codinomes, mas desta vez ele se esqueceu. Então, depois de ele perguntar por mim, eu disse ao aparelho: "Saia da linha, St. Louis. Você também, Milwaukee', e assim por diante. As telefonistas adoram ficar ouvindo as conversas alheias. De todo modo, depois de conversarmos o que tínhamos que conversar, ele perguntou: "Quais são as últimas fofocas de Hollywood?'. Eu lhe disse: "Lana Turner continua tendo um caso com aquele jogador de beisebol negro'. Uma das telefonistas que ouviam nossa conversa soltou um grito: "Oh, não!'."
Tempos de inocência. Hoje em dia, enquanto a mídia e o Congresso cantam seu hino, "brilha, brilha, pequeno Starr, como nos perguntamos o que você é" (brincadeira baseada numa canção de ninar: "Twinkle, twinkle, little star, how I wonder what you are"), presume-se que o presidente atual não tenha direito algum à privacidade, já que, você entende, a polêmica toda gira em torno do sexo, não da verdade, coisa que nunca rendeu muito na vida política. Enquanto o nome de Cary Grant lhe garantia uma platéia de telefonistas admiradoras, nós, outros, éramos geralmente ignorados. Isso naquela época.
Hoje em dia, em meio às guerras gêmeas, que nunca serão ganhas, contra as drogas e o terrorismo, 2 milhões de conversas telefônicas são interceptados por agentes da lei todo ano. Quanto ao famoso "local de trabalho", no qual tantos americanos se vêem confinados por força da necessidade, "o abuso diário das liberdades civis... é uma vergonha nacional", segundo um relatório de 1996 da União Americana em Defesa das Liberdades Civis (Aclu).
Um dos fatos constatados no relatório é que entre 1990 e 1996 o número de trabalhadores submetidos à vigilância eletrônica aumentou de 8 milhões por ano para mais de 30 milhões. Simultaneamente, os empregadores escutam, por meio de grampos, estimados 400 milhões de conversas telefônicas por ano -algo como 750 por minuto. Em 1990, as grandes empresas submeteram 38% de seus funcionários a exames de urina para detectar o possível uso de drogas.
Em 1996, mais de 70% dos funcionários foram sujeitos a esse tipo de interferência. O recurso à lei não tem dado resultados encorajadores. Na verdade, a Suprema Corte da Califórnia vem defendendo o direito dos empregadores públicos de aplicar exames para detecção de uso de entorpecentes não apenas aos funcionários encarregados de pilotar aviões a jato ou proteger nossas fronteiras contra o imperialismo panamenho, mas até àqueles que apenas passam um pano no chão.
A corte também decidiu que os governos podem submeter candidatos a empregos a exames de detecção de drogas e álcool. A decisão foi inspirada pela iniciativa da cidade-Estado de Glendale, Califórnia, que queria submeter a exames todos os funcionários que eram candidatos a promoções. Foi aberto um processo contra a prefeitura de Glendale, baseado na alegação de que ela estaria violando a Quarta Emenda Constitucional, que protege os cidadãos contra "revistas e apreensões injustificáveis".
A posição de Glendale foi avalizada pela Suprema Corte da Califórnia, mas o juiz Stanley Mosk escreveu uma nota de discordância: "Os exames para a detecção de drogas representam uma significativa violação adicional dos direitos básicos de privacidade e dignidade dos candidatos... e a prefeitura não conseguiu demonstrar que tal violação se justifica no caso de todos os candidatos a quem é oferecido um emprego".

No último ano ou dois tive duas revelações ao estilo Cary Grant, mas consideravelmente mais graves do que o que acontecia nos bons e velhos tempos em que vivíamos relativamente livres do Estado. Um conhecido casal de atores e seus dois filhos vieram me fazer uma visita no verão. Foram tiradas fotos dos dois filhos, de quatro e seis anos de idade, brincando no mar, nus. Quando o casal voltou a sua casa, em Manhattan, o pai deixou os negativos numa farmácia para serem revelados. Mais tarde, recebeu um telefonema ansioso do farmacêutico, felizmente amistoso: "Se eu revelar estas fotos terei que registrar queixa contra você, e você pode pegar cinco anos de cadeia por prática de pornografia infantil". A guerra contra a pornografia infantil está se intensificando, embora Wardell Pomeroy, o colega de Alfred Kinsey em suas pesquisas sexuais, tenha me assegurado, certa vez, que a incidência de pedofilia é tão pequena que mal chega a figurar na tela estatística -é mais ou menos comparável à dos rapazes da zona rural e seus amigos animais.
Sempre foi um marco da liberdade americana o fato de que, diferentemente dos países que vivem sob constante vigilância napoleônica, não somos obrigados a portar documentos de identificação para mostrar a policiais e burocratas curiosos. Mas agora, devido ao Terrorismo, cada um de nós é barrado em aeroportos e obrigado a mostrar um documento identificador que deve incluir uma foto (algo que, como Alá sabe muito bem, nenhum terrorista jamais ousaria falsificar).
Em Chicago, depois de uma entrevista com Studs Terkel, me queixei do fato de que, como não tenho carteira de motorista, sou obrigado a carregar um passaporte em meu próprio país, como se fosse cidadão da antiga União Soviética. Terkel tinha o mesmo problema. "Me pediram minha identidade -com foto- num aeroporto no sul do país, e eu disse que não tinha nada a não ser o jornal da cidade, com uma grande foto minha na primeira página, que mostrei a eles, mas disseram que isso não era um documento de identidade. Mas acabaram por se cansar de mim e me deixar subir no avião."
Recentemente venho repassando estatísticas sobre terrorismo (em geral, respostas diretas a crimes cometidos por nosso governo contra estrangeiros -se bem que, ultimamente, também tenha aumentado o número de crimes federais contra nossa própria população). Aviões comerciais americanos foram destruídos em pleno vôo por terroristas em apenas duas ocasiões em 12 anos; nenhum dos dois vôos havia partido dos Estados Unidos. No entanto, para prevenir uma repetição desses crimes, centenas de milhões de viajantes estão sendo sujeitados a revistas, apreensões e atrasos.

O molestamento de cidadãos, em seus aspectos mais avançados, ainda se encontra em fase incipiente. Apesar disso, novos artefatos, cada vez mais caros, estão chegando ao mercado -e, dentro em breve, a um aeroporto perto de sua casa-, incluindo a máquina dos sonhos de todos os adolescentes em fase de atividade hormonal aguda. O sistema "Body Search" (Revista Corporal) de Detecção de Contrabandos, criado pela American Science and Engineering, envia um raio X que atravessa as roupas para revelar o corpo nu da pessoa, e essa imagem, ampliada, pode ser projetada numa tela para ser sujeita a análise lasciva.
O orgulhoso fabricante do aparelho se gaba de que a imagem é tão nítida que até mesmo umbigos podem ser vistos piscando para os voyeurs, a não ser que estejam repletos de cocaína e recobertos por fita adesiva. Segundo relatório da Aclu, o sistema também inclui uma "opção de zoom, ativada por "joystick'", com a qual o operador pode ampliar partes interessantes da imagem.
Enquanto isso, a vítima permanece, conforme observa orgulhosamente a American Science and Engineering, totalmente vestida. Os pedidos do aparelho devem ser endereçados ao reverendo Pat Robertson e serão atendidos na ordem de chegada, e o orgulhoso proprietário de um "Body Search" será automaticamente incluído no banco de dados de Degenerados Sexuais, classe B, do FBI.
Enquanto isso, em fevereiro de 1997, a comissão "Al" Gore solicitava a aquisição de 54 aparelhos "high tech" de detecção de bombas, conhecidas como CTX 5000. Trata-se de scanners de bagagem que custam por baixo US$ 1 milhão cada e cuja manutenção vai custar US$ 100 mil por ano, cada um. Infelizmente, o CTX 5000 é capaz de visualizar 250 malas por hora, o que significaria que seriam necessários talvez 1.000 deles para "proteger" os passageiros nos principais aeroportos contra aqueles dois supostos terroristas que possivelmente -ou possivelmente não- irão atacar outra vez nos próximos 12 anos, como fizeram duas vezes nos 12 anos passados. Como o sistema atual de exame de bagagens parece ser razoavelmente eficiente, por que sujeitar os passageiros a horas de atraso, sem falar em mais de US$ 54 milhões de custos para a compra dos aparelhos?
No momento, são aplicadas diretrizes um tanto quanto confusas para ajudar os funcionários das companhias aéreas a reconhecer à primeira vista alguém que se encaixa no "perfil" de um terrorista potencial. Evidentemente, qualquer pessoa de pele mesmo ligeiramente amorenada e que tiver um "fez" (um tipo de boina usada com frequência por homens do Oriente Médio) na cabeça é detida no ato. Para os terroristas que não parecem encaixar-se no "perfil", os órgãos governamentais relevantes oferecem as seguintes dicas sobre comportamentos que traem a presença de malfeitores.
Um astuto traficante de drogas geralmente é a primeira pessoa a sair do avião, a não ser, é claro, que seja realmente astuto e opte por ser o último a descer. Os supercriminosos mais experientes muitas vezes preferem ficar no meio. Loiras jovens e desacompanhadas muitas vezes são usadas, à sua revelia, para transportar bombas ou drogas que lhes são entregues por sósias de Omar Shariff em sinistros bazares orientais.
Ao chegarem na terra da liberdade, enormes cães farejadores de drogas serão soltos em cima delas. Existe um "porém" infeliz: esses detetives caninos frequentemente interpretam como portadoras de drogas mulheres que estão menstruadas -o tipo de situação que quebra qualquer gelo e provoca risadas alegres em toda a área da alfândega.
Parece que uma dica totalmente segura de comportamento é o nervosismo do passageiro -se bem que o supercriminoso, mais uma vez, pode também aparentar estar calmo até demais. De qualquer maneira, seja qual for a regra maluca aplicada, o agente da alfândega tem todo direito de tratar qualquer pessoa como criminosa sem dispor de prova alguma -de apreender e revistar sem, é claro, passar pelos devidos procedimentos previstos em lei.

Drogas. Se não existissem, nosso governo as teria inventado, para poder proibi-las e assim tornar boa parte da população vulnerável à detenção, prisão, apreensão de bens e assim por diante. Em 1970, escrevi no "The New York Times":
"É possível acabar com a maior parte da dependência de drogas nos Estados Unidos num prazo de tempo muito curto. Seria preciso simplesmente fazer com que todas as drogas fossem disponíveis aos interessados e vendê-las ao preço de custo. Cada droga seria vendida com um rótulo que detalhasse com precisão o efeito -bom ou mau- que ela exerce sobre quem a toma. Para isso seria necessária uma honestidade heróica. Não se poderia dizer que a maconha gera vício ou traz perigos, quando ela não faz nenhuma dessas duas coisas, como sabem milhões de pessoas -diferentemente do "speed', que mata de morte extremamente desagradável, ou da heroína, que pode produzir dependência e da qual é difícil se livrar. Ao lado de exortações e avisos, poderia ser salutar para nossos cidadãos recordarem (ou serem informados pela primeira vez) que os Estados Unidos foram criados por homens que acreditavam que cada pessoa tem o direito de fazer o que quiser com sua própria vida, desde que não crie obstáculos à busca de felicidade de seus próximos (se a idéia de felicidade desses próximos consiste em perseguir outras pessoas, isso realmente confunde as coisas um pouquinho)". (...)
A mídia vive deplorando a cultura das drogas e culpando diversos países estrangeiros, como a Colômbia, por obedecerem à lei férrea da demanda e oferta à qual nós, enquanto nação e enquanto noção, juramos fidelidade eterna. Também nos comprazemos no uso de metáforas militares. Os czares lideram nossos exércitos em guerras contra os traficantes e os usuários de drogas. Tão grande é essa emergência permanente que não podemos mais nos dar ao luxo de tolerar coisinhas como o habeas corpus e a obediência ao processo da lei.
Em 1989, o ex-czar das drogas e imbecil de programas de entrevista na TV William Bennett sugeriu a abolição tanto "de jure" quanto "de facto" do habeas corpus em processos ligados a drogas, além de (não estou inventando isto) a decapitação em público dos traficantes. Um ano mais tarde, o aiatolá Bennett declarou: "Não encontro mérito algum nos defensores da legalização das drogas. O fato puro e simples é que o uso de drogas é errado. E, em última análise, o argumento moral é o mais contundente".
É claro que aquilo que esse perigoso comediante considera moral, James Madison e o estadista e redator das emendas à constituição George Mason, de Virgínia, teriam considerado bobagem perigosa, especialmente quando sua suposta moralidade abole o presente que eles legaram a todos nós, as dez emendas à Constituição americana, que tratam dos direitos fundamentais dos cidadãos desta nação. Mas Bennett não está só em sua loucura. Em 1984, um assistente especial do presidente para a questão do abuso de drogas declarou: "Não é possível deixar passar uma droga e dizer: "Esta aqui não tem problema'. Nós traçamos uma linha demarcatória. Não existem drogas leves'".
Lá se vai o Tylenol-3, que contém codeína. Quem diria que paliativos cujo uso se originou há tanto tempo poderiam tão facilmente tomar o lugar da única religião nacional que os Estados Unidos jamais tiveram de fato, o anticomunismo? (...)
Quando o sr. e a sra. Clinton vieram a Washington, verdes como a grama das colinas do Arkansas e ainda com os rostos ruborizados por seus mergulhos em rios de corredeiras ("whitewater", referência ao caso de supostas operações imobiliárias fraudulentas realizadas nos anos 70 e 80 pelo casal Bill e Hillary Clinton), tentaram dar à população americana um sistema de saúde desse tipo, um pequeno presente simbólico em troca de todo o dinheiro pago em impostos e gasto na "defesa" contra um inimigo que, malandro, desabou enquanto olhávamos para o outro lado. Diante da primeira sugestão de que já era hora de nos juntarmos ao mundo civilizado, teve início uma vasta conspiração para impedir a criação de qualquer tipo de serviço nacional de saúde. Ela não foi obra apenas da "direita", como sugeriu a sra. Clinton. As seguradoras e empresas farmacêuticas se uniram a elementos da Associação Médica Americana para acabar para sempre com qualquer idéia de que pudéssemos ser um país que supre seus cidadãos de qualquer coisa em matéria de saúde.
Um dos problemas de uma sociedade tão rigidamente controlada quanto a nossa é que recebemos tão poucas informações sobre o que estão pensando e sentindo realmente aqueles de nossos compatriotas a quem nunca iremos conhecer ou ver. Soa como paradoxo, quando se leva em conta que a maior parte da política feita hoje em dia envolve sondagens constantes de opinião sobre o que parecem ser todos os temas concebíveis, mas, como sabem os políticos e os institutos de pesquisas, é a formulação dada à pergunta que vai determinar a resposta. Além disso existem áreas imensas, como a zona rural do país, que são desconhecidas pelos donos das grandes empresas às quais pertencem os meios de comunicação que gastam bilhões de dólares para fazer sondagens visando a eleição de seus advogados para altos cargos.

Ruby Ridge, Waco, Oklahoma City. Três alarmes tocados desde um interior sobre a qual a maioria de nós que habitamos as grandes cidades nada sabe. Qual seria a causa da ira dos residentes rurais? Em 1996 houve 1.471 fusões de grandes empresas norte-americanas, no interesse da chamada "consolidação". Foi o maior número de fusões na história do país e representou o pico de uma tendência que vinha crescendo no mundo da agricultura desde o final dos anos 70. Uma coisa que tinham em comum as vítimas de Ruby Ridge e Waco e Timothy McVeigh, que cometeu assassinato em massa em seu nome, em Oklahoma City, era a convicção de que o governo dos EUA é seu inimigo implacável e que sua única salvação consiste em esconder-se em local isolado ou numa comunidade que gira em torno de uma figura messiânica ou, para vingar o assassinato a sangue frio de dois membros da família Weaver, em Ruby Ridge, cometido por agentes federais, em explodir o edifício que abrigava a sede do órgão responsável pelos assassinatos.
Para fazer justiça à mídia, ela tem sido inabitualmente generosa conosco ao tratar do tema das crenças religiosas e políticas dos dissidentes rurais. Existe uma "Nação Ariana" neonazista. Há fundamentalistas cristãos conhecidos como "Identidade Cristã" ou, alternativamente, como o "Israelismo Britânico". Toda essa baboseira de inspiração bíblica deitou suas raízes mais fundas nos setores cujas terras agrícolas foram arrebatadas na última geração. Desnecessário dizer que os demagogos cristãos atiçam as chamas do ódio racial e sectário na televisão e, ilegalmente, injetam dinheiro das igrejas em campanhas políticas.
Hoje, teorias conspiratórias crescem no interior dos EUA como demências precoces de floração noturna, e seus admiradores são, invariavelmente, alvos de zombaria por parte de -pasmem!- os próprios conspiradores de fato. Joel Dyer, em "Harvest of Rage: Why Oklahoma City Is Only the Beginning" (Colheita de Ira: Por que Oklahoma City É Apenas o Começo), trouxe à tona algumas conspirações muito reais lá fora, mas os conspiradores eram macacos velhos na arte de desviar a atenção deles mesmos. Uso de drogas? Será que você não sabia que a rainha Elizabeth 2ª é a chefe global do comércio mundial de drogas (pena que a pobre Lillibet não se precaveu, nestes tempos republicanos em que vivemos!)? Eles nos informam que a Comissão Trilateral é uma conspiração comunista de âmbito mundial chefiada pela família Rockefeller. Na verdade, a comissão é um exemplo excelente para mostrar como os Rockefeller aglutinam à sua volta políticos e candidatos a acadêmicos de respeito, para servir a seus interesses comerciais dentro e fora do governo. Quem convenceu alguém como Lyndon LaRouche a dizer que essa Cosa Nostra Rockefeller é, na realidade, uma fachada comunista, estava verdadeiramente inspirado.
Mas Dyer trouxe à tona uma conspiração atual e genuína que afeta a todos nos Estados Unidos. Hoje um punhado de conglomerados agroindustriais está fazendo o que é preciso para expulsar de suas terras os pequenos agricultores remanescentes no país. Para isso, os paga sistematicamente menos por sua produção do que custa aos agricultores produzi-la e, com isso, os força a pedir empréstimos aos bancos dos conglomerados, hipotecar suas terras, sofrer a execução de suas hipotecas e a venda de suas terras às agroindústrias controladas por grandes empresas.
Mas será isso realmente uma conspiração, ou não passa do funcionamento darwiniano de um mercado eficiente? Desta vez, pelo menos, dispomos de uma prova viva, sob a forma de um plano que descreve a melhor maneira de livrar o país dos pequenos agricultores. Dyer escreve: "Em 1962, o Comitê de Desenvolvimento Econômico era composto por aproximadamente 75% dos mais poderosos executivos de empresas do país. Eles representavam não apenas a indústria alimentícia, mas também a indústria petrolífera e de gás natural, as seguradoras, os setores de investimento e varejista. Quase todos os grupos que tinham a ganhar com a consolidação estavam representados nesse comitê. Seu relatório ("Um Programa de Adaptação para o Setor Agrícola') esboçava um plano visando eliminar fazendas e agricultores. Era detalhado e bem desenvolvido".
Simultaneamente, "já em 1964, congressistas ouviam de gigantes industriais como a Pillsbury, Swift, General Foods e Campbell Soup que o maior problema do setor agrícola era o excesso de fazendeiros". Psicólogos argutos, os executivos-chefe haviam notado que os filhos de agricultores, quando chegam à faculdade, raramente retornam à fazenda familiar. Ou, como disse um economista famoso a um senador famoso que se queixava de "jet lag" num vôo noturno entre Nova York e Londres, "não deixa de ser melhor do que trabalhar na lavoura". O comitê convenceu o governo a enviar os filhos de fazendeiros à faculdade. Como já era previsto, a maioria não voltou para suas fazendas. Então o governo se ofereceu para ajudar os fazendeiros a se transferirem para outros tipos de trabalho, permitindo que suas terras fossem consolidadas em conglomerados cada vez maiores pertencentes a um número cada vez menor de corporações.
Assim foi posta em andamento uma conspiração para substituir o ideal jeffersoniano de uma nação cuja espinha dorsal seria a fazenda familiar independente por uma série de monopólios agroindustriais, em que, escreve Dyer, "entre cinco e oito multinacionais têm sido, para todos os efeitos, as compradoras e transportadoras únicas da produção de grãos não apenas norte-americana, mas mundial". Em 1982, "essas empresas já controlavam 96% das exportações norte-americanas de trigo, 95% das de milho" e assim por diante.
A consolidação tem sido boa para os consumidores? Ao todo, pesando os prós e contras, não. Os monopólios não abrem espaço para barganhas, nem precisam preocupar-se demasiadamente com qualidade, já que não temos alternativa ao que nos oferecem. Desnecessário dizer que são hostis aos sindicatos e indiferentes às condições de trabalho dos antes agricultores independentes, hoje empregados mal pagos. Aqueles de nós que crescemos nos EUA do pré-guerra conhecíamos o sanduíche de presunto legítimo. Desde a consolidação, o presunto passou a ser tão emborrachado que não tem sabor de nada, enquanto sua textura é a de um plástico cor-de-rosa. Por quê? Nas grandes criações de porcos, estes permanecem em um só lugar, em pé, durante toda sua vida. Como não se locomovem, nem fuçam na terra, não criam resistências naturais às doenças. Isso significa que muitas drogas são injetadas no corpo dos prisioneiros até sua morte e transfiguração em presunto incomestível.
A legislação antitruste Sherman já ficou para a história, de modo geral. Hoje, três empresas controlam 80% do mercado total de carne embalada. Como isso se deu? Por que os agricultores despossuídos não têm representantes no Congresso a quem se voltar? Por que os consumidores são obrigados a adquirir produtos inferiores aos de épocas anteriores e cujos preços são determinados por processos insondáveis?




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