São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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+ 3 questões Sobre racismo

1. De que modo o racismo se manifesta na sociedade brasileira hoje?
2. Medidas como a reserva de cotas em universidades são opções efetivas para diminuir seus efeitos?
3. O agravamento da desigualdade social no Brasil não tenderia a acirrar seus efeitos?


Joel Rufino responde

1.
Devemos distinguir o racismo de seus correlatos, o preconceito racial e a discriminação. Preconceito é uma forma "benigna" de percepção do outro -há quem não goste de gaúcho, de americano, de alemão; ou, ao contrário, goste de inglês, de índio, de mulata... Discriminação é quando, baseado nesse preconceito, se nega ou se facilita o acesso de alguém a alguma coisa -um emprego, uma moradia... Já o racismo é uma forma de dominação social, legitimada pela crença acientífica de que a humanidade está dividida em raças. Essa crença, fruto da ignorância, por si só não caracteriza o racismo, é mais um racialismo. Por exemplo: muitas pessoas e organizações que lutam contra o racismo são racialistas. Baseados numa idéia ingênua de sociedade, não podem ir longe. Acusa-se o movimento negro de ser racista. Não é. Ele é racialista (o que não quer dizer que será sempre).
O racismo brasileiro hoje se manifesta: 1) no mercado de trabalho. Não ser branco empurra o salário para baixo. Não vale o princípio "trabalho igual, remuneração igual". Um médico, um professor secundário do ensino particular, uma empregada doméstica negros ganharão em média 50% menos do que os colegas brancos; se mulatos, 30%; e 2) pelo monopólio da representação. Basta assistir a um capítulo de telenovela. Os dramas humanos são vividos só por brancos, negros são apêndices. Pode-se imaginar o efeito desse confisco da humanidade do negro sobre crianças negras.
2.
Não sou contra, acho uma proposta singela. Mais negros formados, generais, "big bosses", top models, ministros... -tudo isso tem de sobra na África. Que os partidários dessa fórmula visitem o Quênia, a África do Sul, a Libéria etc. Os negros de cima exploram os de baixo.
3.
Tenderia, pois o racismo é uma forma de manter a desigualdade (ou dominação) social. O racismo brasileiro não é uma sobrevivência da escravidão, se fosse seríamos menos racistas quanto mais distantes dela. O motor do racismo é o capital, nas suas formas atuais de reprodução. Antes o negro não era consumidor de bens materiais (comida, casa, instrução, saúde), não gerava mais-valia industrial.
Hoje, tendo se tornado grande consumidor de bens simbólicos (videoshows, axé music, tênis de marca, moda etc.), acabou a sua exclusão: ele gera a mais-valia espetaculoísta e assim se inclui. O cemitério e a penitenciária recolhem as suas sobras.

Reginaldo Prandi responde

1.
O racismo é crime no Brasil, mas é marca ostensiva do nosso cotidiano. Manifesta-se primeiro nos valores, sentimentos e atitudes. No preconceito racial, que é um jeito estereotipado, simplista e negativo de preconceber aquele que se acredita ser o diferente e inferior. Como a sociedade brasileira foi sempre controlada pelos brancos, o outro é o negro, o índio e demais minorias. Preconceito é difícil de atenuar, mais difícil ainda de erradicar. Pode ser escamoteado, disfarçado, mas na hora H -sobretudo quando o preconceituoso se sente ameaçado- emerge revigorado, não raro com violência. Outra forma de racismo, esta mais exterior, porque implica gestos e ações visíveis, inclusive políticas e leis de segregação, é a discriminação, a separação, o impedimento. Como se a sociedade comportasse mundos separados, cabendo, evidentemente, aos discriminados a pior parte, direitos menores. O racismo é acentuado pelo preconceito e discriminação de classe social e de gênero, entre outros.
No Brasil o preconceito e a discriminação podem ser observados em toda parte: no mercado de trabalho, nas escolas, no lazer e até no, digamos, mercado matrimonial. A mulher negra, que também é pobre, é exemplo emblemático: entre todos os brasileiros, é o segmento que tem mais dificuldade para encontrar parceiro para casar.
2.
A universidade é uma instituição meritocrática, cujo critério de promoção é o saber que se aprende, se produz e se transmite. Por isso dificilmente o ingresso por meio de cotas destinadas a minorias é aceito como meio para melhorar o acesso da população negra, cuja presença é reduzidíssima na universidade. Entre nós, outros mecanismos têm sido procurados, como isenção de taxas, oferta de cursinhos preparatórios etc., pois, se depender apenas da livre concorrência, negros e mulatos continuarão a entrar na universidade em número ínfimo. Criar cotas para alunos provenientes de escolas secundárias públicas, onde estudam preferencialmente os negros e demais pobres, é outra possibilidade, mas que também se choca com os critérios de mérito. De todo modo, a decisão deve ser política e talvez tenhamos que mudar a universidade em favor de outras mudanças fundamentais.
3.
As duas coisas andam juntas. Superar desigualdades significa reconhecer direitos e mudar privilégios historicamente constituídos. E ninguém cede se não for suficientemente motivado ou forçado a mudar. Pode ser conflituoso, mas é necessário.

Quem são

Joel Rufino
É escritor, historiador e professor no departamento de letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor, entre outros livros, de "Quando Eu Voltei, Tive uma Surpresa" (ed. Rocco).

Reginaldo Prandi
É professor titular de sociologia e membro da Comissão de Políticas Públicas para a População Negra da USP. É autor, entre outros livros, de "Mitologia dos Orixás" (Companhia das Letras).



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