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No longo reinado de Vitória, de 1837 a 1901, os britânicos conquistaram o maior império já formado na história
A vitória-régia do Tâmisa
por Nicolaus Sevcenko
A celebração do 60º aniversário do
reinado da rainha Vitória, em
1897, quatro anos antes de sua
morte, foi um festival consagrador, confirmando plenamente sua condição
como a figura mais proeminente no cenário
mundial. No dia da festa, 26 de junho, ela
anotou no seu diário pessoal as seguintes
impressões: "Um dia para não ser esquecido. Ninguém neste mundo, acredito, jamais
recebeu uma tamanha aclamação. Seria impossível descrever a multidão, o entusiasmo
maravilhoso, comovente. Os hurras sufocavam completamente qualquer outro ruído,
cada rosto parecia irradiar uma alegria sincera. Fiquei profundamente emocionada e
reconhecida...".
Como se vê, mais do que uma mera efeméride, a festa trazia componentes de exaltação
emocional de uma força quase mística, enlevando as pessoas a uma euforia de êxtase
diante da pequenina imagem de sua rainha.
De fato a sua figura, independentemente de
suas limitações físicas, havia se transformado na própria efígie do poderio inglês. Àquela altura, Vitória era o emblema supremo da
força, da lei e da prosperidade, num mundo
que vivia à sombra da Pax Britannica. Seu
rosto, estilizado em feição neoclássica inspirada no modelo romano, circulava por todo
o mundo, impresso na moeda padrão do comércio e das finanças internacionais, a libra
esterlina.
No período de seu longo reinado, de 1837 a
1901, a Grã-Bretanha se recuperou das graves perdas representadas pela independência dos Estados Unidos e pelas terríveis e intermináveis campanhas contra seu arquiinimigo, Napoleão Bonaparte. Desde que Vitória subiu ao trono aos 18 anos, o reino atravessou um período de prosperidade, expansão e consolidação dos sistemas parlamentar e do livre-comércio que o tornou o modelo a ser seguido pelos povos de todo o
mundo, pela força da persuasão ou pelo poder da coerção.
Transformando a vantagem de seu pioneirismo industrial numa máquina militar prodigiosa, centrada na sua marinha, os britânicos conquistaram num curto espaço de tempo o maior império jamais formado na história. Suas possessões se espalhavam por todos os quadrantes do mundo, do Canadá ao
Caribe e a quase um terço do continente africano, de Suez à Cidade do Cabo; enormes
porções territoriais da Ásia e os mais ricos
portos da China; a imensidão continental da
Austrália, onde foram encontradas ricas reservas de ouro, e a "pérola do Oriente", o império da Índia. Como num passe de mágica,
aquele pequeno arquipélago encravado no
norte da Europa, com sua pequenina rainha,
dominava o destino de cerca de 250 milhões
de pessoas por todo o mundo.
Numa obra célebre, "The Expansion of England", escrita em 1883, o historiador e professor de Cambridge
John Robert Seeley demonstrava que o país estava predestinado a conquistar um vasto império colonial,
abrangendo todos os recantos do globo, de modo a tornar o Sol um astro inglês. Sua metafísica procurava dar
fundamento histórico a uma crença teológica sobre o
destino manifesto dos povos anglo-saxões. Já Benjamin
Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro, o político predileto e amigo íntimo da rainha Vitória, compreendia
muito bem o mecanismo pelo qual o império em expansão e a contínua pilhagem das riquezas de povos e
nações proviam o fluxo de prosperidade imprescindível
para a manutenção da ordem social conservadora no
Reino Unido.
Nas suas palavras: "Na minha opinião, nenhum primeiro-ministro estará cumprindo o seu dever para com
esse país se negligenciar ainda que sejam as menores
oportunidades para a edificação de nosso império colonial, na maior escala possível, e de responder às simpatias com que regiões as mais distantes se dispõem a oferecer uma fonte inesgotável de poder e de felicidade para a nossa nação".O apogeu desse processo de consolidação do poderio inglês foi simbolicamente representado pela montagem, em Londres, no Hyde Park, da primeira Grande Exposição Internacional da Indústria,
inaugurada pela rainha em 1851. Embora outras nações,
cuja industrialização ainda era incipiente, tivessem sido
convidadas, o evento foi um grande show destinado a
projetar a imagem da Inglaterra como a "oficina do
mundo", a potência industrial suprema e imbatível. A
mostra foi toda concentrada no interior do Crystal Palace, algo jamais visto, uma megaestrutura de vigas moduladas de aço, coberta de vidro e completamente
transparente, visível de qualquer parte do parque. Foi a
primeira vitrine moderna, em escala gigantesca, catalisando a luz do Sol e irradiando a cultura britânica como
a vanguarda da modernidade e da civilização.
Por trás do Crystal Palace, o príncipe consorte coordenou a construção de um vasto quadrilátero cultural
centrado num teatro monumental, o Victoria and Albert Hall, cercado de instituições acadêmicas de todos
os tipos, museus, galerias, conservatórios, centros de
pesquisa, laboratórios e departamentos científicos ligados ao Imperial College da Universidade de Londres.
Capital cultural
Desmentindo a tradicional visão
dos ingleses como um povo de mercadores, a idéia era
mostrar como, àquela altura, a corte londrina já se
transformara também numa das capitais culturais mais
sofisticadas da Europa. O sucesso da Grande Exposição
foi estrondoso, com mais de 6 milhões de visitantes do
Reino Unido e de todo o mundo, se tornando o marco
de um novo tempo de progresso material e cultural que
foi logo batizado de "a era vitoriana".
Símbolos de prosperidade e refinamento não faltavam. A coroa e as elites sabiam muito bem como promover e recobrir de legitimidade sua avidez de conquistas. O fato, porém, é que a prosperidade drenada das colônias não chegava a muitas mãos, como é fácil imaginar. Do mesmo modo, os desdobramentos do processo
de industrialização foram multiplicando as desigualdades. Em paralelo à exploração das populações coloniais,
o operariado industrial era também afligido, vivendo
em cortiços precários, sem as mínimas condições de
privacidade e higiene, submetido a jornadas contínuas
de 14 a 16 horas de trabalho, mulheres e crianças de preferência, sem seguros ou garantias contra desemprego,
acidentes, doenças ou velhice, em troca de salários de
fome.
O processo de industrialização provocou um surto
acelerado de urbanização. Quando a rainha Vitória subiu ao trono, afora Londres havia apenas cinco cidades
com mais de 100 mil habitantes. Quando ela morreu, já
eram cerca de 25. Numa sociedade cujo foco de autoridade fora sempre rural, consolidado no poder dos grandes proprietários, essa concentração de força nas cidades representava uma ameaça à estabilidade da ordem
conservadora. Fato que levou Robert Southwold, indignado, a confrontar o gabinete no Parlamento, clamando, "não há ali um tumor e elementos suficientes para
um motim e para a imposição do terror ao governo se
ele por acaso supurar?".
Camada de arrivistas
Southwold representava a
nova burguesia ascendente. Essa nova camada de arrivistas era por excelência a força social projetada na era
vitoriana. A rainha e o príncipe Alberto deram uma nova vitalidade à declinante monarquia britânica, exatamente porque foram capazes de exprimir os valores
dessa camada, os responsáveis pelo surto de prosperidade corrente e também os seus maiores beneficiários.
Em língua inglesa eles eram chamados de "middle classes", por se colocarem entre a aristocracia tradicional e
o proletariado industrial. Mas essa expressão nada tem
a ver com a noção de "classes médias" como usada nos
países latinos.
Tratava-se de uma burguesia enriquecida graças à indústria e aos frutos do império colonial. Era essa gente
que tanto Disraeli, o conservador, quanto Gladstone, o
liberal, representavam, e era neles que a coroa tinha o
esteio do seu apoio. Eles também odiavam as cidades e
seus habitantes, preferindo, sempre que possível, se
mudar para os subúrbios elegantes ou para propriedades rurais, tentando ao mesmo tempo adquirir os códigos de gosto e comportamento dos aristocratas que eles
invejavam. Eles compunham o grupo que se poderia
portanto chamar de "os vitorianos". Devido à sua ânsia
de ocultar as origens, surgiu uma "indústria de genealogias". Essa era a categoria de filisteus particularmente
odiada por Oscar Wilde, autor da ferina observação:
"As genealogias são as melhores obras de ficção que os
ingleses jamais foram capazes de escrever".
Quando habitavam as cidades, esses grupos não mediam esforços para isolar completamente seus espaços
do restante da população. Só admitiam viver em cantões de privilégio. Seu esnobismo histérico era sintoma
tanto de sua insegurança social, quanto de sua falta de
estofo cultural. Wilde, seu maior algoz , se referia a eles
como a gente "que sabe o preço de tudo, mas não sabe o
valor de nada".
Seu empenho por criar um sistema de segregação das
pessoas e dos espaços dos trabalhadores levou o reverendo William Channing a pintar um quadro social
mórbido: "Nas grandes cidades, pode-se dizer que coexistem duas nações que não entendem nada uma da outra, tendo tão pouco contato como se fossem países distantes. Uma pensão num dos distritos populares de
Londres seria tão estranha aos cidadãos distintos quanto um povoado numa floresta africana. É um mal clamoroso que duas comunidades, vivendo ao alcance dos
mesmos sinos, tenham que estar tão distantes entre si,
como se residissem em diferentes quadrantes do mundo".
Insegurança e pavores
O rápido crescimento dos
bairros operários instigou ainda mais a insegurança e os
pavores dos "vitorianos". Os contingentes operários
não apenas dilatavam, mas se mantinham em constante mobilidade. A forma mais tradicional de autoridade,
representada pela ordem paroquiana e a missa dominical, perdera sua força de atuação. A Missão Nacional de
Liverpool notou, em 1858, que menos de um quarto dos
residentes de sua área se mantinha na mesma casa ou
rua por mais de dois anos. Para estigmatizar essas falanges nômades e ameaçadoras que, em vez de em templos, se reuniam em sindicatos, os conservadores passaram a chamá-las de "massas", e as partes das cidades
onde elas se concentravam eram chamadas de "dark cities" ("cidades escuras").
Não era casual que as populações das regiões "remotas" do mundo fossem chamadas de "selvagens" e as
terras desconhecidas de "dark lands". O paralelismo era
revelador. O estilo da relação com os trabalhadores não
era muito diferente do trato aplicado aos povos colonizados. Joseph Conrad (1857-1924), antigo membro da
marinha mercante e testemunha pessoal dessa sanha de
enriquecimento rápido à custa dos povos e recursos das
colônias, não poupou palavras pesadas ao descrevê-lo
como "a mais vil e esganada correria para o saque que
jamais desfigurou a consciência humana".
Também Alexis de Tocqueville (1805-1859), em visita
a Manchester em 1835, não pouparia o tom sinistro: "Lá
estão fileiras de casas de um andar, cujas ripas soltas e
vidraças quebradas as revelam, mesmo à distância, como o último refúgio que um homem acharia entre a miséria e a morte. E, no entanto, mesmo os desgraçados
que nelas vivem ainda causam inveja. Pois sob essas habitações miseráveis há fileiras de porões a que se chega por um corredor subterrâneo: 12 a 15 seres humanos estão
atulhados em cada um desses buracos úmidos e repugnantes(...). Desse esgoto nojento flui a maior fonte de indústria
humana que fertiliza o mundo. Dessa cloaca fétida flui ouro puro. Aqui a humanidade alcança seu mais alto desenvolvimento e a mais crua brutalidade; aqui a civilização faz
seus milagres e o homem civilizado regride à selvageria".
Há, portanto, que ponderar antes de chamar toda uma
sociedade e toda uma época de "vitorianos". O epíteto, se
bem que gracioso, se refere apenas a um pequeno segmento, hostil aos demais conterrâneos e, de modo geral, a grandes parcelas do gênero humano. Mesmo seu proverbial
puritanismo e a ambivalência moral com relação aos temas sexuais derivam desse seu estado paranóico de insegurança, decorrente da tensão social explosiva que eles
mesmos provocavam.
Essa aflição contínua se traduziria sobretudo numa obsessão com temas de disciplina e higiene. Em especial qualquer contato com os "outros" ("nunca olhe para estranhos, nunca fale com estranhos, jamais vá aonde há estranhos!") era traduzido como moralmente promíscuo e fisicamente contagioso.
Nesse sentido, amor, afeto e compaixão são sentimentos
traiçoeiros, porque promovem a aproximação com o "desconhecido". As latências do corpo podem ser mais bem
apaziguadas com o trabalho, a concentração e, no limite, o
castigo, antes que sirvam ao "inimigo" ou causem a poluição do corpo e do espírito.
Psicose defensiva
Quanto mal essa psicose defensiva
causou que se pergunte aos proletários, às crianças, às mulheres, aos irlandeses e aos "outros". Graças, porém, à organização e à luta contínua desses grupos afligidos, o legado perverso dos tempos vitorianos pôde ser superado,
dando ensejo à descolonização e à criação de um Estado de
Bem-Estar Social, que tornou de fato o Reino Unido num
modelo inspirador de democracia moderna.
Não por acaso, foi quando se iniciou a desmontagem
desse sistema de equilíbrio social que a líder da reação neoconservadora, Margaret Thatcher, invocou o fantasma da
"sociedade vitoriana", reapresentada agora como o tempo
em que os ingleses eram felizes e não sabiam.
A agenda da reação conservadora previa a luta contra a
presença crescente de imigrantes das ex-colônias, a destruição do poder dos sindicatos, a redução drástica dos
serviços públicos e garantias sociais e o reforço da aliança
militar com os Estados Unidos, retornando o país ao status
de grande potência. "Vamos devolver o "Grande" à Grã-Bretanha", era o mote.
Ato contínuo, proliferaram filmes, seriados, novelas,
dramas e peças publicitárias glamourizando a sociedade
vitoriana, usando apenas atores brancos, sem referências
às colônias e sem cenas sobre as fábricas e os guetos operários. Abriu-se uma campanha de desmoralização de livros,
professores e currículos escolares que ensinam conceitos
"distorcidos" sobre os heróicos tempos vitorianos. A própria monarquia, seus personagens e rituais readquiriram
um fulgor havia muito perdido. Os valores vitorianos viraram moda e assim continuam.
Quem foi mesmo que disse que a história, quando se repete, é como farsa?
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na Universidade de
São Paulo e professor visitante do King's College da Universidade de Londres. Seu livro mais recente é "A Corrida Para O Século 21 - No Loop da
Montanha-Russa", a ser lançado em breve pela Companhia das Letras.
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