São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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O show deve continuar

Em "A Guerra Está em Nós", Marques Rebelo faz a crônica do Rio de início dos anos 1940

ANTONIO PEDRO TOTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No documentário "Redescobrindo a Segunda Guerra", exibido pelo canal National Geographic, a guerra estava em todos os lugares. E estava no Rio de Janeiro, segundo a pena de Marques Rebelo, aliás, Edi Dias da Cruz. "A Guerra Está em Nós" (1968) faz parte da trilogia "Espelho Partido".
É a crônica de um Rio de Janeiro ingênuo e paradoxalmente cheio de malícia na época da Segunda Guerra. Deliciosa crônica de uma cidade que ficou no imaginário, de uma época em que o Rio era o Cassino da Urca, onde o cineasta Orson Welles comandava um grande show com a participação da orquestra de Carlos Machado e suas coristas. Enquanto Rommel, "o astuto estrategista, desfechou espetacular golpe no deserto, retomando em horas o que os ingleses penosamente conquistaram", Maria Berlini meio embriagada segura, com claros objetivos de sedução, a mão de Eduardo, o dublê de personagem e autobiografado.
O Rio da época da guerra fica ainda mais sensual, sublime, sedutor e carnavalesco na pena de Marques Rebelo. O futebol do preferido América se confundindo com a permanência das práticas religiosas do "sininho rachado do asilo convoca para a missa três vezes na manhã". E a religiosidade da amiga beata coexistindo com o comportamento "liberal" de Vivi Taveira, que "continua provocante cheia de dengos oriundos de um longo bem sucedido hábito de seduzir".
"Brilha na sociedade, forma na primeira linha das elegantes, põe chifres no ministro..." Num dos primeiros registros de janeiro de 1942, diz que os "aliados passam da defensiva para a ofensiva". Talvez o distanciamento (o livro foi escrito 23 anos depois de finda a guerra) tenha ajudado a confundir um pouco as informações.
Sabemos que, embora a União Soviética tivesse repelido o ataque nazista a Moscou, os aliados estavam ainda se preparando para uma possível mudança de estratégia. A ofensiva demoraria ainda algum tempo para tornar-se realidade nos teatros de guerra.
Guerra, Carnaval e crítica política. Vargas é um personagem constante. Destaque para o "raposismo" político do presidente brasileiro. As músicas e peças de teatro que -passadas pela censura- iam ao público faziam Vargas rir dele mesmo, apesar do paradoxal controle do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda).
A literatura e a crítica literária estavam presentes. Contentamento de saber que "Cangaço", de Euloro Filho com tradução de Isaac Rollemberg, foi largamente elogiado pelo crítico do "The New York Tribune". Os amigos se comunicavam muito por carta. Trocas de cartas numa época em que os telefones não eram para todos. Falavam em código, muitas vezes de difícil compreensão. Quase um código de guerra.
As vitórias aliadas na invasão da Itália pelas forças de Patton e Montgomery foram vistas por Rebelo como uma "faca entrando na manteiga". O entusiasmo do autor só pode ser entendido pela torcida a favor dos anglo-americanos. Ora, a campanha da Itália foi considerada uma das mais difíceis na frente ocidental. Tudo, menos faca na manteiga.

Papel em branco
As batalhas de Krakov, de Kusrk, das Filipinas, nossos navios afundados no litoral brasileiro, o Blackout, os discursos de Vargas, as picuinhas dos intelectuais contra o Estado Novo, o Manifesto dos Mineiros e as primeiras fissuras no regime varguista surgem como flashes.
Mas há, no livro, uma guerra subjacente. A guerra para escrever, vencer as resistências diante do papel em branco, depois a guerra para ser publicado e, principalmente, para ser amado pelos amigos que eram "obrigados" a ler originais e emitir opiniões. De preferência favoráveis.
Guerra pelo amor das mulheres. Guerra por concepções estéticas de conhecidos artistas plásticos. Não há exagero no texto da orelha, de Luciano Trigo: Rebelo é um "herdeiro de Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto" em sua paixão pela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

ANTONIO PEDRO TOTA é professor de história na Pontifícia Universidade Católica-SP.


A GUERRA ESTÁ EM NÓS

Autor: Marques Rebelo
Editora: José Olympio (tel. 0/ xx/21/ 2585-2060)
Quanto: R$ 54 (592 págs.)




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